Rostos de Israel: Da mãe do refém que recusa ser vítima à mãe do soldado morto que quer vingança
A tampa do teclado do piano na sala de Idit Ohel, em Lavon, no norte de Israel, continua aberta como no dia em que o filho mais velho, Alon, tocou umas músicas antes de partir com os amigos para o Festival Nova. “Quando chegava a casa ou antes de sair, tocava sempre alguma coisa. Mas fechava sempre a tampa. Não sei porque não o fez naquela noite. Só reparámos mais tarde”, conta. Em fevereiro, Alon fez 24 anos. Foi o seu segundo aniversário fechado nos túneis do Hamas na Faixa de Gaza.
Só quando os reféns da última troca negociada entre Israel e o grupo terrorista foram libertados Idit descobriu que o filho estava vivo, mas ferido com estilhaços desde o ataque de 7 de outubro de 2023. Um deles alojado no olho direito, do qual já não vê, correndo o risco de ficar totalmente cego. E descobriu também que, depois de mais de 500 dias a viver numa sala com outros três reféns, a partilhar por vezes só um pão pita por dia, estava agora sozinho. Acorrentado nas pernas, como sempre esteve, sem ver a luz do sol, sem saber o que se passa no exterior, a contar os dias pelos chamamentos para as orações. Cinco por dia.
Os vídeos encontrados no telemóvel de Alon e os relatos dos amigos (dois morreram e dois sobreviveram) revelam o que aconteceu naquela madrugada. Um deles mostra Alon a dançar aos ombros de um dos amigos. “Eles divertiram-se e dançaram durante cerca de meia hora. Então, alguns rockets começaram a cair e perceberam que tinham que procurar abrigo. Entraram num carro”, refere Idit, explicando que a polícia não os deixou continuar para norte, porque estava a acontecer alguma coisa. Normalmente, seis ou sete pessoas refugiam-se num abrigo. Naquele dia, havia 27 a tentar proteger-se. A última mensagem que Alon enviou para o telemóvel do pai: “Estamos num abrigo. Estou bem.”
Mas o pesadelo ainda só tinha começado. “Eles estavam lá há dez ou 20 minutos quando o Hamas chegou. Começaram a atirar granadas para dentro do abrigo e eles começaram a atirá-las de volta”, conta. O filho ligou para a polícia a pedir ajuda, mas esta não chegou, disseram-lhes que se tinham que safar sozinhos. Outro vídeo, filmado pelos terroristas, mostra o momento em que Alon e outras três pessoas são arrastadas, agredidas e metidas numa carrinha pick-up.
Uma chuva de balas caiu sobre os que continuavam no interior do abrigo, com os corpos a cair uns em cima dos outros. Só sete pessoas sobreviveram, tendo ficado durante horas sob os cadáveres. Na véspera da conversa com Idit, o DN tinha estado no memorial improvisado que foi criado no local do Nova para homenagear as 364 pessoas que ali morreram e passado junto ao abrigo onde Alon procurou refúgio, também coberto de homenagens.
Quando estava grávida, Idit costumava pôr os headphones na barriga para que o bebé crescesse a ouvir música clássica. “Ele nasceu para a música. A música e o piano são parte dele.” Foi aos nove anos que Alon decidiu que era esse instrumento que queria tocar. Os pais duvidaram e compraram apenas um teclado, mas arranjaram uma professora de piano. “À terceira semana, ela disse-nos: ou lhe compram um piano ou não volto. Perguntámos porquê e ela explicou que ele tinha um grande talento.”
O piano que está na sala é o terceiro que lhe compraram. Alon estudou música no secundário, tendo resolvido fazer a parte do recital em menos de um ano - normalmente os alunos estudam três anos para isso. Praticava três a quatro horas por dia, todos os dias, abdicando de muitas coisas na juventude. E superou as expectativas. “Teve 100% no recital, o que é muito raro. Ele é muito talentoso”, conta Idit, dizendo que apesar da formação em música clássica, o filho é um músico de jazz no seu coração.
