"Paz entre palestinianos e israelitas passa por novas lideranças e sobretudo pela América"

"Paz entre palestinianos e israelitas passa por novas lideranças e sobretudo pela América"

Ao começar o livro 'Uma Breve História de Israel e da Palestina' no final do século XIX com a chegada dos primeiros imigrantes judeus da Europa à Palestina, Michael Scott-Baumann procura dar a conhecer as origens de um conflito que parece interminável. Em entrevista ao DN, falou também da atualidade em Gaza.
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Quando os primeiros imigrantes judeus oriundos da Europa chegaram à Palestina no final do século XIX tiveram o acordo do Império Otomano, que governava quase  todo o o Médio Oriente naquele momento?
Essa imigração judaica aconteceu, de início, em pequena escala e não foi proibida pelas autoridades otomanas. Mas não creio que tenha havido qualquer acordo oficial.

Como é que os judeus que viviam naquele momento na Palestina, essa minoria que continuou lá desde os tempos bíblicos ao longo dos séculos coexistindo depois com a nova maioria árabe, viu o surgimento do sionismo, o movimento ideológico de construção de um Estado nacional para os judeus?
Penso que viam os sionistas com desconfiança. Essa pequena minoria de judeus vivia lá e mantinha as suas crenças religiosas. Mas falavam árabe e vestiam-se como árabes. Claro que suspeitaram muito desses forasteiros. E não creio que apoiassem particularmente o sionismo. Mas isso mudou na década de 1920, com o aumento das tensões entre judeus e árabes, na sua grande maioria muçulmanos. E particularmente depois do ataque árabe aos judeus de Hebron em 1929. Depois disso, creio, muitos dos Yishuv, os judeus que sempre viveram ali, começaram a perceber que muitos árabes se opunham à imigração mas também à própria comunidade judaica e tudo mudou.

Estamos a falar já da época do Mandato britânico. A presença britânica após a Primeira Guerra Mundial foi decisiva para a comunidade judaica? Para o sucesso do sionismo?
Sim. Por que os britânicos eram provavelmente ainda a maior potência mundial naquela época. Os britânicos assumiram um compromisso com os judeus através da Declaração Balfour ainda em 1917. Depois garantiram que a Declaração Balfour sobre um lar nacional judaico fosse incorporada nos termos do Mandato. A Grã-Bretanha deveria fazer a ligação com a agência judaica e encorajar a imigração, encorajar o povoamento judaico naquelas terras. E enquanto os judeus foram minoritários, estavam muito dependentes da proteção das grandes potências, sobretudo da Grã-Bretanha.

Houve alguma vez alguma possibilidade, depois da derrota dos turcos pelos britânicos, e já sob o Mandato britânico criado pela Sociedade das Nações, de se criar um país independente, mas  juntando árabes e judeus?
Os britânicos propuseram em 1937 que deveria haver uma partição. E os árabes opuseram-se a isso. Não é de surpreender. Por que deveriam desistir do seu país? Depois os britânicos abandonaram essa ideia. Primeiro houve uma grande revolta árabe, uma rebelião contra a imigração judaica e contra a expropriação de terras, e a Grã-Bretanha esmagou essa rebelião brutalmente. Mas à medida que a Segunda Guerra Mundial se aproximava, os britânicos sentiram que precisavam do apoio dos países árabes e abandonaram a ideia de partição. E restringiram a imigração judaica.

Foi um grande erro dos países árabes recusarem o plano de partição da ONU e invadirem Israel em 1948, que venceu e expandiu fronteiras?
Retrospetivamente, sim. Mas tenho receio de fazer qualquer tipo de julgamento moral. A Europa e o Ocidente podem sentir-se culpados pelo Holocausto, pensavam, mas por que é que eles, os árabes da Palestina, teriam de desistir da sua terra pela culpa europeia? Provavelmente houve muito desse sentimento. Provavelmente acontece o mesmo agora. Por causa da culpa que muitos ainda sentem no Ocidente pelo tratamento dado aos judeus, sobretudo na Segunda Guerra Mundial, deveriam os palestinianos, os árabes, continuar a sofrer? Mas voltando a 1947/1948, penso que os países árabes sentiram que os britânicos os tinham traído. Afinal, em 1915, prometeram apoiar a ideia da independência árabe, mas depois o Mandato sem dúvida privilegiou os judeus. E a seguir as Nações Unidas propuseram a partição. Olhando para trás, se eles tivessem aceitado 44% do que era o território do Mandato britânico da Palestina sim seria muito mais do que o que têm hoje. Mas pode-se compreender a oposição da época. Por que deveriam desistir de 56% das terras, como as Nações Unidas pediam?

