"Queda de Assad na Síria foi machadada muito forte para o Irão. E não foi dada por Israel e sim pela Turquia"
Ficou surpreendida com este ataque de Israel ao Irão neste momento?
Não. Foi o timing certo. Há aqui uma conjugação de várias agendas. A primeira de todas era a reunião sobre o nuclear iraniano em Omã que estava prevista para domingo e que, pelos vistos, já não vai acontecer. A segunda, a agência nuclear da ONU, pela primeira vez, tinha dito que o Irão estava em incumprimento. A terceira, é que o Irão terá descoberto uma série de segredos nucleares israelitas, algo que é difícil, porque Israel não é signatário do acordo de não-proliferação. Temos mais uma agenda, que é a agenda de Emmanuel Macron, portanto da França, que ia levar ao reconhecimento da Palestina. Portanto, já temos aqui várias agendas que nos levam a pensar que realmente o timing foi escolhido a dedo, numa altura também em que os Estados Unidos vão viver neste sábado um dia muito intenso, com o dia da "Parada do Rei", o Dia da Bandeira. Donald Trump faz questão de juntar o dia do aniversário com o Dia da Bandeira. Não sabíamos de início até que ponto é que os Estados Unidos estiveram envolvidos no ataque ao Irão, mas sabe-se agora que Israel contou com eles, e que Trump estava a par. Israel contou com os Estados Unidos de alguma forma, e não só no armamento que foi enviado, pois já sabemos que os Estados Unidos são fornecedores de armamento para Israel. Mas tudo o que aconteceu na sexta-feira pode desviar as atenções daquilo que vai acontecer neste sábado nos Estados Unidos.
Está a falar não só do desfile militar, mas também da contestação que é prevista ao próprio presidente Trump em manifestações por todo o país?
Exatamente, a contestação que está a ser organizada em relação ao "Dia do Rei", é assim que lhe chamam.
Mas não ficando surpreendida pelo timing, ficou surpreendida pela eficácia de Israel, nomeadamente ao eliminar uma parte da liderança militar iraniana?
Não, não fiquei porque Israel já nos habituou a isso.
Em que sentido? Porque tem informações muito boas sobre o que se passa nos outros países?
Que a Mossad são os melhores serviços secretos também já sabemos. Agora, o que Israel nos tem habituado nos últimos tempos tem sido a eliminação das cúpulas como a do Hezbollah, matou as cúpulas do Hezbollah, e tenta matar sempre as cúpulas do Hamas. Depois da morte de Sinwar, o Hamas decidiu não ter um chefe declarado. O politburo reunia sempre que era necessário, mas sem anunciar o novo líder, para não haver um alvo. Mas mesmo assim, a Mossad foi atrás deles todos.
E sobre a resposta iraniana, esta capacidade de atacar Israel, desta vez conseguindo matar israelitas? Os outros dois ataques anteriores, no ano passado, tinham sido menos eficazes. Usaram mais força agora?
Usaram mais força agora e mais eficácia. Realmente foi surpreendente, sobretudo o facto de, pela primeira vez, tudo indica, ter sido abatido um F-35 de Israel. O Irão foi o primeiro país a fazê-lo. Para além dos danos em Telavive, e noutras zonas de Israel, que viveram uma noite terrível, sobressai que pela primeira vez um F-35 foi abatido, e logo pelo Irão.
Então significa que o Irão tem uma capacidade militar que ainda pode surpreender, apesar de todo o poder israelita?
O Irão tem uma capacidade militar enorme. Porque tem o maior exército do Médio Oriente. É um país com 90 milhões de pessoas, portanto é natural que sim, que seja poderoso militarmente. Mas de qualquer forma, tem grande capacidade aérea. Fiquei surpreendida com a capacidade aérea iraniana. Apesar de haver académicos que acharam que tudo foi insignificante, eu acho que o Irão mostrou alguma força. Não sei se aquilo foi só um dia, não sei se vai repetir-se, nem sei se vai repetir com mais força. Mas pelo menos o facto de ter sido o primeiro país a abater um F-35, ninguém tinha conseguido fazê-lo, mostra alguma capacidade do Irão.
Até 1979, quando triunfa a Revolução Islâmica, o Irão tinha boas relações com o Israel. Qual é a principal razão desta oposição do Irão a Israel? É o apoio aos palestinianos ou há outras causas mais profundas?
Isto tem a ver com a Revolução, tem a ver com o que se passou em 1979. O xá, que foi derrubado, era muito próximo do Israel e muito próximo dos Estados Unidos. E o ayatollah Khomeini e a Revolução Islâmica quiseram quebrar com uma das razões principais que levou a Revolução, que era dependência do Irão face à influência americana. E depois também se veio a constatar a influência que Israel tinha e sobretudo a ligação que o xá Reza Pahlavi tinha a Israel. Quando Khomeini chegou ao poder, um dos seus primeiros atos foi declarar como inimigo Israel, porque estava no Médio Oriente, e, claro, os Estados Unidos. Os ayatollahs fizeram tudo ao contrário do que tinha feito o xá. E mais. Khomeini fez uma fatwa, que é uma espécie de decreto religioso que tem poder efetivo, imediato, de nunca haver armas nucleares do Irão. E isso foi feito logo a seguir, o que mostra que a Revolução Islâmica foi uma tentativa de afastar a ingerência estrangeira no Irão, que é típico dos persas. É algo que é cultural.