Na rebatizada “Praça dos Reféns” em Telavive, há um piano. Em cima tem uma mensagem a amarelo: “You are not alone.” Não estás sozinho, fazendo-se um jogo de palavras entre “Alon” e “alone”. Todos são convidados a tocar, atraindo a multidão e deixando de estar sozinhos. Outros pianos amarelos (o laço amarelo tornou-se símbolo do apoio aos reféns) foram colocados noutras cidades por todo o mundo, em homenagem a Alon.
Depois de terminar o secundário, ele queria conhecer o mundo e foi trabalhar para um hotel para ganhar dinheiro. Ao fim de uns meses, partiu para a sua viagem pela Ásia. Começou no Vietname, foi às Filipinas, Nepal, Índia, Sri Lanka, Tailândia... Idit vai contando a história do filho junto ao ecrã de televisão da sala, onde vão passando as fotos de Alon. Há uma delas que é especial. Idit surge de costas, num abraço apertado ao filho, que sorri. “Não nos víamos há cinco meses e fomos ter com ele à Tailândia. Este é o primeiro momento em que nos vemos no aeroporto. Ele viu-me e começou a correr e depois abraçou-me. Este é o sorriso que quero ver muito em breve”, disse.
Idit abriu as portas da sua casa ao grupo de jornalistas um dia depois de Israel voltar a bombardear a Faixa de Gaza. E isso deixou-a preocupada. “Do que ouvi dos reféns que foram libertados, sei que a situação piora quando há bombardeamentos. Estou preocupada agora porque provavelmente estão a fazê-lo passar fome outra vez”, explica. Quando o DN lhe pergunta se acha que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, ainda está a pensar nos reféns quando bombardeia Gaza, responde simplesmente: “Acho que Netanyahu está a fazer o que pensa ser certo... para este país.”
A mãe de Alon fala em “resiliência em tempo de crise”, mas diz que ela já não está a 7 de outubro de 2023. “Estamos em 2025, por isso já avancei. Acho que também o Alon o fez. Está a gerir a situação e a sobreviver. Sei que faz meditação, como eu faço”, explica, lembrando o momento em que soube que o filho tinha sido raptado. “Respirei fundo, fechei os olhos, e disse para mim: vamos fazer tudo o que está nas nossas mãos para o trazer de volta. Mas eu soube logo que não tenho controlo em relação ao que está a acontecer com o meu filho. Só posso controlar para que casa, para que lar, ele vai voltar. É aí que eu estou”, explicou. “Eu não sou uma vítima, nunca me vou ver como uma vítima, acho que isso é o mais importante.”
30 horas escondido em casa
Shachar Shnurman recebe o grupo de jornalistas estrangeiros no alpendre da sua casa no centro do kibbutz de Kfar Aza, no sul de Israel. Em cima da mesa, à volta da qual se podem sentar mais de duas dezenas de pessoas, há águas e Coca-Colas saídas do frigorífico que fica ali mesmo no exterior. A mesma mesa onde, no 7 de Outubro, vários terroristas do Hamas se sentaram a beber outras Coca-Colas tiradas desse mesmo frigorífico, numa pausa no terror que espalharam por esta comunidade. Shachar e a mulher estavam escondidos no interior da casa, onde por milagre ninguém tentou entrar. E assim ficaram 30 horas até serem retirados pelo Exército israelita ainda debaixo de fogo.
“Estávamos sentados a beber um café quando começou a chuva de mísseis”, conta Shachar, explicando que bastou uns segundos para perceber que deviam procurar refúgio no quarto seguro. E que este não era um ataque como os outros.
Da equipa de segurança receberam várias mensagens. “A primeira era para estarmos alerta, que havia provavelmente terroristas dentro do kibbutz. Depois que tínhamos de nos trancar dentro das salas seguras.” Dez minutos depois, Shachar e a mulher começaram a ouvir os terroristas no exterior da casa.