No seu livro há uma espécie de crítica permanente à falta de liderança do lado palestiniano. Foi um problema crítico em 1948, quando tiveram de combater contra o recém-criado Estado de Israel?
Sim. E penso que essa falta de liderança se explica em grande parte pelo que aconteceu durante a rebelião árabe entre 1936 e 1939. Essa rebelião começou pacificamente, mas tornou-se mais violenta, com ataques às bases do exército britânico e também aos povoados judaicos. E os britânicos esmagaram essa rebelião de forma bastante brutal, com muitos dos líderes palestinianos executados, presos ou deportados. Grande parte da liderança palestiniana foi então destruída. E, claro, no momento em que o Estado de Israel é criado, 300 mil palestinianos fugiram do país.Estiveram nessa fuga algumas famílias influentes, árabes da classe média, que poderíamos, em retrospetiva, dizer que deveriam ter ficado e lutado. Então, os palestinianos ficaram traumatizados pela limpeza étnica. Esta é uma palavra que alguns historiadores israelitas hoje reconhecem que corresponde ao que aconteceu em 1948. 

Em 1967, depois da Guerra dos Seis Dias, e a ocupação de Gaza e da Cisjordânia, antes administradas por Egito e Jordânia, foi um erro de cálculo de Israel ocupar esses territórios? Afinal, de repente, teve que lidar com milhões de palestinianos sem aceitá-los como cidadãos.
Estou relutante em fazer julgamentos morais. Foi um erro? Bem, Israel tomou essas terras e manteve-as. Alegou que era por segurança. E os militares avançaram para uma ocupação militar. E alegaram que precisavam de tropas ao longo do rio Jordão, a fronteira, porque poderiam ter novos ataques. Talvez dois milhões de palestinianos então, passaram a estar sob a sua responsabilidade. Porém, Israel não anexou esses dois territórios. Por que se eles se tornassem parte de Israel, então, mais alguns milhões de árabes teriam de ter recebido cidadania. E isso colocaria Israel em perigo como Estado judeu. Então, sim, Gaza e Cisjordânia tornaram-se um fardo para Israel.

Poderia o sucesso da integração dos árabes israelitas, os que ficaram em 1948 dentro das fronteiras do novo Estado Judaico, ser um exemplo para Gaza e para a Cisjordânia? Ou a questão-chave era a demografia?
Bem, certamente a demografia era e é um problema. Por que os cidadãos palestinianos de Israel, os árabes israelitas, eram uma minoria, 15% no início, hoje serão talvez 20%. Mas ter integrado os árabes da Cisjordânia e de Gaza, um número enorme, teria posto em perigo a existência de Israel como Estado judeu. E quanto ao sucesso da integração dos árabes israelitas que refere, tenho dúvidas.

Falo de lealdade ao Estado e de  direitos de cidadania. Têm partidos políticos, estão representados no Knesset. Também já deram juízes ao Supremo Tribunal. Alguns são diplomatas e até embaixadores. Não considera tudo isto um sucesso?
Bem, sim, tenho certeza de que têm direito a voto. E há membros árabes do Knesset. Mas acho que em geral são cidadãos de segunda classe. Gasta-se muito menos na educação dos cidadãos árabes. E não creio que tenha sido concedida autorização de planeamento para a construção de uma única cidade ou aldeia árabe-israelita desde 1948. Por exemplo, em Nazaré, que tem uma população árabe bastante grande, verificamos que os árabes estão confinados numa área bastante pequena. Eles têm que construir para cima, em altura, enquanto ao lado está a nova Nazaré judaica, que se pode expandir. Mas concordo que, em termos materiais, os cidadãos árabes de Israel estão provavelmente em melhor situação. E penso que se houvesse uma solução de dois Estados, e se tivéssemos um Estado palestiniano ao lado de Israel, a maioria dos cidadãos palestinianos de Israel escolheriam permanecer em Israel. 

Yasser Arafat foi decisivo no relançamento da luta nacional palestiniana? Arafat era o tal líder que lhes faltou antes?
Acho que sua liderança foi decisiva, mesmo que tenha cometido erros. A resistência palestiniana foi liderada por Arafat durante 40 anos ou mais. Desempenhou um papel decisivo nos Acordos de Oslo.

