“Os EUA tinham uma reputação muito positiva no Irão. Eram vistos como uma potência neutra em que se podia confiar”

“Os EUA tinham uma reputação muito positiva no Irão. Eram vistos como uma potência neutra em que se podia confiar”

John Ghazvinian, historiador e ex-jornalista, é colunista do The New York Times e professor na U. da Pensilvânia, onde dirige o Centro de Estudos do Médio Oriente. É especialista na história das relações entre EUA e Irão. O seu livro America and Iran, a History: 1720 to the present, foi dos melhores em 2021.
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A primeira vez que americanos olharam para o Irão e para a Pérsia foi com os missionários prisbeterianos nas primeiras décadas do século XVIII, que tinham como objetivo cristianizar os assírios?
Uma das coisas que me fascinou quando fiz a pesquisa para este livro foi o facto de, já no século XVIII, na década de 1720, antes mesmo de os Estados Unidos (EUA) existirem como país, haver jornais publicados em Filadélfia e Boston que estavam fascinados com o que se passava na Pérsia. Viam o Império Persa como inimigo do Império Otomano, que era considerado o grande império do mal da altura. E o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Houve muita cobertura jornalística muito pró-iraniana em jornais publicados por Benjamin Franklin e outros. Os americanos tinham uma espécie de noção preconcebida da Pérsia, mesmo antes de entrarem em contacto com ela. O primeiro contacto realmente sustentado entre americanos e iranianos começou nas décadas de 1830 e 1840 com a chegada de um número significativo, quero dizer, dezenas de missionários presbiterianos americanos que estavam lá não para converter muçulmanos ou judeus, mas para converter cristãos iranianos daquilo que consideravam uma forma degenerada de cristianismo, e levá-los para o cristianismo presbiteriano. O Irão tinha e tem uma população cristã antiga, de longa data, constituída por assírios, caldeus e arménios. Os presbiterianos não se preocupavam muito com os arménios, porque se sentiam um pouco intimidados por eles, mas viam os assírios como alvos ideais 

Por outro lado, os persas estavam, há mais de um século, a olhar para este novo e vibrante país, a América, como uma solução para os ajudar a romper com a influência das grandes potências sobre os assuntos internos persas e, acima de tudo, sobre os recursos persas…
É isso que é extraordinário. Os americanos tinham uma ideia idealizada da Pérsia, e os persas também tinham uma visão idealizada da América. Viam os EUA como um país europeu. No discurso deles, a América era apenas um país europeu que estava muito longe, a oeste, do outro lado do oceano. Por isso, viam os EUA como tendo muitas das vantagens dos países europeus, os avanços tecnológicos, o tipo de liberalismo político, etc., que eram atrativos para uma nova geração de reformistas persas, sobretudo nas décadas de 1860 e 1870. No entanto, viam-no como uma espécie de versão mais benevolente da Europa, um país europeu sem a mentalidade imperialista que a Grã-Bretanha, a Rússia, a França, a Bélgica e outros países tinham nas suas interações com o Irão. A Rússia e a Grã-Bretanha, em especial, tinham uma longa história de interferência imperialista no Irão. Nunca colonizaram formalmente o Irão, mas puxaram muitos cordelinhos nos bastidores. Tinham uma grande influência no país, acordos comerciais e políticos desequilibrados, e eram alvo de muito ressentimento pelos iranianos, especialmente pela nova geração de nacionalistas iranianos, que viu nos EUA um país que tinha tudo de positivo que a Europa tinha para oferecer em termos de avanço político, tecnológico e militar, mas sem a mentalidade imperialista. Os americanos, surpreendentemente, nem sequer tinham uma embaixada no Irão até à década de 1880, apesar de os seus cidadãos estarem a trabalhar e a viver no Irão 50 anos antes disso. Já os britânicos tinham uma embaixada que trabalhava lado a lado com os seus missionários anglicanos, e os russos faziam o mesmo com os seus missionários ortodoxos. Estes missionários eram vistos como uma extensão do imperialismo russo e britânico no Irão, ao passo que os missionários americanos eram vistos como pessoas que apareciam simplesmente para ajudar, por qualquer razão, a construir clínicas e escolas. O seu governo não tinha presença nem interesse no Irão, e isso era atraente para os iranianos. 