O kibbutz de Kfar Aza, que foi criado nos anos 1950, fica mesmo junto à fronteira com a Faixa de Gaza. Para lá da vedação elétrica - que, se for violada, envia um alerta para a Base Militar de Nahal Oz, a poucos minutos de distância -, ficam os campos de cultivo. Depois há uma estrada e o muro, que separa o território israelita do enclave palestiniano. Ao fundo veem-se os edifícios de Shejaya, nos arredores da cidade de Gaza.
O que aconteceu no 7 de Outubro foi inédito, mas há mais de 20 anos que o kibbutz vivia com a ameaça do Hamas. Dos rockets Qassam, construídos com canos, aos morteiros de fabrico militar, contrabandeados para Gaza, passando pelos balões incendiários (alguns feitos com preservativos), com os terroristas a aproveitarem o vento que sopra do Mediterrâneo na primavera e no verão. Às vezes quando soam os alarmes, já o projétil caiu.
Escondido no seu quarto seguro, Shachar recebia mensagens dos amigos. Um deles pediu-lhe que fosse ver da mulher, que não conseguia contactar e que vivia na casa ao lado. “Levei uma navalha e saí. Encontrei a minha vizinha depois de ela ter sido morta. Voltei para junto da minha mulher e contei-lhe. Ela começou a chorar, mas disse-lhe que não era hora de chorar. Era hora de lutar. E decidimos lutar pela nossa vida se os terroristas entrassem em casa. Eles não o fizeram.”
Num dos momentos em que arriscou espreitar por uma janela, Shachar viu três pessoas com um uniforme das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). “Disse à minha mulher, vou chamá-los, porque vão proteger-nos. E um segundo antes de o fazer, reparo que têm AK-47. É uma arma russa e o Exército israelita não as usa. Percebi que tinha de continuar escondido”, explica.
“Nas primeiras horas, a minha mulher perguntava o tempo todo quando é que o Exército vai chegar. Eu dizia-lhe, mais meia hora, mais meia hora. Mas após umas horas, ela percebeu que eu não sabia nada e que estava a mentir.”
O medo salvou-a
Quem não estava em casa no 7 de Outubro era Orit Zadikevitch, de 57 anos, que cresceu no kibbutz numa altura em que ainda era possível ir passar o dia à praia em Gaza. “O 6 de outubro era feriado e os meus filhos passaram o dia com o pai fora do kibbutz”, explica, dizendo que estava separada há quatro anos do marido e pai dos quatro filhos, Omer. “Eu festejei aqui, mas quando era hora de ir para a cama, senti-me muito assustada. Acontece-me muito não conseguir ir dormir sozinha, então vou até à casa da minha mãe, aqui ao lado - não que ela me vá proteger, mas sinto-me mais segura - ou vou até à casa de amigos, fora do kibbutz”. E foi isso que fez naquela noite. “Foi isso que me salvou.”
Orit acordou às 6h30 numa localidade próximo de Telavive e percebeu que algo estava a acontecer em Kfar Aza. Começou a ligar aos filhos e descobriu que estavam todos bem. Mas e a mãe? A irmã? O ex-marido?
Omer tinha falado com a filha, a dizer que não a ia visitar como era suposto, porque estava algo a acontecer e ia ter de ir abrir a sala de controlo do Conselho Regional, preparada para situações de emergência, a cerca de 10 minutos de distância. “Às 7h30 localizámos o telemóvel dele no parque de estacionamento, mas não percebíamos por que é que o telemóvel não se movia. Achámos que tinha fugido e o tinha deixado para trás, que podia estar no hospital. Só 30 horas depois um soldado ligou e perguntou se ele tinha uma tatuagem de ondas”, conta Orit, dizendo que Omer era surfista. “O soldado tinha encontrado o corpo. Ele morreu atingido a tiro no parque de estacionamento.”