Arafat realmente acreditou nos Acordos de Oslo, lançados pela diplomacia norueguesa com o apoio dos americanos, como um caminho para a paz entre palestinianos e israelitas? Hoje percebe-se que foi um ponto de partida, mas não um plano para a criação de um Estado palestiniano.
O que aconteceu em Oslo, foi que Israel conseguiu o que queria. Os palestinianos renunciaram ao uso da violência e reconheceram o direito de Israel existir. Mas os palestinianos foram informados que as questões que desejavam discutir sobre o território e as fronteiras de qualquer futuro Estado ou se Jerusalém Oriental poderia tornar-se uma capital árabe palestiniana seriam decididas ao longo dos cinco anos seguintes. Enquanto isso, a construção de colonatos judaicos em Gaza e na Cisjordânia continuava. Os extremistas de ambos os lados queriam destruir a paz de Oslo. Arafat, penso eu, foi bastante ingénuo. Quero dizer, acho que ele estava confiante no seu poder de persuasão. E enquanto Yitzhak Rabin estava vivo, talvez se mantivessem vivas as esperanças de continuação das negociações. Mas nos Acordos de Oslo, os israelitas  não apoiaram explicitamente a ideia da soberania palestina. Não reconheceram o direito dos palestinianos a um Estado próprio. Por isso acho que Arafat foi enganado. Mas os palestinianos estavam num situação muito difícil em 1993. A OLP estava muito fraca naquele momento. E houve alguns ganhos. A OLP foi reconhecida como representante do povo palestiniano. E Arafat e a sua liderança foram autorizados a regressar a Gaza e à Cisjordânia. E tinham uma Autoridade Palestiniana eleita, mesmo que os seus poderes fossem muito limitados. Portanto, houve ganhos indubitáveis. E a maioria dos comentadores da época achou que era um grande avanço. Como todos sabemos, tudo se desfez.

Foi este ataque terrorista do Hamas em território israelita a 7 de outubro de 2023, com mais de mil mortos, uma forma de impedir a acelerada normalização das relações entre Israel e os Estados árabes e de lembrar ao mundo que ainda existe um problema palestiniano?
Sim, acho que o momento pode muito bem ter sido moldado por isso. A América estava muito interessada em Israel assinar acordos com certos Estados árabes como o Bahrein, os Emirados Árabes Unidos e Marrocos. E os palestinianos estavam a ser ignorados. Penso que estávamos perto mesmo de um acordo entre Israel e a Arábia Saudita, o Estado árabe mais rico. Mas não esquecer que durante 16, 17 anos Gaza foi uma prisão ao ar livre, com Israel a controlar a quantidade de alimentos, combustível e eletricidade permitida em Gaza. As condições estavam a piorar cada vez mais. Isso pode explicar por que houve esse ataque violento. Foi um crime de guerra. Foi um crime contra a humanidade. Foi terrível. Mas como disse António Guterres, o secretário-geral da ONU, este ataque não surgiu do nada. Foi o resultado de 56 anos de ocupação.


Israel pode, em nome do direito a defender-se, continuar esta guerra que já causou a morte de quase 30 mil palestinianos? O apoio ocidental, mesmo da América, começa a ser menor, depois da solidariedade fortíssima a seguir ao ataque do Hamas, que além das mortes de civis incluiu o rapto de mais de 200 pessoas, levadas para Gaza.
Os israelitas querem destruir o Hamas. E querem resgatar os reféns. E são apoiados pelo Ocidente em geral. 

Mas vê uma saída para o atual conflito?
É muito difícil. Posso compreender por que é que Israel quer destruir o Hamas. Mas não creio que algum dia será possível destruir completamente o Hamas. O Hamas tornou-se um movimento de libertação nacional. E penso que quanto mais tempo Israel continuar a bombardear e a destruir, o mais provável é que muitas pessoas em Gaza se radicalizem. E penso que o mesmo acontece com o que Israel está a fazer na Cisjordânia. Está a fazer muitos ataques contra vilas e cidades árabes. E está a matar militantes. Mas penso que as suas ações serão a origem de mais militantes.