Qual foi a sua motivação quando abraçou esta missão de escrever uma história sobre as relações entre estes dois países desde 1720 até à atualidade? 
Várias pessoas já tinham escrito livros sobre a história das relações entre os EUA e o Irão, mas eu sentia que essa história estava muito presa a este tipo de jogo de culpas sobre 1953 e 1979. O golpe de Estado de 1953, liderado pela CIA contra Mohammad Mossadegh, um primeiro-ministro muito popular no Irão que tentou nacionalizar a indústria petrolífera, foi visto por toda uma geração de nacionalistas iranianos como uma espécie de pecado original, a primeira vez que entraram em contacto com os EUA de uma forma negativa, de uma forma imperialista. E a revolução de 1979 e a crise dos reféns, quando os revolucionários iranianos tomaram dezenas de americanos como reféns durante mais de um ano na embaixada dos EUA, foi vista por estes como a espécie de pecado original onde todos os problemas começaram. Eu quis escrever uma história que nos afastasse deste tipo de jogo de culpas, ou seja, de que todos os problemas começaram em 1953 ou em 1979, e que olhasse para uma história mais profunda e mais longa. Porque penso que há uma tendência entre as pessoas que querem defender o Irão ou as pessoas que querem criticar os EUA para dizer: bem, tudo estava bem até 1953, até os americanos chegarem e derrubarem o governo. As pessoas que querem defender os EUA ou criticar o Irão gostam de dizer: “Bem, estava tudo bem até à revolução iraniana e à crise dos reféns. Tínhamos uma boa relação com o Xá e blá, blá, blá. Se dissermos que estava tudo bem até 1979, será que estava mesmo? Não. Havia obviamente uma profunda corrente subjacente de ressentimento e, sabe, até certo ponto, uma revolução incipiente. E, por outro lado, estava tudo bem antes de 1953? É possível argumentar que as relações entre os EUA e o Irão nos anos 20 e 30 eram muito mais positivas do que mais tarde. Mas penso muitas vezes que as pessoas que dizem que tudo estava bem até 1953 não têm uma noção muito boa de como eram as relações entre os EUA e o Irão antes de 1953. As pessoas esquecem frequentemente que a primeira vez que os EUA e o Irão romperam relações não foi em 1979, foi, na verdade, em 1935, por causa de um incidente envolvendo uma multa por excesso de velocidade que foi passada ao embaixador iraniano em Maryland, numa pequena cidade chamada Elkton, que precipitou uma enorme crise diplomática e a rutura de relações durante três anos. A maioria das pessoas nem sequer tem consciência disso. E isto supostamente durante a era dourada das relações, certo? Em qualquer relação, temos muitas vezes uma noção preconcebida de uma pessoa, mesmo antes de a conhecermos. Foi então que comecei a aprofundar um pouco mais. Fiquei muito surpreendido ao descobrir tanta cobertura jornalística interessante, por exemplo, na década de 1720, sobre o Irão, sobre a Pérsia, nos jornais americanos. Penso que é muito difícil escrever uma história desta relação que não seja tendenciosa, de uma forma ou de outra. Toda a gente tem as suas subjetividades. O que tentei fazer foi garantir que tinha acesso a arquivos tanto no Irão como nos EUA. Por isso, esforcei-me para tentar aceder a arquivos que não tinham sido acedidos por investigadores ocidentais. Tentei garantir que compreendíamos, em todas as fases, as razões pelas quais as decisões eram tomadas. Não temos de simpatizar com este ou aquele governo para compreender simplesmente quais são os mecanismos de tomada de decisão e porque é que as pessoas escolhem fazer o que fazem.

Podemos dizer que no século XIX e mesmo nas primeiras décadas do século XX, provavelmente devido a alguma falta de experiência diplomática, não só do lado do Irão mas também do lado americano, e talvez mais do lado americano como um país novo, a história da relação entre estes dois países está muito cheia de mal-entendidos e oportunidades perdidas? 
Para os EUA, o Irão simplesmente não era um país estrategicamente importante até à década de 1940. Penso que essa é a razão pela qual muitas pessoas, quando escrevem, não recuam até 1940, 1950, porque não pensam que seja muito importante. Mas o facto de a relação não ser importante para os EUA não significa que não tenha existido uma relação, que não haja algo de que falar. Essa relação foi, na verdade, extremamente importante para o Irão durante cerca de 80 ou 90 anos antes de 1940, pelo menos desde a década de 1850; um governo iraniano após outro, sentiu que a relação com os EUA era uma prioridade extremamente importante. 

