É um antigo ministro espanhol, que viveu sob o franquismo e sabemos como o 25 de Abril de 1974 teve um grande impacto em Espanha, então ainda em ditadura. Como conhecedor da América Latina, há também um impacto da Revolução Portuguesa no outro lado do Atlântico?Diria que a Revolução Portuguesa, que foi uma porta de esperança para todos nós em Espanha, foi também, com a transição democrática espanhola, uma porta para a consolidação democrática na América Latina. Não nos podemos esquecer que no último quartel do século passado houve muitas ditaduras na América Latina, e muito cruéis. É certo que as do Chile e da Argentina ainda coincidem com as transições democráticas espanhola e portuguesa, mas também é certo que as consolidações democráticas na Península Ibérica influenciaram as consolidações democráticas na América Latina. Quando falamos de Mário Soares falamos de um opositor a Salazar, mas também do homem que se tornará ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro e Presidente da República. Interessava-se pela América Latina?Desde o início da década de 1970, quando ainda estava exilado, como dirigente da Internacional Socialista Mário Soares esteve ligado à América Latina, representando a social-democracia europeia e propondo em muitos países - visitou mais de dez numa viagem - precisamente o modelo social-democrata que sempre o caracterizou. Tanto como dirigente da Internacional Socialista, como depois como líder máximo do seu país, Soares sempre teve uma visão, um tanto crítica, porque costumava dizer que Espanha e Portugal não tinham feito o suficiente para ajudar a América Latina, e isso sempre o acompanhou nas visitas aos países latino-americanos. Sim, foi um grande embaixador da social-democracia e da democracia em muitos países da América Latina.Mário Soares acreditava na ideia da Ibero-América como uma comunidade de língua e cultura, mas também de valores? Sim, com certeza que sim, e de facto, foi um homem que trabalhou ao lado de Felipe González na criação da Comunidade Ibero-Americana, que mais tarde se tornou a Secretaria Geral Ibero-Americana. Foram protagonistas da primeira grande cimeira ibero-americana realizada em 1991 em Guadalajara, no México. Quando Mário Soares e outros líderes desse campo socialista, ou social-democrata, falavam de Cuba, e do comunismo na ilha, era uma relação especial? Diria que nos anos 1970, e talvez até nos anos 1980, a esquerda europeia tinha uma visão mais compreensiva da experiência cubana. Mas com o passar do tempo, tanto Soares como os socialistas espanhóis perderam a confiança na possibilidade de evolução do país. Infelizmente, os acontecimentos mostraram que tinham razão. Mas sim, é preciso dizer que em Mário Soares e Felipe González, e em muitos outros líderes da social-democracia europeia, havia uma admiração pelo triunfo da Revolução Cubana, a chamada Revolução dos Barbudos, e uma certa simpatia pelo significado social desse triunfo. Mas sempre trabalharam para garantir que o regime avançava, progredia em direção a fórmulas democráticas, e ficaram profundamente desiludidos porque, infelizmente, não houve evolução democrática em direção à liberdade no comunismo cubano. A imagem que Cuba nos oferece hoje é prova de um completo fracasso social e político.Imaginando que Mário Soares olhava hoje para a América Latina, ficaria satisfeito com o nível de democracia da região?Não, acho que não. Penso que Mário Soares estaria, como todos nós, preocupado com o que se está a passar. Na América Latina, existe atualmente uma enorme divisão política entre aquilo a que chamaríamos as tentações autoritárias da velha esquerda, tanto em Cuba como na Venezuela, e certamente na Nicarágua, mas também há uma direita que coloca a segurança acima da democracia, como acontece em El Salvador, ou destrói a coesão social, como se pode ver na Argentina. Tirando o facto de que cada país é diferente e que as suas circunstâncias devem ser respeitada, a verdade é que a democracia na América Latina está a sofrer, como em todo o mundo, uma crise existencial. Mas é mais pronunciada porque os hábitos democráticos das sociedades latino-americanas são muito débeis. Não existe uma tradição democrática forte porque os freios e contrapesos são débeis, os Estados são débeis, não fornecem serviços públicos suficientes, e os cidadãos perderam a confiança na democracia. Que pretende a Plataforma Ibero-americana para a Democracia que está a promover? Acreditamos que esta crise democrática que está a ocorrer em todo o mundo - estas tentações autoritárias, esta fraqueza institucional, esta desconfiança dos cidadãos - é um sério ataque, tanto mais que, nos últimos tempos, convergiram forças antidemocráticas muito poderosas, do Kremlin a Washington. Os oligarcas da tecnologia, as redes sociais, a polarização política, etc., estão a minar seriamente os alicerces da coexistência democrática. A plataforma que lançámos visa oferecer um espaço aberto e pluralista para vozes de um certo calibre enriquecerem o nosso debate democrático, defendendo a necessidade da separação de poderes, a força das nossas instituições, o respeito pela lei e eleições justas - princípios que acreditávamos estarem seguros e que vemos tão seriamente questionados. É por isso que quisemos oferecer uma plataforma digital que incorporasse as melhores vozes da comunidade ibero-americana neste pensamento construtivo para uma democracia renovada e fortalecida na América Latina, e nos nossos países também.