Então, depois deste ataque do Hamas em 7 de Outubro, e desta guerra de retaliação por parte de Israel, ainda é possível a tão falada solução de dois Estados? Ou para isso seria necessário novas lideranças em ambos os lados?
Gostaria de pensar que ainda é possível. Há enormes desafios, enormes problemas. Certamente penso que precisamos de uma nova liderança de ambos os lados, sim. Mas acima de tudo, precisamos da América. A maior potência e a única potência à qual Israel presta atenção. A América tem de apoiar tentativas genuínas de alcançar a paz. O que significa tentativas genuínas de conseguir um cessar-fogo e, depois, tentativas genuínas de envolver os palestinianos. Quero dizer, qualquer solução de dois Estados, qualquer solução tem de envolver os palestinianos. Em algum momento, terá que haver eleições entre o povo palestiniano, para que possa decidir quem quer que o represente.


Vê responsabilidade histórica dos países vizinhos neste conflito israelo-palestiniano quando a  maioria decide não conceder plenos direitos de cidadania aos refugiados e manter a pressão sobre os palestinianos e o direito ao regresso?
Os árabes, liderados pelos sauditas, apresentaram uma iniciativa de paz em 2002. Muito boa. Mas foi rejeitado pelos israelitas. E como tantas vezes acontece, os americanos, por sua vez, também a rejeitaram. Mas sim, tem razão. Alguns dos Estados árabes vizinhos não concederam cidadania aos refugiados palestinianos. Isso pode ser visto como insensível, duro. Muitos desses palestinianos ainda sonham em voltar para casa um dia. Ainda se consideram palestinianos após várias gerações. Penso que se esses países dessem plenos direitos aos refugiados palestinianos, seria uma enorme imposição nos orçamentos, na economia e na vida social desses países árabes. E não tenho certeza se os palestinianos iriam querer. Muitas famílias guardaram as chaves de suas casas.

Quão importante é a religião neste conflito entre israelitas e palestinianos?
A religião é explorada. Sim. Mas acima de tudo é um conflito político. É um conflito sobre a terra e o controlo da terra. Mas a religião é explorada, sim, especialmente pelos nacionalistas religiosos que são tão dominantes no governo de Netanyahu, alegando que a Cisjordânia, que eles chamam de Judeia e Samaria, faziam parte do Israel bíblico e deveriam fazer parte do Israel moderno. O Hamas é uma organização islâmica, mas penso que se trata mais de um movimento de libertação que é islâmico. Falamos sobre a força do lobby judaico nos Estados Unidos. Mas tornei-me cada vez mais consciente nos últimos anos da força dos cristãos evangélicos na América, talvez 60, 70 milhões, que acreditam, não sei se é a Bíblia que diz, que somente quando toda Eretz Israel for povoado pelos judeus, quando o povo judeu voltar para casa, para suas terras, só então teremos a segunda vinda de Cristo. Então, acho que, com base na religião, os fundamentalistas religiosos cristãos fornecem muito apoio a Israel e certamente a Donald Trump. Quando este era presidente e transferiu a embaixada americana de Telavive para Jerusalém, disse aos cristãos evangélicos ter feito isso por eles. e no dia seguinte foi fotografado a fazer orações na sala oval com líderes evangélicos cristãos. 

Como vê, por outro lado, a ascensão do antissemitismo na Europa e na América?
Diria ascensão do antissemitismo e da islamofobia, porque penso que a guerra em Gaza está tão polarizadora que as pessoas estão a tomar partido. E as redes sociais intensificam essa polarização. É muito preocupante. Na Grã-Bretanha, as informações oficiais disponíveis sugerem que as críticas a Israel são antissemitas. E tenho muitos amigos judeus que também apontam isso. Grande parte da classe política britânica é tão pró-israelita que identifica as críticas a israel com antissemitismo. Sim, mas tenho a certeza de que é algo verdadeiro a ascensão do antissemitismo, sem dúvida alimentada pelas redes sociais. Mas temos de distinguir entre o antissemitismo genuíno, que é o ódio aos judeus, e a crítica ao governo israelita.

A Mais Breve História de Israel e da Palestina 
Michael Scott-Baumann
Ideias de Ler
288 páginas
18,85 euros

Um historiador que conhece o terreno

Formado pela Universidade de Cambridge e pela Escola de Estudos Africanos e Orientais de Londres, o historiador britânico Michael Scott-Baumann é um profundo conhecedor do Médio Oriente e este seu A Mais Breve História de Israel e da Palestina reflete isso. É membro do Projeto Balfour que trabalha, através da Educação, para reconhecer as responsabilidades históricas da Grã-Bretanha e, através da advocacia, para promover a igualdade de direitos para palestinianos e israelitas. O Projeto realiza webinars, com palestrantes de Israel, Palestina, EUA e Europa, cuja participação é gratuita.

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