Ex-ministro brasileiro Tarso Genro participa, em Lisboa, do “Colóquio Herança Universal de Abril”.
Ex-ministro brasileiro Tarso Genro participa, em Lisboa, do “Colóquio Herança Universal de Abril”.Paulo Spranger / Global Imagens

Tarso Genro: “Como não temos um centro político (...) temos uma democracia débil”

Ex-ministro nos dois primeiros Governos de Lula da Silva e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), Tarso Genro é uma das vozes mais atuantes da esquerda brasileira na atualidade. Está em Lisboa para um colóquio de lideranças do mesmo espectro político.
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Tarso Genro tem uma carreira política de grande visibilidade no Brasil. Foi por duas vezes presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, estado do qual também foi governador. Ocupou os cargos de ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça nos mandatos de Lula da Silva entre 2003 e 2011. De passagem por Lisboa para conduzir o “Colóquio Herança Universal de Abril”, organizado pelo Instituto Novos Paradigmas, entidade da qual é presidente, Genro aproveita para ressaltar a importância da Revolução dos Cravos para o Brasil. Revela ao DN ter sido amigo de Mário Soares e diz respirar aliviado pelo rumo que o Governo de Luís Montenegro tem seguido até aqui.

Qual é a conexão do 25 de Abril com o Brasil e como é que podemos relacioná-lo aos dias de hoje?

O Brasil foi fundado culturalmente e politicamente por Portugal. Então temos uma relação histórica e de empatia muito importante na nossa formação política. E nós tivemos recentemente uma tentativa de golpe de Estado no Brasil. que foi promovida pelo próprio presidente que terminava o mandato, e teve um impacto muito grande na sociedade brasileira (…) Para nós, Portugal é um padrão político, democrático, que se instalou aqui com a Revolução dos Cravos, que sempre nos interessou muito e que teve uma relação muito forte também com o processo de democratização no Brasil. Mário Soares era uma figura presente lá. Inclusive, era meu amigo pessoal, sempre que vinha a Portugal, até jantava na casa dele. E a Revolução de Abril nunca foi debatida em profundidade lá no Brasil (…). Temos um carinho político por Portugal e pela revolução. Para nós, tem um significado muito grande, porque nós temos uma questão militar ainda, no Brasil, não resolvida. Isso se viu agora nessa tentativa de golpe. Aqui em Portugal vocês têm um centro. No Brasil não temos um centro. O centro no Brasil é uma relação oportunista. Ora com a extrema-direita, ora com a direita, ora com a centro-esquerda, ora com a esquerda, dependendo da correlação de forças que se estabelece. Como não tem um centro político estruturado, capaz de ter interferência política e doutrinária para o que vai acontecer no futuro, nós temos uma democracia mais débil. E  isso tem reflexo nas forças armadas. Nós tivemos a sorte de não ter um golpe militar, porque o próprio governo Lula que assumia não tinha contatos com as Forças Armadas para garantir a sua posse. Quem fez isso foi o Supremo Tribunal Federal e alguns das Forças Armadas que não aceitavam mais participar do golpe. Mas não fizeram isso, na minha opinião, por uma convicção democrática. Fizeram por falta de apoio internacional. Então, hoje, temos uma maioria legalista das Forças Armadas, eu diria até democrática, de acordo com a Constituição de 1988, mas não é hegemônica ainda.


Qual é então a sua avaliação desse momento do Governo de Lula com relação ao centro?
Pode-se dizer que a inexistência de um centro transforma o Brasil no país mais difícil da América Latina, e, talvez, em toda a civilização ocidental, de fazer um governo centro-esquerda com estabilidade. O grande mérito que o presidente Lula teve no seu primeiro, segundo e agora terceiro Governo é saber coesionar forças muito diferentes para manter a estabilidade. Mas para isso tem que fazer concessões pesadas para aquilo que se chama de centro, que não é um centro.


Falando em concessões, qual é o peso  hoje que a questão religiosa tem em determinações e concessões do  Governo  brasileiro?
Tem uma força política importante no Congresso Nacional, de certa forma, constrói a pauta da direita. A direita, como não tem um centro orgânico forte, converge para governos progressistas para fazer acordos pontuais em cima dos seus interesses, como os interesses do agronegócio. Com a presença das religiões, de dinheiro, através desses partidos novos que surgiram, ocorre um fenômeno diferente. A direita tradicional está em várias regiões do país, hoje, unida com a extrema-direita, inclusive preparando processos eleitorais municipais [autárquicos] e futuros pleitos para os governos dos estados e para Presidente da República. Então é um peso muito grande. Tivemos, nessa semana ainda, uma virada importante. Uma pauta que a extrema-direita tinha colocado para o Congresso votar, relacionada com a questão do aborto. Não é nenhuma questão universal sobre o aborto. É uma modificação na legalidade que eles queriam fazer para que os estupradores [violadores] tivessem uma pena menor do que as mulheres estupradas [caso estas realizassem um aborto]. Isto é a revelação de uma cultura inquisitória, religiosa e conservadora que detém, hoje, um terço do Congresso Nacional. E que sabe jogar essa sua força para defender outros interesses hierárquicos, de setores econômicos que dependem do Estado, de absolvição em processos relacionados com impostos. Eles têm uma força política constrangedora. Eu diria que isso está chegando ao limite hoje.