Até para romper com a influência da Rússia e do Reino Unido…
Exatamente por essa razão. Havia a consciência de que o Irão estava sob o domínio destas duas potências, a Rússia a norte, a Grã-Bretanha a sul, do Golfo Pérsico e da Índia. Os iranianos sentiam que precisavam de cultivar relações com um outro país que pudesse ser utilizado para equilibrar a influência destas duas grandes potências. Tentaram diferentes possibilidades. O Império Otomano não era uma possibilidade, era uma espécie de inimigo histórico, para além de ser uma potência em declínio. Não havia muitos outros vizinhos na zona. Algumas das outras potências europeias tinham projetos semelhantes para o Irão, mas os EUA pareciam ser uma escolha óbvia. Esta potência em ascensão parecia muito pouco imperialista na sua mentalidade, era claramente o país do futuro. Tudo é muito semelhante, faz-me lembrar a forma como muitos países, nos últimos anos, tentaram cultivar melhores relações com a China. É muito semelhante à mentalidade do Irão nos anos 1890, 1900 e 1920. Pensavam: este é o país do futuro, vai ser útil, não vamos chegar a lado nenhum com a Grã-Bretanha e a Rússia, só querem aproveitar-se de nós, etc. Os EUA tinham uma reputação muito positiva no Irão. Eram vistos como uma potência neutra em que se podia confiar, que tinha surgido numa revolução contra os britânicos. E os iranianos sentiam que os americanos compreendiam instintivamente as frustrações do Irão em relação ao Império Britânico. E, de facto, compreendiam. Na década de 1910, quando os iranianos ouviram os 14 pontos de Woodrow Wilson e os vários discursos que o presidente americano fez, sentiram que ele estava a falar diretamente para eles. Houve até um conselheiro económico, Morgan Schuster, que em 1911 foi ao Irão para ajudar a reorganizar as finanças iranianas e se tornou uma espécie de defensor revolucionário apaixonado do nacionalismo iraniano, tornando-se um herói no Irão por ter enfrentado os russos. Era essa a reputação que os americanos tinham. E foi isso, de facto, que se perdeu em 1953. Mesmo em 1951, 1952, é espantoso para mim ver nos jornais iranianos, jornais nacionalistas, jornais pró-Mossadegh, uma visão realmente positiva dos EUA em comparação com a Grã-Bretanha, por exemplo. Mas perdeu-se esse idealismo entre os EUA e o Irão. 

Com a revolução iraniana de 1979, a crise dos reféns e tudo veio abaixo. Mas fiquei surpreendido com esta citação de Ronald Reagan, no início do seu livro, porque foi só alguns anos mais tarde. O então presidente, diz que a revolução iraniana é um facto, mas que entre os interesses nacionais básicos americanos e iranianos não tem de haver um conflito permanente. Isto é de facto politicamente muito, muito significativo…
É muito interessante e já não se ouvem presidentes americanos a falar assim. E este era um republicano, um tipo duro, alguém que chegou ao poder em 1980, literalmente no meio da crise dos reféns iranianos, quando o Irão era a coisa mais maléfica do mundo para os EUA. Prometeu lidar com os terroristas e os sequestradores de reféns de forma diferente de Jimmy Carter que, segundo ele, era demasiado brando com o Irão. Mas, assim que chegou ao poder, teve de lidar com o facto de que os reféns foram libertados por Teerão, mas havia todo um novo conjunto de reféns no Líbano sobre os quais o Irão tinha influência. E Reagan tentou fazer acordos secretos com o Irão para vender armas ao Irão, a fim de conseguir que os iranianos pressionassem os seus aliados das milícias xiitas no Líbano para libertarem os reféns americanos. Isto explodiu num escândalo, o escândalo Irão-Contras, em 1986. Reagan apareceu na televisão para tentar explicar aos americanos porque é que os EUA estavam a vender armas ao Irão. E fez a declaração: “A revolução iraniana é um facto da história, mas entre os interesses nacionais básicos americanos e iranianos não tem de haver conflito permanente”. Isto foi uma espécie de aceitação tácita da revolução e da República Islâmica. Não utilizou as palavras República Islâmica, o que foi interessante. Só quando chegámos a Obama é que um presidente americano usou a expressão. Por vezes, esquecemo-nos que um homem duro como Reagan estava aberto à ideia de trabalhar com a República Islâmica, aceitando a sua existência. E, hoje em dia, isso parece ter-se perdido. 

Escreve que não há um único problema com que os EUA estejam a lidar no Médio Oriente que não possa ser atribuído, de uma forma ou de outra, à sua relação disfuncional com o Irão. Quais seriam as implicações se essa relação pudesse ser invertida? 
Penso que seria um fator de mudança fundamental. Penso que, até certo ponto, era o que Obama tinha em mente em 2009, fazendo reset às relações dos EUA no Médio Oriente. Fundamentalmente, penso que ele queria afastar-se da dependência dos sauditas, dos israelitas e dos egípcios para uma postura americana mais diversificada no Médio Oriente, que acabasse com o antagonismo com o Irão e permitisse aos EUA começar a olhar para leste, para a China e outros países, e afastar-se de algumas das formas em que estavam estagnados e atolados no Médio Oriente. Mas ele não foi capaz de o fazer. Descobriu que existem interesses americanos profundamente enraizados na região. O Irão está ainda mais isolado dos EUA, que estão ainda mais ligados aos israelitas, aos sauditas e a outros aliados do que alguma vez estiveram antes, e provavelmente estarão ainda mais ligados numa presidência Trump, se ele conquistar o poder em novembro. É por isso que não estou muito esperançado com a ideia de qualquer tipo de mudança nas relações entre os EUA e o Irão, penso que seria necessário algo realmente inesperado e invulgar para mudar essa dinâmica. 

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