"Os EUA precisam de uma Europa forte, para se concentrarem noutras regiões do globo"
Porquê a escolha dos Açores para esta conferência? O arquipélago, estratégico ao longo das últimas décadas, muito também devido à Base das Lajes, ganha novo destaque e importância neste contexto de incerteza internacional?
António Monteiro (AM): Esta conferência é uma iniciativa da Associação LPAZ, à qual o Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL, o Centro do Atlântico, o Centro de Estudos Humanísticos da Universidade dos Açores e a Transatlantic Studies Association se associaram. A LPAZ foi criada em 2013 e trabalha para a valorização e promoção do aeroporto de Santa Maria, defendendo o seu património histórico e operacional, mas também acompanhando os desenvolvimentos estratégicos no âmbito da aviação e do aeroespacial. Foi em Santa Maria que a Força Aérea americana estabeleceu a sua primeira base nos Açores, em 1944-1946, passando depois a aeroporto dedicado à aviação civil internacional. Enquanto o braço militar americano passou pelas Lajes, na ilha Terceira, o braço económico em tempos de Plano Marshall, reconstrução e união europeia, passou por Santa Maria. Atualmente, parece estar a processar-se uma reinvenção do papel dos Açores na sua função de apoio à mobilidade, comunicações, conhecimento e controlo do Atlântico, já não tanto num modelo militarista e controlado pelos Estados, mas agora mais participado pela academia e pela indústria, um pouco como aconteceu com a aviação no século XX para a qual Santa Maria foi tão útil.
Ana Mónica Fonseca (AMF): A escolha de um tema tão abrangente como os desafios do Ocidente vistos a partir do Atlântico, com um particular enfoque nos Açores, faz todo o sentido. Na realidade, não só o contexto internacional atual reforça a importância estratégica dos Açores, como o próprio arquipélago, em especial a ilha de Santa Maria, tem vindo a destacar-se, nomeadamente ao nível das instalações aeroespaciais. Os temas em discussão vão desde a Extensão da Plataforma Continental e o conhecimento científico do oceano profundo até ao domínio e desenvolvimento das comunicações aeroespaciais.
Com a guerra na Ucrânia, os EUA passaram a olhar com novos olhos para a relação transatlântica, após décadas virados para o Pacífico?
AMF: A invasão da Ucrânia por parte da Rússia e a subsequente guerra que se tem prolongado até hoje fizeram com que os EUA virassem as atenções de novo para a Europa e para os seus aliados da NATO. A resposta assertiva dos aliados europeus e da União Europeia em apoiar a resistência ucraniana e aplicar sanções à Rússia, demonstrou que a relação transatlântica se está a renovar. No entanto, isto não implica que haja uma diminuição da importância do Pacífico na política externa norte-americana, e os recentes episódios em torno de Taiwan são disso exemplo. Em simultâneo, os EUA precisam de ter uma Europa forte, coesa, para poderem concentrar-se noutras regiões do globo.
Qual o papel de Portugal neste contexto em que uma guerra às portas da Europa volta a dar nova importância à NATO e à relação transatlântica com os EUA?
AM: Portugal tem vindo a realçar a sua importância estratégica no seio das relações transatlânticas, reforçando o seu papel de charneira entre as duas margens do Atlântico. No entanto, não nos podemos esquecer que o enquadramento do ponto de vista da política externa e de segurança portuguesa vai para além do Atlântico Norte. Sempre houve uma perspetiva transversal do Atlântico e, como bem recentemente a nossa ministra da Defesa Nacional afirmou, durante uma visita aos Açores, as ameaças que enfrentamos vêm do leste, numa referência clara às tensões com a Rússia, mas também do sul.
AMF: Portugal tem uma visão abrangente do que é o Atlântico. É nesse sentido que, nesta conferência, procuramos também incluir essa perspetiva mais alargada e transdisciplinar do Atlântico, iniciando com uma apresentação de Hugo Cabral sobre o impacto da travessia aérea do Atlântico Sul de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, cujo centenário se assinala este ano, e passando pela intervenção de Alexandre Moreli, sobre o papel do atlanticismo na política brasileira.
Os mares, mais do que a terra, podem ser palco dos grandes conflitos do futuro?
AMF: Os conflitos do futuro passarão certamente pela competição no acesso às matérias-primas e aos recursos naturais, algo que, aliás, já é claramente percetível com as consequências da Guerra da Ucrânia, nomeadamente no acesso ao transporte de cereais ou do gás.
AM: A nossa intenção em iniciar esta conferência com um painel sobre as questões marítimas prende-se precisamente com essa consciência de que os recursos marítimos, desde os fundos dos oceanos, desempenham um papel central do ponto de vista estratégico, não apenas do ponto de vista da segurança e defesa, mas também do ponto de vista científico e económico, ambiental e de sustentabilidade. Chegámos a um ponto do Antropoceno em que percebemos que o mundo, ele próprio, é uma ilha. Desta forma, nada melhor do que nos reunirmos para reflexão sobre todos estes temas do que numa ilha que foi fundamental para Portugal lançar o primeiro processo de globalização.
Estação espacial chinesa, empresas privadas, etc. O espaço é o novo palco da concorrência entre as grandes potências?
AMF: O espaço está a tornar-se um palco muito importante do ponto de vista da competição no sistema internacional. Por vários motivos: porque revela a capacidade económica, científica e técnica de cada um dos atores que aí tenta ganhar relevância e porque essa relevância permite aceder ao controlo de vários recursos que são atualmente fundamentais na competição entre as grandes potências: controlo das comunicações, das tecnologias, liderança em setores de ponta.
AM: Os Açores, e mais especificamente a ilha de Santa Maria, dada a sua posição geográfica e condições naturais, estão a tornar-se um hub científico do setor aeroespacial, não só ao nível nacional, mas também ao nível europeu. E é também nesse sentido que o governo português tem explorado a posição geoestratégica e infraestruturas aeroportuárias já existentes. Em Santa Maria estão já em funcionamento infraestruturas importantes da ESA no Teleporto de Santa Maria, e temos na Terceira o Centro do Atlântico, um think tank criado por Portugal para criar sinergias dentro da Bacia do Atlântico, e que é igualmente parceiro na organização desta conferência.
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