A irmã também perdeu o marido, o responsável pela segurança do kibbutz. A mãe, de 84 anos, sobreviveu dentro do quarto seguro da própria casa. O edifício tinha sido atingido diretamente por um dos rockets lançados no início do ataque e os terroristas não conseguiram passar. “Antes do 7 de Outubro, antes de ir para a cama, costumava pensar numa mãe em Gaza, que também quer uma existência e uma vida pacífica connosco. Agora lamento, não consigo pensar nela. Penso na minha família, na minha perda. Penso na minha amiga Dori, com quem cresci, que mataram junto com o marido. O sangue escorria da cama e o filho deles estava escondido lá debaixo...”
No total, 62 residentes - incluindo cinco soldados - e 19 membros das forças de segurança foram mortos em Kfar Aza, com 19 civis a serem levados como reféns. Dois deles foram mais tarde confundidos com terroristas e mortos pelas IDF quando tentavam fugir dos captores. Outros 15 reféns regressaram nos acordos feitos com o grupo terrorista. E dois ainda continuam em Gaza: os gémeos Ziv e Gali Berman, já com 27 anos. As fotos de ambos estão espalhadas pelo kibbutz, onde as marcas do que se passou ainda são visíveis.
Numa casa de esquina, na zona onde os jovens viviam, o buraco na parede lembra como foi preciso usar um tanque para obrigar dois terroristas do Hamas que lá se tinham entrincheirado a sair. Mais à frente, podemos entrar na casa onde Sivan Elkabets e Naor Hasidim foram mortos. As marcas de balas estão por todo o lado, incluindo no teto. Os sinais de violência são interrompidos pelos rostos de felicidade nas fotos do casal de namorados, que as famílias fizeram questão em expor.
Antes do 7 de Outubro, 950 pessoas viviam no kibbutz. Apenas três dezenas tinham regressado quando o visitámos. Shachar e a mulher, que não têm filhos, foram os primeiros a voltar, logo em dezembro de 2023. Ele não nasceu no Kfar Aza, mas vive lá há 25 anos. “Primeiro fugimos, mas depois voltámos para reconstruir a comunidade. E esperamos que os outros regressem. E que seja em breve, mas não sabemos quando.”
Quando o casal regressou eram eles os dois e 300 ou 400 soldados. Então a mulher resolveu começar a cozinhar para eles. “Pensámos que seria bom fazer um pequeno churrasco, que talvez 30 ou 40 soldados aparecessem. Na primeira vez, vieram mais de 60 e depois foi crescendo. Há dias que são 200, vêm, tiram um pão pita e voltam aos postos. Ainda o fazemos todas as segundas-feiras”
O governo não incentiva os regressos, porque a guerra ainda não acabou e é mais fácil renovar o kibbutz estando vazio. “Mas eu nunca pedi autorização ao governo ou ao Exército. E quando eles me dizem alguma coisa, eu pergunto: ‘Onde estavam a 7 de Outubro?’ Onde raios estavam entre as 5h30 da manhã, quando eles começaram a atacar, e as 8h30? Nada mais importa. No final do dia, havia 24 unidades diferentes das IDF aqui, mas não estavam coordenadas. Só na manhã seguinte é que se começaram a coordenar. O último membro do nosso kibbutz foi assassinado às 18h00, mais de 12 horas depois de o ataque começar”, diz exasperado.
A visita decorreu na véspera da rutura do cessar-fogo, antes de Israel retomar os bombardeamentos na Faixa de Gaza e voltar a impor limitações. “Esta é uma zona de guerra, não é uma zona de combate, mas é uma zona de guerra. Até todos os reféns terem sido devolvidos, nunca será normal. Não há outra forma de acabar a guerra, queremos as nossas pessoas aqui”, conta Orit.