Ou seja, é o nacionalismo iraniano que também está aqui em cima da mesa?
É o nacionalismo iraniano, o nacionalismo persa que está ali.
Mas apesar dessa fatwa de Khomeini, acha que o Irão de facto ambiciona ter a arma nuclear como forma de defender o regime?
Sim, sim, está em cima da mesa de Khamenei, sucessor de Khomeini, acabar com a fatwa. Só ele o pode fazer isso. Está na mesa, isso.
Estava a falar do apoio do Irão aos palestinianos. Aquilo a que se chama o "eixo da resistência", que juntava o Hamas, o Hezbollah, os Houthis, o próprio regime de Bashar al-Assad, está hoje muito mais fraco por causa dos ataques de Israel. Isso torna o Irão, seu patrono, também mais fraco?
O problema é esse. Foi aí que comecei a perceber que as coisas podem realmente mudar. Ou seja, o regime de Assad já não existe, e Assad está exilado na Rússia, e neste momento temos uma nova realidade na Síria, e aí foi a grande mudança recente no Médio Oriente, a grande mudança geopolítica. Por muito que tivesse acontecido a morte das cúpulas do Hezbollah e o enfraquecimento do Hezbollah, o enfraquecimento do Hamas e o enfraquecimento das milícias xiitas do Iraque, aquilo que mudou tudo foi a queda de Assad. E mudou tudo em desvantagem do Irão. O "eixo da resistência" contava com o Hezbollah, que contava com Assad, que sendo xiita permitia que houvesse fábricas de armamento na Síria para fornecer o Hezbollah, fábricas de armamento feitas pelo Irão. Portanto, o Irão contava com Assad para conseguir chegar próximo de Israel, em termos geográficos.
O que quer dizer é que a queda de Assad em 2024, depois de parecer ter vencido a guerra civil com apoio russo e iraniano, foi o que deixou o Irão mais frágil?
Foi uma machadada muito forte para o Irão. E não foi dada por Israel e sim pela Turquia. Cujo partido no poder é apoiante da mesma ideologia do Hamas. O Hamas é sunita.
Está a falar da irmandade muçulmana na origem de tudo isso?
Sim. Que é a ideologia do presidente Erdogan, que é a mesma ideologia que está na base do Hamas, apesar das diferenças. Portanto, houve aqui uma alteração por completo da geopolítica do Médio Oriente com a queda de Assad.
Mencionou os turcos, que são sunitas, mas eu queria perguntar sobre os árabes sunitas. Como é que a Arábia Saudita olha para esta guerra entre Israel e Irão? Pode ser uma oportunidade para o seu rival persa e xiita ficar enfraquecido?
Essa é uma pergunta à qual não sabemos ainda responder, porque a China, há um ano, promoveu a reconciliação entre a Arábia Saudita e o Irão. É claro que há uma rivalidade histórica, porque um é o baluarte do islão sunita e o outro é o baluarte do islão xiita. E como nós sabemos, desde a morte do profeta Maomé, por causa da questão da sucessão na liderança da comunidade muçulmana, há uma grande rivalidade entre sunitas e xiitas. Mas a China acabou aproximando-os. E penso que neste momento há uma causa maior que poderá unir sunitas e xiitas em alguns aspectos, que é o facto de, em Israel, se estar a pensar, por parte da extrema-direita, a destruição da mesquita de Al-Aqsa, que é o terceiro lugar mais sagrado do islão. Para reconstruir o templo. Nunca vão deixar que isso aconteça, e a Arábia Saudita vai ser sempre aquele país que que terá mais voz nessa questão.
Esta é uma guerra no Médio Oriente, mas vê também impacto possível noutra grande guerra, que é a que existe entre a Rússia e a Ucrânia?
Vejo, porque isto afetou diretamente a Rússia. Em dois aspetos. Um que é benéfico para a Rússia e outro que não é. O que é benéfico é o preço do petróleo, que disparou. O Irão neste momento poderá retaliar contra Israel através da única milicia proxy que ainda está ativa, os houthis. O Hezbollah já veio dizer que não vai participar. Os houthis do Iémen são aqueles que poderão fazer alguma coisa para ajudar o Irão. Mas o Irão tem outras armas. E uma delas é bloquear o estreito de Ormuz. Ora, o que é que isso tem de significativo? Bloqueando o estreito de Ormuz iria impedir que o petróleo e o gás que se produz no Médio Oriente, na zona do Golfo Pérsico, saísse para o fornecimento da Europa, para o fornecimento da China, para o fornecimento do resto do mundo. Ora, a consequência imediata desta questão entre Israel e Irão foi o aumento do preço do petróleo. E isso beneficia a Rússia, claro. Sim, isto beneficia a Rússia porque é uma maneira de financiar a guerra.
Mas disse também que havia um aspeto que podia ser contra a Rússia. Qual é?
Tem que ver com os drones. Foi morto o militar que era o chefe dos drones, que estaria à frente da capacidade de drones que o Irão tem. E isso vai enfraquecer bastante a Rússia na guerra com a Ucrânia. Porque, como sabemos, os drones que a Rússia tem são fabricados no Irão. Portanto, a Rússia, a partir deste momento, tem a sua capacidade de drones bastante diminuída. E num momento em que a Ucrânia mostrou, com o ataque contra bases de bombardeiros na Rússia, ter grande capacidade de drones.