Quem é Ekrem Imamoglu, o homem que vai ser eleito opositor de Erdogan depois de ter sido preso?
Em 1998, o presidente da Câmara de Istambul esteve preso durante quatro meses, condenado por ter lido um poema islamista. O autarca era Recep Tayyip Erdogan, o homem que viria a enfrentar -- e vergar -- o poder dominante, tendo essa condenação servido como rampa de lançamento para o seu projeto de poder conservador e nacionalista. Agora é a vez de o atual presidente de Istambul, Ekrem Imamoglu, estar preso. Também ele tem ambições políticas e a sua detenção só irá aumentar o seu capital. Se a pressão interna e externa não se fizer sentir poderá, no entanto, vir a ter o mesmo destino de outros políticos carismáticos que desafiaram Erdogan: desde que se tornou presidente da câmara, em 2019, foram abertas 42 investigações administrativas e 51 judiciais contra si e contra o seu gabinete, disse ao Politico o seu advogado, Mehmet Pehlivan. É até suspeito do crime de pontapear o túmulo do sultão Mehmed II.
Nascido na cidade costeira de Akçaabat, na região de Trebizonda, em 1970, numa família religiosa e conservadora, Ekrem Imamoglu aí cresceu, tendo vivido também em Chipre do Norte antes de a família se mudar para Istambul. Depois de se ter formado geriu o negócio de construção civil, onde fez fortuna. Em 2008, entrou na vida política ao aderir ao Partido Republicano do Povo (CHP).
O seu carisma começou a dar resultados em 2014, quando concorreu e foi eleito presidente do círculo de Beylikduzu, um dos 39 que formam Istambul, tendo calcorreado as ruas para auscultar a população. O seu estilo é o oposto de Erdogan, ao apostar num discurso positivo, de esperança, e inclusivo. "Vai correr tudo bem", e "Com Imamoglu há solução" eram as palavras de ordem. Na campanha eleitoral de 2019 dizia à multidão: "O que nós queremos é que todos possamos viver felizes e em paz, independentemente da nossa origem ou do nosso modo de vida. Queremos uma autarquia que respeite os seus cidadãos." O seu discurso e personalidade apelam aos eleitores conservadores, aos curdos, e às classes mais baixas que se sentiram excluídas por um certo elitismo do CHP.
Em 2019, já depois de ter vencido as eleições de Istambul por duas vezes, afirmava: "Não se pode fazer política com medo", disse em entrevista ao El País. O episódio da dupla eleição é o momento político mais extraordinário desde que Erdogan ascendeu ao poder. Depois de ter vencido com uma vantagem de 13 mil votos, o partido no poder, AKP, exigiu a recontagem. Esta foi feita e o resultado manteve-se. Ao fim de duas semanas no cargo, o órgão supervisor das eleições anulou o escrutínio, suspendeu o mandato com efeitos imediatos e marcou novas eleições: desta vez Imamoglu venceu com 800 mil votos de diferença. Pelo meio, expôs a situação em que encontrou a Câmara: disse que o gabinete do presidente da câmara só geria 40% do orçamento, estando o restante nas mãos de 28 empresas privadas, que as despesas estavam descontroladas e eram opacas e que só o presidente da edilidade tinha ao seu dispor "dezenas de automóveis". Ao regressar ao cargo, Imamoglu cortou com o financiamento de fundações de caridade geridas por membros da família de Erdogan e de outros do seu círculo, no valor de mais de cem milhões de euros.
Face aos acontecimentos de 2019, e tendo chamado de "idiotas" aos responsáveis da comissão eleitoral pela anulação das eleições, foi condenado a mais de dois anos de prisão, em 2022. Recorreu da sentença, estando o processo ainda por decidir.
Reeleito em 2024, o presidente da maior cidade da Turquia apostou em medidas sociais como uma rede de creches, refeições a preços controlados, e transportes públicos gratuitos para mulheres com filhos pequenos.
O (não) candidato óbvio
Erdogan, de 71 anos, disse no ano passado, na ressaca das eleições autárquicas, que não iria participar em mais atos eleitorais. Não há no seu partido qualquer sucessor óbvio. Mas o homem forte da Turquia também disse, nos anos 1990, que "a democracia é como um elétrico: entramos nele até chegarmos ao nosso destino e depois saímos". A Constituição atual, referendada em 2010 e 2017, foi desenhada aos seus moldes para reforçar os poderes do presidente, cargo que Erdogan desempenha depois de mais de 11 anos como primeiro-ministro (cargo entretanto abolido). O texto fundamental prevê um limite de dois mandatos. Erdogan pôde concorrer em 2023 alegando que o mandato entre 2014 e 2018 não conta porque foi exercido num anterior sistema político.