E como é que olha para o futuro? “Vai demorar muito tempo até conseguirmos construir algum tipo de confiança entre nós. Porque nós não vamos a lado nenhum, eles não vão a lado nenhum. De alguma forma temos de encontrar uma maneira de vivermos juntos”, admite. Mas, neste momento, “se é entre eles ou eu, desculpem, mas escolho-me a mim, à minha família. Demos-lhes muitas oportunidades. O que fizeram a 7 de Outubro... Não os quero ver vivos.”
Shachar é mais positivo: “É hora de pensar no que vamos fazer no futuro. Continuar a lutar é repetir a mesma coisa, uma e outra vez. Depois do regresso de todos os reféns, porque isso é o mais importante, é preciso começar a falar em paz. Porque, se queremos um futuro dentro de 50 ou 60 anos, temos de começar agora. Esperemos que depois desta guerra horrível, as pessoas comecem a con- versar e encontremos uma forma de viver numa situação normal.”
“Demasiado minoria”
No 7 de Outubro, as vítimas do Hamas não foram só judeus. Awad Darawshe, um árabe-israelita de 23 anos, era paramédico no Festival Nova. A família pensou inicialmente que tinha sido raptado, porque viram a ambulância dele na Faixa de Gaza, nos vídeos partilhados pelos terroristas nas redes sociais. Mas depois descobriram que foi morto a tiro quando estava a fazer o curativo num dos feridos, acreditando que devia ficar no festival porque, por falar árabe e ser muçulmano, podia servir de mediador.
A sua história é contada pelo primo, Kazim Khlilih, que gosta de dizer que é “demasiado minoria”. É um árabe-israelita, é muçulmano (são cerca de 18% da população) e é homossexual. “Não é fácil ser uma minoria em geral, mas dou sempre graças a Deus de ser uma minoria aqui em Israel”, contou aos jornalistas, num encontro num hotel em Telavive.
Kazim é ainda mais minoria: serviu nas IDF. “Os árabes-israelitas não têm de fazer o Serviço Militar, mas eu voluntariei-me. Quando acabam o Secundário, os judeus vão para o Exército e os árabes, vão estudar Medicina. Porque a maioria dos árabes querem ser médicos. O meu irmão mais velho é médico”, resume.
A família não gostou da ideia de ele se alistar. “Um dia o meu pai chegou a casa e disse: ‘No próximo mês vais para Kiev, para estudar Medicina’.” Kazim recusou e, aos 25 anos, juntou-se às IDF, tendo sido o primeiro muçulmano a servir na rádio do Exército.
Depois dessa experiência seguiram-se três meses na casa do Big Brother, em Israel. “Não ganhei. Saí do programa uma semana antes da final”, explicou, mas tem aproveitado a fama nas redes sociais - tem mais de 57 mil seguidores no Instagram e está “sempre” no TikTok. E depois veio o 7 de outubro de 2023: “Odeio esse dia”, resume.
No dia do ataque do Hamas, o influencer começou a partilhar fotos de pessoas desaparecidas, usando os seus seguidores para tentar ajudar as famílias. E acabou no hospital junto a uma pessoa cuja foto tinha partilhado.
“Disse-lhe, ainda bem que estás bem. Quero mostrar-te a foto do meu primo. Diz-me se o viste. E quando mostrei a foto, a cara dele mudou. E contou-me que viu dispararem duas vezes contra ele.” Kazim resolveu não contar à tia - afinal a informação não era oficial. “Esperámos cinco dias. Depois, lembro-me que as IDF foram à casa dela. Eu estava ao telefone com a minha tia e ela começou a gritar.”
Kazim não poupa nas palavras quando diz que não quer saber das pessoas em Gaza. “Não quero saber. E não estou a ser hipócrita ao dizer isto”, afirma, lembrando o primo morto pelo Hamas, ou o melhor amigo, Jonathan Samerano, cujo corpo foi levado para o enclave e ainda lá continua. O influencer alega que o Ocidente não é capaz de perceber o que se está a passar. Limita-se a falar de Direitos Humanos em Gaza, mas foi o Hamas que começou a guerra.
