“Pezeshkian vai tentar corrigir a fratura entre Estado e sociedade”
Ghoncheh Tazmini saiu do Irão com 2 anos, quando a sua família emigrou para Inglaterra, antes da Revolução Islâmica de Khomeini depor o regime do xá Pahlavi. Especialista em relações russo-iranianas, a politóloga vive entre as ilhas britânicas e Portugal.
Desta vez o regime permitiu que um candidato moderado [Masoud Pezeshkian] se candidatasse. Porquê?
O Conselho de Guardiães seleciona todos os candidatos e desta vez compreenderam que era necessário apaziguar e aproximar-se da sociedade. Foi também uma forma de aumentar a participação, de levar os eleitores às urnas, claro. Mas o facto de terem permitido a entrada de alguém com uma orientação reformista mostra que têm a consciência do que é necessário. Compreenderam que precisavam de um candidato que apelasse àqueles que sentem que não têm voz, que os seus interesses não foram satisfeitos, que estão mais preocupados com a sociedade civil, com as suas liberdades e restrições sociais e por aí fora.
Foi o reconhecimento de um erro na eleição anterior, ao não terem permitido outro tipo de candidato?
Não havia nenhum, mas também é preciso ter em conta a conjuntura geopolítica. Não sei dizer por que é que o Conselho de Guardiães aprova determinados candidatos, mas nessa altura, provavelmente, a sobrevivência do regime estava no topo da agenda, especialmente com a revogação do acordo nuclear, as políticas muito agressivas dos Estados Unidos e a instabilidade regional. A principal prioridade nessa altura não eram as liberdades civis ou a sociedade civil. Tratava-se de manter, de fomentar a força do Irão a nível regional. Tratava-se de trazer um presidente com uma mente mais aberta, no sentido em que não estava apenas a olhar para o Ocidente, porque o Governo de [Hassam] Rouhani estendeu a mão ao Ocidente e teve como resultado um acordo nuclear rasgado. Assim, o que [Ebrahim] Raisi fez, ou o presidente que o Irão apresentou nessa fase, foi uma viragem para o Oriente. Não foi uma mudança total, mas foi ele quem supervisionou a adesão do Irão aos BRICS+, à Organização para Cooperação de Xangai e a outras organizações regionais. Uma espécie de abordagem multipolar da diplomacia. Assim, nesse momento específico, muito provavelmente, os que estão por detrás do pensamento do Conselho de Guardiães, precisavam de alguém que tivesse uma abordagem mais conservadora.
A vitória de Pezeshkian foi uma surpresa para si?
Sim. Todos os meios de comunicação social sugeriam que o favorito do guia supremo era [Saeed] Jalili, que ele queria alguém que mantivesse essa política de linha dura, esse tipo de mentalidade. Fiquei agradavelmente surpreendida com o facto de não ter sido o guia supremo a dizer que tinha de ser Jalili, foi o voto popular. Foi reconfortante saber que os elementos democráticos do Irão, apesar de estarem numa forma muito incipiente ou em desenvolvimento, estão presentes. E também foram mestres na gestão de crises, conseguiram fazer tudo isto em poucas semanas [após a morte de Raisi]. É um sistema democrático híbrido, mas tem elementos democráticos. Fazendo de advogada do diabo, porque é que não manipularam as urnas e colocaram alguém da linha dura? Por isso, sim, fiquei agradavelmente surpreendida.
O que pensa do texto que Pezeshkian escreveu (Mensagem para o novo mundo) já depois de eleito?
Continuidade no meio da mudança. Ele está a propor que haja uma mudança no estilo e na substância da liderança, com mais empenhamento, mais diálogo. É evidente que ele quer abordar as questões que prejudicaram as pessoas, que as isolaram, que conduziram à apatia. Está a tentar corrigir essa fratura entre o Estado e a sociedade, e deixa isso bem claro. Mas há outras políticas que sugerem continuidade. Uma questão que considero importante é a manutenção do equilíbrio entre o Ocidente e o Oriente. Referiu-se também ao pai da revolução [Khomeini], que disse “nem Oriente, nem Ocidente”. O que significa que ele quer equilibrar as coisas. Não está a fechar a porta ao Ocidente, mas ao mesmo tempo não vai correr atrás do Ocidente. Vai promover as organizações regionais multipolares, a relação com o Sul Global. Ao mesmo tempo, terá uma abordagem diferente. É como dar nova vida ao sistema, dar esperança às pessoas. Vai também combater a inflação. Essa é uma das coisas que ele sublinhou, o que é crucial. O povo está a lidar com uma taxa de inflação de 40%. E isso só mostra que sabe o que está no topo da agenda das pessoas.
Será difícil por causa das sanções.
Pezeshkian disse que vai promover o setor privado e tentar promover uma maior liberalização do mercado. Vai tentar também neutralizar o efeito das sanções. Não é possível anular o efeito das sanções, mas é preciso encontrar uma forma de as contornar. E penso que o que ele quer fazer é realmente tentar rever o acordo nuclear e ver se consegue baixar a tensão, permitindo que isso se repercuta noutras áreas da economia. Penso que, nesta fase, ainda não sabemos exatamente qual a direção que vai tomar.
E quanto às liberdades civis e a repressão?
Pezeshkian deixou isso bem claro com a tragédia que aconteceu em torno da morte de Mahsa Amini. Enquanto deputado manifestou-se bastante sobre o assunto. O que ele prometeu foi mais debate sobre a questão do hijab, mais debate sobre a polícia da moralidade. E também falou sobre o facto de muitas pessoas estarem preocupadas com a internet nacional. Muitas pessoas ganham o seu dinheiro, o seu sustento com a internet, pequenas empresas, e é muito importante poder ter uma internet livre. Sugeriu que vai reduzir a repressão ou aliviar as restrições. Vai ser uma questão de envolvimento com elementos conservadores, pragmáticos, tecnocratas, reformistas, moderados. Trazer toda a gente para o seio da comunidade e abrir o debate. É uma forma mais suave de diálogo, de envolvimento, de que o Irão precisa neste momento. É uma forma de reconciliação entre o Estado e a sociedade, um diálogo nacional.