Agora, os observadores dividem-se: ou Erdogan convoca eleições antecipadas e argumenta que pode voltar a concorrer porque não completou o mandato, ou obtém um acordo com o terceiro maior partido (DEM, pró-curdo) para ter o número de deputados suficiente para alterar a Constituição e poder eternizar-se no poder. Esta especulação assenta no recente anúncio do líder histórico do Partidos dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, considerado terrorista), Abdullah Öcalan, de pôr fim à luta armada. Em outubro passado, o líder do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), aliado do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan, declarou que Öcalan poderia ser perdoado caso o PKK renunciasse à violência. Desde então, há especulação crescente de um acordo entre AKP, MHP e DEM para a libertação do líder curdo, preso desde 1999 e condenado a prisão perpétua, bem como de uma proposta de autonomia da região curda e a consagração dos seus direitos culturais.
O engulho nesta equação é o segundo maior partido do país, o Partido Republicano do Povo (CHP), herdeiro da revolução secular e republicana liderada por Mustafa Kemal Atatürk. "Este plano parece querer resolver o problema de Recep Tayyip Erdogan em vez de resolver o problema da Turquia, e é por isso que cheira mal”, comentou em outubro o líder do CHP, Özgür Özel.
Foi também a partir desse mês que deu início uma nova vaga de perseguições a políticos. O primeiro foi Ahmet Özer, autarca do círculo de Esenyurt, em Istambul. Membro do DEM, foi acusado de ligações com o PKK, demitido e substituído por um administrador. Em janeiro, foi a vez de Riza Akpolat, autarca do círculo de Besiktas. O kemalista foi acusado de fraude em concursos públicos. A onda repressiva atingiu também a extrema-direita, com o líder do Partido da Vitória (ZP) Ümit Özdag a ser acusado de “insultar o presidente” e “incitar ao ódio”. Em paralelo, jornalistas, figuras da cultura e representantes do patronato foram investigados ou presos. Só em meados de fevereiro foram presas 300 pessoas sob suspeita de "terrorismo", um libelo com uma grande amplitude.
O regime de Erdogan, recorde-se, foi responsável por dois grandes movimentos de repressão, em 2013 e 2016, principalmente o último, em resposta ao golpe militar falhado. Dessa época, destaque para a prisão de Selahattin Demirtas, então líder do partido pró-curdo HDP (antecessor do DEM), acusado de terrorismo, e de Osman Kavala, empresário e ativista dos direitos humanos, acusado de tentar derrubar o governo.
Há várias semanas que já se pressentia que o braço da justiça iria chegar ao presidente da Câmara de Istambul. Na terça-feira, a Universidade de Istambul anunciou a anulação do seu diploma, tendo para o efeito alegado um procedimento incorreto na sua transferência, em 1990, de uma universidade do norte de Chipre, a região ocupada pela Turquia. Imamoglu completou estudos superiores em gestão e em recursos humanos. A Constituição exige aos candidatos presidenciais um diploma universitário. Imamoglu argumentou que não há nada de impróprio na sua transferência, que um anterior inquérito governamental sobre o assunto não tinha encontrado nada de errado e que iria recorrer da decisão.
No dia seguinte, o autarca e outras cem pessoas foram detidas. O político social-democrata foi acusado de extorsão, enquanto chefe de um alegado grupo criminoso, e de terrorismo, num outro caso, por supostas ligações com o PKK. A detenção ocorreu quatro dias antes das eleições primárias do CHP, durante o qual Imamoglu iria ser aclamado o próximo candidato dos kemalistas. O líder do partido, que tem apelado aos protestos nas ruas até o poder ceder, disse que o voto vai decorrer em quaisquer circunstâncias e apelou para os não membros do partido se solidarizarem e também votarem no presidente de Istambul. “O que está sob detenção é a vontade de Istambul. Continuaremos a proteger a vontade de Istambul. Alguém quer retirar-nos daqui e nomear um administrador para o município de Istambul. Não nos vamos render”, disse Özel durante a manifestação de quinta-feira, segundo o Hurryet.
O governo proibiu as manifestações em Istambul até domingo. Algumas estações de metro foram encerradas para impedir os ajuntamentos na praça Taksim. O acesso às redes sociais foi restringido. A polícia reprimiu com violência os protestos, tendo detido dezenas de manifestantes. Mas as manifestações não se ficaram pela metrópole, pelo que o ministro impediu igualmente os ajuntamentos na capital Ancara e em Esmirna, e prolongou a medida por mais dias.
Para os analistas, Erdogan aproveitou uma situação interna mais calma, com a inflação a dar sinais de estar controlada (ao nível mais baixo em dois anos), e sobretudo a situação internacional. "O discurso antidiplomático e contrário às regras de Donald Trump está a desencadear os impulsos de governos autoritários em todo o mundo. Os turcos não perdem de vista que, se toda a gente fizer o que quer, ninguém os vai culpar. Entrámos numa era de permissividade nas relações internacionais", analisou Dorothée Schmid, do Instituto Francês de Relações Internacionais (IFRI), ao Libération. Para a investigadora, "Erdogan sente-se indispensável para o Ocidente, porque a Turquia está na confluência de todos os dramas geopolíticos atuais".