Francisco vai ser o segundo Papa a visitar Timor-Leste, mas o primeiro a conhecê-lo como país soberano, depois de João Paulo II, em 1989, quando o território estava sob ocupação da Indonésia. Aos 87 anos, o pontífice argentino realiza o périplo mais extenso em distância, acima de 30 mil quilómetros, e em tempo, 12 dias. Se João Paulo II se deslocou a Timor também por motivos políticos, ainda que de forma velada, Francisco terá deixado essa dimensão do seu papel na Indonésia, Papua-Nova Guiné e Singapura, e vem celebrar a fé do país com a maior percentagem de católicos do mundo. “Porquê esta viagem? E, para responder a este porquê, fazem-se muitas suposições, algumas das quais têm a intenção de privar a viagem da sua verdadeira importância. Seria, segundo algumas pessoas, uma excursão turística, uma exploração informativa, uma concessão ao gosto moderno de viajar e de estar em movimento, um pretexto para fazer propaganda, etc. Outras suposições, ao invés, atribuem intenções ocultas, polémicas ou políticas à viagem; ou, então, interesses de todos os géneros, influxos diplomáticos passivos e ativos; ou, ainda, apoio a certas correntes ideológicas e sociais, e assim por diante. Certamente o Papa não faz uma viagem sem ter finalidades especiais e importantes”, disse o Papa Paulo VI em 1970, antes da sua viagem ao oriente, onde sobreviveu a uma tentativa de assassínio nas Filipinas. Conhecido como o Papa peregrino por inaugurar o costume de viajar para fora dos 44 hectares do Vaticano, Paulo VI explicaria que fazia parte das suas funções uma “missão itinerante, destinada à expansão e à consolidação da Igreja”. Nesse périplo, o pontífice italiano parou em Jacarta, como depois João Paulo II e agora Francisco. À época fazia parte do governo de Sukarno (e transitou para o de Suharto) Franciscus Xaverius Seda, líder do Partido Católico da Indonésia, e que defendia a integração do então chamado Timor Português na Indonésia. Quando João Paulo II visitou a capital do maior arquipélago do mundo e Díli, o plano estava há muito em execução, mas foi travado, tendo a Igreja Católica tido a sua quota-parte de responsabilidade. E agora, que se espera de Francisco? Antes de mais, ter em contexto de que há a “ideia de que a Igreja deve estar presente nas periferias, onde o cristianismo não está suficientemente presente e onde a atenção do mundo não está suficientemente focada”, como explica ao Le Monde François Mabille, especialista em assuntos religiosos no parisiense Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas. Em Jacarta, o bispo de Roma esteve com o grão-imã da mesquita de Istiqlal, com o qual assinou uma declaração conjunta a apelar para o respeito pelo meio ambiente e a denunciar a instrumentalização da religião para alimentar guerras. Visitou o “túnel da amizade”, que vai ligar a referida mesquita, a terceira maior do mundo, à catedral de Santa Maria da Assunção; e celebrou uma missa num estádio, na qual instou os presentes, cerca de cem mil pessoas, a promoverem uma “civilização da paz”. A Indonésia, com 276 milhões de habitantes, 80% dos quais convertidos ao islão, é o país com mais muçulmanos do mundo, embora a Constituição reconheça seis religiões e as trate como iguais. No dia 20 de outubro, Prabowo Subianto vai tomar posse como presidente da Indonésia, sucedendo a Joko Widodo. O antigo general comandou um grupo de forças especiais em Timor-Leste e é acusado por grupos de direitos humanos de massacres, cemitério de Santa Cruz incluído, tendo estado sob sanções dos EUA até 2020, mas conseguiu passar ao lado da justiça. Subianto, nome temido e odiado por parte significativa de Timor-Leste, poderá vir a ter influência para o jovem país com 1,4 milhões de habitantes, ao apoiar a candidatura à Organização Mundial do Comércio e à Associação dos Estados do Sudeste Asiático (ASEAN). A frágil economia timorense entrou em queda desde a pandemia e ainda não recuperou, ansiando por investimentos estrangeiros significativos. Subianto foi um dos executores de uma repressão sistemática que terá matado 200 mil timorenses e que incluiu um programa de esterilização forçada, entre muitas outras violações dos direitos humanos. Do outro lado da barricada, a Igreja Católica, distinguida no preâmbulo da Constituição timorense como uma instituição que “sempre soube