“Lamento dizer, mas na guerra, as pessoas morrem.” Diz também que os EUA e a Europa não sabem o que é ter uma guerra dentro de casa e congratula-se por Israel ter a Cúpula de Ferro (parte do sistema de Defesa). “Se não tivéssemos, tínhamos morrido também tantos como eles.”
E fala no plano do presidente norte-americano, Donald Trump, de levar os palestinianos para fora de Gaza. “Preferia que fossem para um país pobre, mas às vezes gostaria que fossem para a Europa ou para os EUA. Para vocês verem como é. Se conseguirem viver com eles duas horas, eu entrego-lhes Jerusalém. Mas vocês não aguentariam”, afirma.
Um filho morto na guerra
A perspetiva de Lara Metodi é diferente. Nascida na África do Sul, foi presa várias vezes na juventude, na luta contra o apartheid, até que os pais tomaram a decisão de a enviar para Israel, já que corria o risco de ficar presa para sempre. “Quando vim para Israel, acreditava que todos tinham o direito de viver aqui, lado a lado. E que ia espalhar a minha mensagem, de alguém que tinha lutado pela libertação de Nelson Mandela, de que todos são iguais aos olhos de Deus”, explicou. Vive há mais de 25 anos em Ashkelon, no sul de Israel, sob a ameaça constante dos bombardeamentos.
A sua mensagem de paz mudou com os ataques do 7 de Outubro, que levaram o filho a regressar às IDF e a estar na linha da frente na Faixa de Gaza, onde foi morto por uma bomba deixada pelo Hamas. Nitai tinha 23 anos. “O meu filho tinha servido cinco anos no Exército e estava a viver na Austrália, tinha tirado um ano de férias. No momento em que soube o que aconteceu, disse logo que ia regressar. Implorei que não o fizesse, que já tinha cumprido o seu dever, que ninguém ia agradecer o seu sacrifício. Mas ele amava demasiado este país e não estava preparado para deixar a sua unidade ir para a guerra sem ele.”
Depois de regressar e de passar pelo treino, Nitai esteve dois meses sem dar notícias. “Não soube nada dele, nem telefonemas, nem nada. Rezava todos os dias, não consigo explicar o ponto de vista de uma mãe. Não sabes onde está o teu filho, se vai voltar. Ouves na rádio que há soldados a morrer e, cada vez que o telefone toca e não reconheces o número, o teu coração parte-se e pensas que o teu filho morreu. Até que um dia o meu ex-marido me disse. Se o Nitai morrer, nunca o ouvirás pelo telefone, eles vêm até à tua porta.”
Ao final desses primeiros dois meses, o filho regressou a casa e até viajou para Paris, com a namorada. Mas voltou de novo para a frente. “A 23 de agosto, entrou numa casa que tinha sido limpa. Eles tinham enviado drones, tinham enviado cães. Foi o primeiro a entrar e pisou numa bomba que não tinha sido detetada. Morreu de imediato.” Foi o 698.º soldado a ser morto.
Lara sente que falhou como mãe, porque não conseguiu proteger o filho. Os filhos. Os outros dois, mais novos, ainda estão no Exército. A filha está numa unidade de combate, o ex-marido também está nas IDF. Em relação aos habitantes de Gaza, só sente ódio. “Não tenho respeito nenhum por eles, porque eles não têm respeito nenhum por nós. Eles destruíram-me. Nunca vou recuperar disto, mas tenho de continuar em nome do Nitai.”
