Em 2020, por ocasião do início do julgamento dos cúmplices dos terroristas que mataram 12 pessoas ao atacarem a redação do Charlie Hebdo, cinco anos antes, a revista humorística francesa decidiu voltar a publicar os cartoons que causaram a reação criminosa. Semanas depois, o professor Samuel Paty, que decidira debater a liberdade de expressão com os seus alunos tendo como pano de fundo os referidos desenhos, foi decapitado por um checheno. O presidente Emmanuel Macron disse então que não lhe competia avaliar decisões editoriais e agraciou postumamente Paty com a mais alta condecoração, lamentando o "ódio aos outros" e reafirmando os valores da república. Vários países de maioria muçulmana condenaram a republicação dos cartoons de Maomé, houve manifestações da Tunísia ao Paquistão, boicote aos produtos franceses e ameaças pouco veladas, como a do ex-primeiro-ministro malaio Mahathir Mohamad, que, depois de instruir os franceses a respeitarem os sentimentos dos outros, declarou que "os muçulmanos têm o direito de matar milhões de franceses"..Este é um exemplo de como os ânimos se inflamaram em resultado de duas realidades absolutas que chocaram: o tabu religioso, que não conhece fronteiras, e a ordem dos valores das democracias ocidentais, nas quais as liberdades de imprensa e de expressão estarão asseguradas e a blasfémia não é crime. Será que os meios de comunicação dos países muçulmanos poderiam ter desempenhado um papel cujo resultado não fosse o de caixa de ressonância das emoções? Por estes e outros casos - mais até pelos domésticos ou regionais - decidiu o Centro de Diálogo Internacional - KAICIID iniciar um programa de formação de jornalistas na região árabe para promover padrões éticos no que diz respeito à cobertura informativa de grupos religiosos e étnicos, como meio de fomentar o diálogo intercultural, a paz e o desenvolvimento sustentável. A primeira edição, com 27 jornalistas de 11 países, teve um módulo em fevereiro, na Tunísia, e um segundo há dias, em Lisboa, a nova cidade sede daquela instituição fundada pela Arábia Saudita, Áustria e Espanha e que tem a Santa Sé como observador..O objetivo, explica a gestora do projeto Maya Sukar, é levar os jornalistas a conhecerem-se em primeiro lugar para "terem um terreno comum e receberem competências avançadas em ética, verificação de factos, combate ao discurso de ódio e sensibilização para políticas", isto porque, diz, "há nos países árabes uma enorme necessidade de quem defenda os grupos vulneráveis através dos media". Nos workshops há formação para advogar políticas em prol de objetivos de desenvolvimento sustentável. "O mais importante é que reúnam conhecimento, diálogo e competências, porque o diálogo é uma ferramenta para promover a paz, e os jornalistas são promotores da paz e agentes pela mudança", comenta a gestora libanesa.."Este tipo de programa de formação sobre a religião e a cobertura da religião é muito, muito raro no Médio Oriente, embora muitos conflitos na região, e no Líbano, se devam à religião", diz a também libanesa Fatima Haidar. "É muito importante para nós, jornalistas, sabermos como fazer a cobertura dos temas religiosos tendo em conta o sectarismo, o discurso de ódio e a discriminação. Estamos a aprender com erros cometidos por jornalistas para fazer um trabalho melhor no futuro. Ou deixamos de cobrir assuntos religiosos ou aprendemos a fazê-lo. Qualquer erro pode contribuir para o discurso de ódio, para um conflito e até para uma guerra", avalia a freelancer, que deixa uma advertência: "Este workshop é sobre o Médio Oriente, mas as empresas internacionais de media estão a fazer muitos erros relacionados com o discurso de ódio em relação aos muçulmanos.".O jordano Jassar al-Tahat, que se descreve como um homem dos sete instrumentos (além de jornalista, é gestor de comunicação de uma ONG, faz consultoria de media e investigação) não tem dúvidas sobre a utilidade da formação para desenvolver as suas capacidades. "Eu e os meus colegas do programa concluímos que todos partilhamos desafios comuns, barreiras semelhantes e que devemos trabalhar em conjunto para conseguirmos ultrapassar estas barreiras e desafios, em especial os que estão relacionados com o combate ao discurso de ódio e os esforços para o promover", diz este profissional da comunicação que é correspondente do The Times e da CNN. "Temos de assegurar que os media mantêm-se neutros e longe dos discursos de ódio, em especial numa região que tem sido marcada pela guerra e pelo conflito..O discurso de ódio tem sido um problema prevalecente pelo mundo fora e na nossa parte do mundo conhecemos as diferentes formas, que são bastante diferentes dos discursos de ódio na Europa, na América do Norte, na América do Sul ou em África", prossegue num inglês desenvolto. Aponta para as redes sociais, um espaço que pode potenciar o pior das pessoas, pelo que a urgência em enfrentar o problema é total. "A nossa parte do mundo vive crise após crise, guerra após guerra, divisões sectárias, dificuldades económicas, problemas de segurança, terrorismo, etc. É a altura para as vozes da razão e da paz prevalecerem em relação às vozes da irracionalidade e do ódio", sentencia. E para tal se materializar diz-se pronto a fazer a sua parte e "advogar em prol de políticas que limitem a disseminação do discurso do ódio quer nos meios tradicionais, quer nos novos"..A muçulmana Tebra Chibani e a cristã Treza Shenouda vêm da África do Norte. A primeira é tunisina e trabalha na Radio Tataouine, a segunda é egípcia e escreve no jornal Al-Dostour, onde faz a cobertura de assuntos religiosos cristãos no Egito e no Médio Oriente. Exprimem-se em árabe, pelo que Maya Sukar faz as vezes de tradutora, não sem alguma dificuldade, tendo em conta as especificidades do linguajar local. Os ventos da revolução sopraram em 2011 naqueles dois países na chamada primavera árabe, mas a queda dos líderes e a consequente luta pelo poder trouxe à tona a radicalização das sociedades e posteriores avanços e recuos.."Com esta formação aprendemos muito, em especial a ajustar as palavras mais apropriadas em específico no que concerne à cobertura de temas religiosos. Há uma grande suscetibilidade em torno dos assuntos religiosos no Egito e no mundo árabe, é uma questão muito sensível", diz Shenouda. "A Tunísia não é diferente do resto do mundo, em especial nas redes sociais onde as pessoas podem exprimir-se de forma livre, por isso é muito difícil controlar as pessoas quando estão numa espécie de espaço aberto para se exprimirem", considera Chibani. Quanto aos jornalistas, estes "normalmente têm liberdade para se exprimirem" e diz não ter sentido qualquer diferença com a nova Constituição referendada sob proposta do presidente Kaied..No Egito, "existe liberdade de opinião e expressão, mas há códigos que os limitam, em especial em assuntos de terrorismo e sectarismo, porque a disseminação de notícias sobre estes assuntos podem criar instabilidade na sociedade", diz Shenouda. "O presidente Sisi apoia o trabalho contra o sectarismo e a prevenção de todos os atos de terrorismo enquanto defende os princípios da cidadania para todos os egípcios, independentemente da sua religião", afirma..cesar.avo@dn.pt