Mas a última palavra é sempre do guia supremo, Ali Khamenei.
É verdade, mas se a última palavra é do guia supremo e temos Pezeshkian, então isso também é um reflexo de que talvez haja alguma flexibilidade e talvez o regime compreenda que algumas coisas precisam de acontecer para se preservar. É um sinal positivo.
As relações russo-iranianas vão continuar a intensificar-se?
A relação entre a Rússia e o Irão sempre foi muito complicada, mas no fundo têm interesses e preocupações semelhantes. Ambos têm aquilo a que chamo convergência ideológica, a mentalidade de que o comportamento do Ocidente se baseia na hipocrisia, que quer exportar a revolução, destruir os sistemas existentes, e que tem dois pesos e duas medidas. Tanto a Rússia, como o Irão estão alinhados no sentido em que têm preocupações de segurança ontológicas, querem preservar-se, e promoveram a sua cooperação com base nesta convergência ideológica, neste tecido que os une. Encontraram uma base para cooperar em muitos domínios, alguns até controversos. Mas, na verdade, não havia muitas opções para o Irão.
A cooperação militar vai prosseguir?
Claro que sim. Continuarão a existir vendas de armamento e coisas do género. Ironicamente, agora é o Irão que as vende. É controverso porque se trata da Ucrânia. Mas penso que esta vai ser uma tendência até que o discurso, a narrativa com o Ocidente mude.
Crê que num futuro próximo o regime possa sofrer uma grande mudança?
Não. Penso que já foi provado que o regime é resistente. Tem havido ciclos de protestos, ondas, de vez em quando, e o sistema mantém-se intacto.
Um pouco como a Rússia?
Bem, não vou comparar o Irão com a Rússia, porque são ambos muito diferentes e muito complexos. Mas o que eu diria é que eles sobreviveram. E têm sido mestres na gestão de crises. As pessoas precisam de perceber que, se querem que a mudança aconteça, não é com uma mudança de regime. Não passa por uma intervenção militar, como vimos na Líbia, na Síria e nos desastres no Iraque, tem de vir de dentro. Tem de vir de baixo. O sistema tem de perceber que tem de se abrir um pouco. Pode demorar décadas, mas é a única forma de o fazer. Caso contrário, só veremos derramamento de sangue. Aqueles que afirmam que querem que o Irão se democratize têm as mãos cheias de sangue. A sociedade precisa de ser envolvida. Não pode continuar a ser alienada. Precisa de ser ouvida. Foi o que aconteceu durante a presidência de Sayyid Mohammad Khatami, durante oito anos. Ele tinha a bandeira do diálogo das civilizações e acabámos por ser incluídos no eixo do mal. Foi essa a reação do Ocidente ao seu ramo de oliveira. Depende muito da reação da comunidade internacional a Pezeshkian. Se continuarem a falar de mudança de regime e a fomentar todos estes grupos da diáspora que pretendem intervenções militares, não vai resultar.
Estava a pensar em mudanças internas.
As mudanças internas serão subtis, mas palpáveis. Penso que o mais importante é abordar a economia, porque é algo que está a atormentar as pessoas. Se pensarmos no grupo de pessoas que está mais preocupado com o hijab, não é todo o país. Há outras pessoas que precisam de pôr pão na mesa. E para elas é a taxa de inflação de 40%, é a desvalorização da moeda, as liberdades civis são secundárias. Eu diria que há três coisas. Uma são as liberdades civis, a outra são as relações internacionais, talvez deixando a porta aberta ao Ocidente, e a terceira é a economia do Irão.
E quanto ao papel das mulheres na sociedade?
Penso que as mulheres têm de ser mais ativas na sociedade. Estatisticamente, temos mais mulheres nas universidades do que homens. Se olharmos para as coisas estatisticamente, podemos dizer que as mulheres estão presentes, que as mulheres têm um papel social, mas que precisam de ser mais ativas.
Não em cargos de poder.
Há vice-ministras, há deputadas.
Mas em número muito reduzido.
Sim, ainda é baixo. Claro que essa é uma área que precisa de ser promovida. Talvez Pezeshkian o faça. O sistema, se não estivesse tão preocupado em preservar-se a si próprio, e em não se tornar noutra Síria, facilitaria tudo. É como um jogo de futebol, quando se baixa o ritmo do jogo, vai-se afetar inadvertidamente outros grupos, minorias que foram alienadas. As questões existenciais são reais para o Irão. E, como já disse, chamo-lhes questões de segurança ontológica porque é a própria natureza do regime islâmico, a revolução, que está em causa. O regime quer preservar-se a si próprio. Querem reconhecer que a revolução aconteceu, e isso é inegociável. Tudo o resto tem de ser trabalhado a partir desse ponto de partida. Acredito que se o Ocidente envolver Pezeshkian, esta poderá ser uma oportunidade para aprender com os erros do passado, com o que aconteceu durante a liderança de Khatami, e para deixar de tratar o Irão como um vilão, um Estado pária. E então talvez internamente não haja toda esta missão de tentar controlar, de reprimir. As mulheres, os homens, os jovens, vivem vidas muito normais no Irão, para além do exterior, para além do véu. Vivem como os europeus. Presumo que o regime saiba isso.
cesar.avo@dn.pt