Um posto de controlo no centro de Trípoli após os combates.
Um posto de controlo no centro de Trípoli após os combates.EPA/STRINGER

Quem era o líder de milícia cuja morte desencadeou três dias de combates em Trípoli?

Analistas falam na tentativa do primeiro-ministro do Governo de Unidade Nacional de centralizar o poder e de um ponto de viragem que pode fazer escalar ainda mais a violência. Cessar-fogo é frágil.
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Abdel Ghani al-Kikli, conhecido como Ghaniwa, emergiu como combatente revolucionário na Primavera Árabe de 2011 que derrubou o líder líbio, Muammar Kadhafi, tornando-se rapidamente num dos pilares na estrutura de milícias de Trípoli.

O antigo dono de uma padaria fundou o que hoje é o Aparelho de Suporte de Estabilidade (SSA), que controlava o bairro de Abu Salim, e ajudava a manter a aparência de ordem numa capital onde diferentes grupos armados marcam presença. A Amnistia Internacional acusava-o constantemente de crimes de guerra.

A sua morte na segunda-feira, após uma alegada emboscada de uma milícia rival (a Brigada 444), desencadeou três dias de combates em Trípoli que deixaram, pelo menos, oito civis mortos.

A comunidade internacional, temendo que a situação se descontrolasse, apressou-se a apelar à calma, com vários países europeus a retirarem os seus cidadãos do país.

Um cessar-fogo foi entretanto declarado, mas é frágil e teme-se que possa haver nova escalada da violência no país com dois governos rivais e um Conselho Presidencial.

Demasiado poderoso?

A SSA está ligada, mas funcionava de forma autónoma, ao Conselho Presidencial -- criado em 2015 ao abrigo de um acordo político entre esses dois governos rivais -– com o objetivo de assumir a chefia do Estado.

Mas Ghaniwa tinha-se tornado demasiado poderoso, segundo os analistas ouvidos pela AFP, e uma ameaça para o primeiro-ministro Abdel Hamid Dbeibah, que lidera o Governo de Unidade Nacional (GNU) reconhecido pelas Nações Unidas.

A Brigada 444 está alinhada com Dbeibah, que como o Conselho Presidencial está sedeado em Trípoli. Mas, no leste do país, existe um executivo rival. O Governo de Estabilidade Nacional é apoiado pelo chamado Exército Nacional Líbio, comandado pelo general Khalifa Haftar.

Segundo as Nações Unidas, após a morte de Ghaniwa as SSA terão rapidamente recuado, mas os combates continuaram entre a Brigada 444 e a Radaa ("dissuasão"), outra milícia que não apoia Dbeibah e que temia ser o próximo alvo do primeiro-ministro do GNU após este anunciar "o fim das instituições de segurança paralelas".

Na terça-feira, Dbeibah anunciou que o GNU tinha o controlo total sobre o bairro de Abu Salim, elogiando a operação como "um passo decisivo para a eliminação de grupos irregulares" e o reforço da autoridade do Estado. E indicou que o resultado "confirma que as instituições legítimas são capazes de preservar a dignidade dos seus cidadãos".

Segundo os analistas, Dbeibah tenta precisamente recuperar o controlo após anos de tolerância destes grupos armados instalados em Trípoli.

Apesar de ter anunciado o cessar-fogo ainda na terça-feira, os combates em zonas densamente povoadas da capital continuaram. Na quinta-feira, o Conselho Presidencial declarou um novo cessar-fogo, querendo acalmar a situação, mas há notícia de que reforços estão a chegar de outras cidades.

A Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia classificou a violência como "profundamente alarmante", alertando que coloca em "grave risco" inúmeros civis e exigindo um "cessar-fogo imediato e incondicional em todas as áreas povoadas".

O secretário-geral da ONU, António Guterres, apelou ao diálogo. "A natureza rápida da escalada, que atraiu grupos armados de fora da cidade e sujeitou bairros densamente povoados a fogo de artilharia pesada, foi alarmante", indicou o seu porta-voz.

Um debate sobre a situação na Líbia realizou-se na manhã desta sexta-feira no Conselho de Segurança, à porta fechada.

Caos na Líbia

Após quatro décadas no poder, o líder líbio Muammar Kadhafi foi derrubado (e morto) na revolta da Primavera Árabe de 2011, com a NATO a intervir para proteger a população civil. Apesar da realização de novas eleições, o verdadeiro poder ficou nas mãos de grupos armados e as milícias islamitas ganharam terreno – em 2015, aproveitando o caos, o Estado Islâmico chegou a conquistar a cidade de Sirte, onde Khadafi tinha nascido.

A nível político, os resultados das novas eleições em 2014 (em que participaram menos de 20% dos eleitores) foram rejeitados pelo Congresso anterior, que apontou um governo apoiado pelos grupos armados no oeste do país. Ao mesmo tempo, o novo parlamento resultado das eleições mudou-se para Tobruk, no leste da Líbia, apoiando um governo alternativo liderado pelo antigo general Khalifa Haftar. Na prática, o país ficou dividido entre as duas administrações.

Em abril de 2019, Haftar lançou uma ofensiva surpresa contra Tripoli – apoiado pelos Emirados Árabes Unidos, Egito e Rússia. Turquia, por seu lado, sai em apoio do governo no oeste do país, levando ao colapso da ofensiva. No acordo de cessar-fogo, em 2020, ambas as fações aceitam um novo Governo de Unidade Nacional e novas eleições, mas estas nunca se chegam a realizar.

Entretanto, tanto o Congresso em Trípoli como o Parlamento no Leste alegam que o GNU perdeu a legitimidade, mas Dbeibah, no poder desde 2021, recusa demitir-se.

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