E qual é a solução para esse limite?
Em algum momento do ano que vem, o Governo definir de maneira mais precisa o seu modelo de desenvolvimento económico e social. Que ao mesmo tempo seja compatível com a globalização financeira e económica do mundo, mas que preserve a capacidade do Governo responder àquelas demandas que vêm da Constituição. A proteção social, os direitos trabalhistas, direitos da mulher, o respeito aos direitos individuais e a questão da segurança pública. São essas questões que continuam pendentes no Brasil e que, em algum momento, vão ter que integrar um projeto político para somar uma maioria mais sábia, mais qualificada e mais democrática que essa que saiu.


Mas para compatibilizar tudo isso, a gente tem um mundo atualmente completamente dividido. Aqui na Europa, a invasão da Ucrânia. Agora, a questão da Palestina. São dois pontos que geram polémicas quando fala-se internacionalmente sobre a postura do Presidente Lula e posicionamentos do Governo brasileiro. É possível, então, o Brasil ainda conseguir fazer essa articulação global já que suas ações diante desses dois conflitos não são as que o Ocidente, Estados Unidos, União Europeia, espera?
Essa possibilidade está dada, na minha opinião. Porque se a gente observar com uma certa distância, assim, menos ideológica, tem duas vertentes de comunhão global, que é o império do capital financeiro sobre a vida pública e o Estado. Todos os Estados, não somente os Estados de segundo ou terceiro grau de importância econômica no mundo. E a questão ambiental. Essas duas vertentes, como adequar-se às exigências do capital financeiro na questão da sanidade do Estado e a questão ambiental, colocam duas possibilidades enormes para um Governo trabalhar hoje. Por exemplo, financiamento de projetos ambientais de sustentabilidade no Brasil são chaves hoje para os países mais desenvolvidos (…) e a questão do capital financeiro, que é o elo dominante através do qual os países do núcleo orgânico do sistema de capital interferem nos Estados, o Brasil tem condições de liderar uma negociação sobre isso. Porque é um país forte. O Brasil não é um país pobre, é um país rico. O Brasil tem uma riqueza mal distribuída. O Brasil tem um rico tecido acadêmico, um rico tecido de pesquisa científica e tecnológica, tem um rico tecido de produção de alimentos, e tem uma condição ambiental favorável à produção de energia limpa. Então, conjugando esses dois fatores, é possível desenhar um novo modelo. A oportunidade para fazer isso está dada pela catástrofe que ocorreu no meu estado (…). A recuperação ambiental e natural do Rio Grande do Sul tem a possibilidade de captar recursos extraordinários em todo o mundo. Banco dos BRICS, Banco Mundial, BID, utilizando o BNDES para isso. A reconstrução já está sendo feita. Pontes, estradas, escolas, institutos do poder público estão sendo reconstruídos. Mas para a construção de um modo ambiental é captar internacionalmente para o que vai reconstruir também para que seja um modelo que se vincule a todas as questões ambientais do Brasil.

Para encerrarmos o tópico “Brasil”. Em 2026, Lula será candidato?
Eu acho que não. Eu conheço ele muito, trabalhei com ele durante 10 anos no Governo e for a também, dentro do partido, e ele não é uma pessoa ambiciosa. É um idealista e um líder carismático, que sabe lidar com as pessoas e sabe formar boas equipes também. E é um grande conciliador. O Lula foi visto na sociedade mundial como se fosse um radical, um homem de esquerda. Nunca foi. O Lula, politicamente, é um homem de centro, progressista, que gosta da centro-esquerda e que forma a coalizão de centro-esquerda. Nunca foi um revolucionário, como pretendia, inclusive, em certos setores do nosso partido. Mas à medida que o Lula, vamos dizer assim, viabilizou-se através de um partido que ele criou, ele também interferiu nesse partido e ele fez esse partido também à sua semelhança ideológica e política. Então, hoje, o Partido dos Trabalhadores é, na verdade, um partido de centro-esquerda. Não é um partido de esquerda como era, originalmente. E o Lula sempre disse, ‘eu sou a esquerda possível e tenho que governar num país diverso, prestigiando a construção ideológica de um centro político, para o país poder ter estabilidade’. E é o que ele vem fazendo. Hoje está mais difícil isso em função do surgimento desses partidecos oportunistas, religiosos, que utilizam a religião, na verdade, para fazer política e para ganhar dinheiro. O que não quer dizer que todos os evangélicos no Brasil sejam isso (…) Enfim, não sei se eu respondi objetivamente à tua pergunta.