O ódio que sente é em relação ao Hamas, que acredita que não quer a paz e que, mesmo que chegue agora a algum acordo, dentro de quatro ou cinco anos voltará a atacar. “Até os destruirmos completamente, não haverá paz”, refere, explicando que chorou três dias quando foi declarado o cessar-fogo. “Então pelo que é que o meu filho tinha morrido? Como a mãe de um soldado que foi morto, só quero vingança. Deem-me uma arma e deixem-me em Gaza e eu mato o primeiro que me aparecer à frente.”
De Gaza para os colonatos
Antes do verão de 2005, Eve Harow mudou-se com a família para a Faixa de Gaza. Esperava impedir a retirada unilateral que já se adivinhava. “Eu sabia que isso ia levar ao que aconteceu, que o Hamas ia tomar o poder, que o enclave não se ia tornar no paraíso de Singapura”, explicou, considerando-se uma “sortuda” porque a sua “visão do mundo” não sofreu uma “mudança profunda” nos últimos 17 meses. “As coisas que estava preocupada que acontecessem nos últimos 30 anos, aconteceram”, explicou, referindo-se aos ataques de 7 de Outubro.
Como todos os outros israelitas que viviam na Faixa de Gaza, esta guia turística com raízes na Califónia foi obrigada pelo seu governo a sair em 2005. Desde então vive com o marido e os sete filhos em Efrat, um dos colonatos na Cisjordânia, considerado ilegal pela comunidade internacional, por ficar para lá da linha verde (a fronteira do Estado de Israel entre 1949 até ao final da Guerra dos Seis Dias, em 1967).
Eve não fala em Cisjordânia, fala em Judeia e Samaria, para reforçar as ligações do território aos judeus e à sua História. Faz parte do One Israel Fund, criado após os Acordos de Oslo para ajudar estas comunidades - incluindo a nível de segurança, diz ela que apenas com meios defensivos (coletes, kits de primeiros socorros, drones) e não com armas.
“Os colonatos deviam ser um termo de honra. As pessoas vieram até sítios onde não havia nada e construíram comunidades. Mas tornou-se um termo pejorativo”, lamenta. “O que me chateia é que certas coisas são ampliadas para lá das suas verda- deiras proporções e outras coisas nem sequer estão a ser discutidas”, referindo-se aos episódios de violência dos colonos, avisando que “99% das vezes” são os judeus que são o alvo e que “a grande maioria de quem vive nos colonatos são pessoas que cumprem a lei”.
Eve considera que Israel está a servir de tampão ao Islão radical, avisando que, se por alguma razão, o seu país cair, “a Europa e os EUA nem vão saber o que os atingiu”. E teme que o Ocidente não perceba o que está a acontecer - “2000 anos de História não se podem resumir em vídeos de 90 segundos no TikTok” - distraído com as questões dos Direitos Humanos. “Quando começou a guerra na Ucrânia, os europeus abriram a porta aos ucranianos. Não houve um país árabe que tenha aberto as portas aos palestinianos”, aponta, lembrando que nenhum outro país em guerra é obrigado a enviar ajuda humanitária para o inimigo.
As trocas de reféns por presos palestinianos, muitos deles libertados depois na Cisjordânia, preocupa muito Eve. “Não posso esperar que as famílias dos reféns tenham em conta a visão global. Não posso esperar que eles pensem que, se deixarmos agora 1000 terroristas em liberdade para recuperarem os filhos, que dentro de uns anos mais 500 israelitas serão mortos”, afirma, lembrando que foi isso que aconteceu com o arquiteto dos ataques, Yahya Sinwar (já morto por Israel), que fora libertado numa troca de reféns.
“Cada um dos meus filhos já me disse: ‘Se formos feitos reféns, não faças um acordo para nos libertares. Não queremos sair e ter sobre as nossas cabeças a vida de outras pessoas’”, conta Eve, explicando que, apesar desse apelo, não sabe que reação teria se fossem os filhos dela que estivessem agora na Faixa de Gaza.
A jornalista viajou a convite da EIPA (Associação de Imprensa Europa Israel)