assumir com dignidade o sofrimento de todo o povo, colocando-se ao seu lado na defesa dos seus mais elementares direitos”. .O óbice Belo.Esse papel foi reconhecido pelo Comité Nobel da Paz, em 1996, ao agraciar o bispo Ximenes Belo com o famoso prémio, em conjunto com José Ramos-Horta. Enquanto este último veio a traçar um caminho na política timorense - é hoje o presidente do país -, o salesiano alegou razões de saúde e, no ano em que Timor-Leste se tornou oficialmente independente, 2002, apresentou a sua demissão do cargo e saiu do país. Segundo a jornalista neerlandesa Tjiyske Lingsma, que há dois anos publicou uma investigação sobre alegados abusos sexuais a menores por parte de Ximenes Belo, as denúncias começaram no ano em que o bispo se demitiu. Em declarações à Associated Press (AP), explicou que só pôde ocupar-se do dossiê e munir-se de provas ao fim de duas décadas. O Vaticano, que em 2004 o enviou em missão para Moçambique, reconheceu estar a par das alegações desde 2019 e que sancionou Ximenes Belo em 2020. No ano passado, também em entrevista à AP, Francisco admitiu que o timorense, a viver em Portugal, teve um tratamento de exceção que não é admissível na atualidade. “Isso é uma coisa muito antiga, onde essa consciência de hoje não existia. E quando se soube do caso do bispo de Timor-Leste, eu disse: ‘Sim, deixem-no às claras’. Não vou encobrir o assunto. Mas estas foram decisões tomadas há 25 anos, quando não havia esta consciência.” Irá Francisco abordar o tema em Díli? “Penso que este é o momento para o Papa dizer algumas palavras às vítimas, pedir desculpa”, considerou Lingsma, que disse ainda conhecer alegações em curso contra “quatro ou cinco” outros membros do clero, incluindo dois que já morreram. “Isso também mostra que todo este sistema de denúncia não funciona de todo”, disse a jornalista. Numa das nações mais novas do planeta, é natural que o Papa aborde outros temas menos polarizadores como o desenvolvimento sustentável ou a defesa dos recursos naturais. Para o teólogo Michel Chambon, o objetivo da viagem por quatro países tão diversos é o de “reforçar a soberania do Papa e o papel da Santa Sé junto dos católicos locais, para criar comunhão”, disse à AFP. “Se a Santa Sé quer mostrar a sua universalidade, tem de se juntar às tradições asiáticas que, cada vez mais, desempenham um papel importante na ordem internacional.” Há ainda outros temas delicados que Francisco poderá aflorar. Na Papua-Nova Guiné, ao não ficar pela capital, Port Moresby, e visitar Vanimo, cidade que vive da exploração da madeira, chama a atenção para a ameaça das desflorestação de uma das maiores florestas tropicais do mundo. Mas, ao mesmo tempo, ao dirigir-se para uma localidade fronteiriça com a província indonésia da Papua, o gesto poderá ser visto como um sinal aos movimentos independentistas. Lógica similar aplica-se a Singapura, última etapa do périplo asiático. Em primeiro plano, Francisco vai celebrar a diversidade religiosa da cidade-estado, ao visitar um instituto universitário católico que acolhe uma maioria de estudantes de outras confissões. Em segundo plano estão as relações com a China, país cuja etnia maioritária, han, é também a de Singapura. Bergoglio disse recentemente querer deslocar-se a Pequim, embora seja uma impossibilidade enquanto a Santa Sé reconhecer Taiwan. De Hong Kong é esperada uma delegação de 40 pessoas em Singapura, pelo que o estatuto de autonomia da região em relação à China poderá ser abordado..Quando João Paulo II não beijou o solo.MANUEL CENETA / AFP.Em outubro de 1989, João Paulo II visitou Timor-Leste sob ocupação indonésia, vindo de Jacarta. Ao chegar a Díli, o pontífice polaco não beijou o solo, tendo guardado esse gesto típico de quando chegava a um país para o interior da Igreja Catedral, segundo contou anos mais tarde Ximenes Belo (à direita do Papa na foto). Em Portugal, país legalmente administrante, houve controvérsia. Mas os timorenses aproveitaram a oportunidade para se manifestarem durante a missa celebrada em Tasi Tolu, ainda que reprimidos pelas forças de segurança, e na qual João Paulo II beijou uma cruz pousada numa almofada no chão. “João Paulo II recolocou Timor-Leste no mapa do mundo e na agenda internacional”, disse José Ramos-Horta em 2005, aquando da morte de Karol Wojtyla..cesar.avo@dn.pt