Pela sua experiência e pela sua proximidade com o presidente, o que é que ele vai fazer ao longo desses dois anos que restam com relação à sucessão e ao próprio partido? 
Eu acho que o Lula não está preocupado com isso atualmente. E o partido é mais hoje um produtor de ideias para a sociedade do que um produtor de projetos para o Governo. Porque a maioria do partido acha que a governança do Lula é a melhor governança possível no contexto global, local e latino-americano. Então não há uma tensão do partido para influir no Lula. E nem o partido tem força para isso. Porque a ampla maioria do partido acha que nós atingimos o nosso melhor limite de possibilidades com o governo Lula (…). O Lula não tem um projeto complexo. A marca pessoal dele é lutar contra a miséria, contra a exclusão, melhorar a condição de vida dos povos. E isso ele já conseguiu nos seus governos. Então eu e uma grande parte do partido achamos que esta oportunidade do terceiro governo é marcar o modelo de desenvolvimento econômico, não através de uma visão nacional democrática clássica, mas sim, através de uma visão de desenvolvimento econômico socioambiental, de recoesão social do Brasil e de fazer as pazes com a natureza.


Vamos voltar para Portugal. Como é que olha atualmente para o Governo de Portugal? Um governo recente, está ainda a apresentar as suas medidas e propostas e também a trabalhar em um novo cenário, uma composição de Parlamento que é diferente do que o anterior primeiro-ministro, António Costa, enfrentou.
O olhar da esquerda brasileira sobre Portugal tem uma marca muito clara na ampla maioria da esquerda. Olhar o Governo não somente a partir da sua conformação ideológica nessas posições mais tradicionais, esquerda, centro, centro-esquerda e direita, mas se é um Governo que chegou no Estado democraticamente. Lá no Brasil, a maioria da esquerda brasileira tem um enorme respeito pelo processo político português e respira em paz vendo que o Governo que foi eleito aqui, centro-direita, não premiou um acordo com a extrema-direita. A nossa preocupação lá era que o Governo fosse obrigado, como ocorre na maioria dos países que chegam nessa situação de crise, a ter que governar com a extrema-direita. É o que nos unifica em relação ao Governo português. A minha opinião pessoal é que a esquerda portuguesa não pode criar uma situação de desequilíbrio nas relações políticas internas que obrigue o Governo atual, para se manter, ter que fazer acordo com a extrema-direita. A política migratória é um ponto de visão muito intenso. Muito complicado. Mas aí tem as barreiras também dos protocolos internacionais sobre migração que tem que ser respeitados também democraticamente pelo governo e tem as negociações para serem feitas internamente para que isso não ocorra.

Temos uma situação muito intensa com relação à imigração. É uma agenda que, na União Europeia, define eleições e condiciona o debate público. Aqui em Portugal, são 600 mil os brasileiros, a maior comunidade imigrante, totalmente afetada por qualquer decisão que os governos tomem nesse momento.
Eu não teria ousadia de dar uma opinião sobre qual deve ser o comportamento do Governo português sobre a imigração. Eu só lembro que tem uma dívida de Portugal histórica, profunda, com a África negra a partir do sistema colonial. Eu sinceramente não acredito que o Governo atual, pelo menos tanto quanto eu conheço das suas características, vá ter uma posição de rejeição dos imigrantes como têm os países da extrema-direita europeia. Acho que isso é impossível. Até porque tem também uma miscigenação sociorracial aqui em Portugal que já o coloca mais ou menos como um país como o Brasil, um país profundamente miscigenado. Seria difícil ter uma posição hostil de mandar os imigrantes de volta, como eu ouvi a extrema-direita portuguesa dizer isso.

Aqui é “volta pra tua terra”, a expressão favorita.
Exatamente.

No colóquio, tem a participação de lideranças da esquerda portuguesa. Essa sua fala, de que a esquerda em Portugal não pode se tornar esse obstáculo faça com que o Governo caia para o lado da extrema-direita em alguma decisão, vai compartilhá-la nos seus encontros para servir, digamos, de alerta para a esquerda portuguesa?
É um estilo coloquial a nossa reunião, é mais de prospecção de temas e assuntos que não vão chegar a parte de dar conselhos e traçar políticas para os outros países. A grande preocupação que nós temos lá no Brasil, e que está relacionado, inclusive, com o futuro das eleições, é da possibilidade de se formar um bloco onde a direita conservadora tradicional, a direita clássica, a direita ideológica, que cria uma aparência de centro nas suas políticas e precisa da extrema-direita para se eleger. Isso seria o pior para o país, eu acho que seria o pior para qualquer país. E eu acho que a experiência que Portugal tem nas relações com as suas ex-colônias e a relação com os países africanos não cria essa possibilidade, na minha opinião, de formar uma maioria de um governo com a extrema-direita. Mas hoje a gente não pode apostar em nada de maneira definitiva.


caroline.ribeiro@dn.pt

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