A área onde decorreu o assassínio nas primeiras horas de sexta-feira, na comuna de Anderlecht.
A área onde decorreu o assassínio nas primeiras horas de sexta-feira, na comuna de Anderlecht.EPA / OLIVIER MATTHYS

Tiroteios no coração da União Europeia. Bruxelas está sob ameaça dos cartéis de droga

A capital de facto da UE tem sido local de tiroteios relacionados com o narcotráfico. Bélgica e Países Baixos são agora a maior porta de entrada da cocaína.
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De passa-montanhas a esconder o rosto, dois homens armados com armas automáticas AK-47 (Kalashnikov) entraram no metropolitano de Bruxelas na quarta-feira de manhã depois de terem disparado para o ar à entrada da estação de Clemenceau, em Anderlecht. Cinco horas antes, numa rua perto da estação de comboios Brussel-Noord, um tiroteio feriu duas pessoas que foram levadas para o hospital, mas sem ferimentos graves. Pelas 3.30 da madrugada de quinta-feira, novo tiroteio junto da estação de Clemenceau, desta vez ferindo uma pessoa numa perna. Pouco mais de 24 horas depois, no bairro de Peterbos, em Anderlecht (uma das 17 comunas de Bruxelas), um homem morreu vítima de um tiroteio. "Um indivíduo nascido em 1970 e que não é conhecido pela polícia, exceto por roubos, foi morto a tiro", disse o procurador Julien Moinil. O que une todas as ocorrências? "Uma guerra inaceitável" entre bandos, disse Moinil na sexta-feira.

Dois homens armados na estação de metro de Clemenceau, na manhã de quarta-feira.
Dois homens armados na estação de metro de Clemenceau, na manhã de quarta-feira.

Na véspera, rusgas em vários locais de Bruxelas e arredores resultaram na apreensão de um número indeterminado de armas e na detenção de uma pessoa, segundo a RTL. Uma informação que não foi confirmada pelas autoridades, e apenas mais um capítulo revelador de que Bruxelas não é só a capital de facto da UE e a sede da NATO, mas também do tráfico de cocaína na Europa, via Antuérpia, num negócio avaliado em 11,6 mil milhões de euros por ano no espaço da UE.

Há dois anos um crime em especial chamou a atenção: dois homens, mais tarde detidos, dispararam para o interior de uma casa em Antuérpia, matando uma menina de 11 anos e ferindo o seu pai e irmãs. Soube-se mais tarde que "vários tios" da menina estavam ligados ao narcotráfico, em especial Othman el Ballouti, um dos principais traficantes de droga acusados pela Bélgica, e que dirigirá ou dirigiria as operações de contrabando de cocaína através do porto de Antuérpia, a partir do Dubai.

Em 2023, foram apreendidas 116 toneladas de cocaína no porto flamengo, enquanto em Roterdão a quantia cifrou-se em 59 toneladas. Ao longo de 160 quilómetros de cais, Antuérpia é a porta de entrada de muitos produtos perecíveis, caso das bananas oriundas do Equador e da Colômbia. Não é possível inspecionar todos os contentores, pelo que introduzir cocaína nestas cargas é um dos métodos preferidos pelos narcotraficantes. As autoridades estimam que apenas detetam 10 por cento das drogas traficadas através do porto. Além disso, como se lê no relatório mais recente da Agência Europeia sobre Drogas, com sede em Lisboa, "a corrupção e a intimidação dos trabalhadores portuários são os principais facilitadores do contrabando de cocaína, embora a corrupção relacionada com este mercado se estenda a outros setores da sociedade".

Uma vez no porto, uma das táticas para retirar a cocaína é através de jovens menores de idade. Segundo o Brussels Times, saltam a vedação do porto para recolherem a cocaína em troca de 100 euros. "Se forem apanhados, enfrentam multas por invasão de propriedade ou, no máximo, acusações de delinquência juvenil", lê-se.

A mesma publicação diz que os bandos marroquinos, quer na Bélgica, quer nos Países Baixos, dominam a distribuição da cocaína. A esmagadora maioria da droga é transportada para os Países Baixos para ser cortada, embalada e posteriormente distribuída por toda a Europa. A Mocro mafia, como é conhecida (e que já inspirou uma série da Netflix) tem ameaçado as mais altas figuras do Estado neerlandês e belga, mas também jornalistas. E, claro, como em quaisquer organizações criminosas, com guerras fratricidas de tempos a tempos.

Era então presidente da Câmara de Antuérpia, cujo porto é o principal ponto de entrada da cocaína no país, Bart De Wever. O líder do partido nacionalista flamengo N-VA é o novo primeiro-ministro do país desde segunda-feira. É de esperar que De Wever, que enquanto autarca se gabava de prender mil traficantes por ano, leve para o governo federal uma abordagem mais dura. Afinal, já recebe proteção policial desde 2021 devido às ameaças dos bandos, e em 2023 a polícia frustrou um plano de um islamista para o matar (viria a ser condenado, no ano passado, a 13 anos de prisão).

O novo ministro do Interior, Bernard Quintin, prometeu que o governo vai aplicar "tolerância zero a qualquer forma de crime". Em conferência de imprensa conjunta com a ministra da Justiça, Annelies Verlinden, o ministro anunciou o envio de mais polícias para as ruas da capital. “A rua pertence aos moradores, não aos traficantes de droga”, disse Quintin. Este pediu ainda a fusão de seis serviços policiais locais como forma de libertar mais recursos e funcionários. Esta medida, a concretizar-se, vem na senda de um comando unificado das polícias locais, acordado de forma provisória pelos 19 autarcas das comunas de Bruxelas.

A comissária de Drogas da Bélgica, Ine Van Wymersch, nomeada para este cargo criado em 2023, na ressaca do assassínio da menina de 11 anos, diz que é difícil haver coordenação com tantas autoridades. Mas há mais: "A necessidade de reconstrução da sociedade em Bruxelas é clara. E se virmos o que os cidadãos estão a questionar, é realmente para limpar as ruas, recuperar a iluminação, garantir que as pessoas vivem em boas condições, que têm acesso a empregos e que os nossos filhos voltam a ir à escola. O que está em causa é a qualidade de vida", disse a magistrada ao Politico.

Recorde de apreensões em França

Na vizinha França, o ministro do Interior Bruno Retailleau anunciou a apreensão, em 2024, de 53,5 toneladas de cocaína, um aumento de 130% em relação a 2023. São números “recorde”, disse Retailleau, na quinta-feira, no lançamento de uma campanha de sensibilização antidroga.

Além disso, a violência relacionada com a droga causou 110 mortes e 341 feridos em 2024. Os números são inferiores aos registados em 2023, no entanto, segundo explicou uma fonte policial à AFP, tal explica-se pelo fim de uma guerra entre dois grupos criminosos rivais em Marselha: de facto, em 2024, a violência subiu em comparação a anos anteriores.

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