Estima-se que Williams e Wilmore regressem à Terra em fevereiro de 2025. A missão de oito dias extravasou no calendário para os oito meses.
Estima-se que Williams e Wilmore regressem à Terra em fevereiro de 2025. A missão de oito dias extravasou no calendário para os oito meses.

Os desafios de viver a 400 quilómetros de altitude num “lugar feliz”

O caso recente dos dois astronautas da NASA retidos na Estação Espacial Internacional, recuperou um tema antigo, o da sobrevivência dos humanos no espaço por longos períodos. A microgravidade altera rotinas básicas. A exposição ao elemento hostil que é o espaço é um desafio para corpo e mente.
Publicado a
Atualizado a

Operada pela Rússia, a estação espacial MIR foi, até março de 2001, o maior satélite artificial em órbita, 400 quilómetros acima da superfície terrestre. Foi também a casa do cosmonauta russo Valeri Polyakov por quase 438 dias entre 1994 e 1995. Polyakov, nascido em Tula, no ano de 1942, estabeleceu na época recorde do mais longo voo espacial humano contínuo. Desde a década de 1950 que compatriotas cosmonautas de Valeri estendiam o tempo de permanência humana no espaço. Sergei Krikalev, nascido em 1958, ficaria conhecido como o “último cidadão da União Soviética”. Em 1991/1992, o cosmonauta passou 311 dias a bordo da MIR. Abaixo dos seus pés, o seu país natal desagregava-se em repúblicas. Krikalev foi para o espaço com berço soviético e retornou à Terra como cidadão russo. O estatuto do cosmonauta transcendeu esta singularidade imposta pelas condições políticas. Sergei ostentou por longos anos o título de humano com a mais longa permanência no espaço, um total de 803 dias, num acumulado de sete missões espaciais soviéticas, russas e norte-americanas. Só em 2015, o russo Gennady Padalka derrubaria este recorde, com 878 dias acumulados em órbita terrestre. Nove anos volvidos, em 2024, seria a vez do russo Oleg Kononenko subir ao pódio dos recordes espaciais. No total, o cosmonauta somou mais de mil dias em órbita, acumulado em cinco voos espaciais.

Estudar os efeitos no corpo humano da permanência da nossa espécie no espaço, um território hostil, esteve na origem de uma pesquisa científica a bordo daquele que é o maior objeto construído pelo homem a orbitar a Terra. Para que se tenha um termo de comparação terreno, a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), tem uma área equiparável à do londrino Palácio de Buckingham, uma massa superior a 400 toneladas, arrastada a uma velocidade média de 27 mil quilómetros por hora. Contas feitas a ISS orbita, a cada 24 horas, por 16 vezes a Terra, sobrevoando 90% da população do nosso planeta. Os números superlativos desta megaestrutura em funcionamento desde novembro de 2000, incluem o tempo de permanência a bordo dos seus ocupantes. A astronauta Peggy Whitson estabeleceu o recorde dos Estados Unidos ao cumprir 665 dias contínuos no espaço, findos a 2 de setembro de 2017. No ano anterior, a Estação Espacial Internacional fora palco de uma pesquisa científica que estudou os efeitos na saúde humana de voos espaciais de longa duração. O americano Scott Kelly e o russo Mikhail Kornienko, respetivamente selecionadas pela NASA e pela congénere russa Roscosmos, simbolizaram mais do que a parceria além-fronteiras que, desde a primeira hora assinala o projeto da ISS. A dupla entregou à ciência os seus dias na Estação Espacial, prestando-se à investigação médica. A Missão de um ano procurou perceber as causas e os efeitos da permanência prolongada no espaço, causa da perda de massa muscular e óssea, problemas cardiovasculares, problemas de visão e no sistema imunológico.

“Um lugar feliz”

Em 2024, um incidente com uma dupla de astronautas veteranos da NASA, empurrou para a ribalta mundial a questão da vida no espaço por períodos prolongados. Sunita Williams e Butch Wilmore chegaram à ISS a 6 de junho último para uma missão de uma semana. Os astronautas norte-americanos estreavam a cápsula Starliner, da Boeing, numa missão de teste fadada a má-sorte. Já depois de acoplada à ISS, a cápsula apresentou problemas no sistema de propulsão, o que levou a Agência Espacial norte-americana a abortar a viagem de regresso com humanos a bordo. Recorde-se que em 2012 a NASA investiu perto de mil milhões de euros para o desenvolvimento de cápsulas com a assinatura Starliner e Dragon (SpaceX, de Elon Musk) para viagens de ida e volta à ISS. Agora, estima-se que Williams e Wilmore regressem ao planeta natal em fevereiro de 2025. A missão de oito dias extravasou no calendário para os oito meses. Os astronautas não estão sozinhos na Estação ocupada continuamente desde novembro de 2000. Presentemente, Sunita e Butch juntam-se aos quatro membros da missão SpaceX Crew-8 e três da missão Soyuz MS-25, operada pela Roscosmos. Longe da Terra, Sunita e Butch, estão abastecidos com alimentos e provisões adicionais na ISS e praticam um quotidiano semelhante ao da restante tripulação. Face ao impacto mediático da missão de regresso abortada, a NASA organizou a 13 de setembro último uma conferência de imprensa. Momento para um contacto direto com a dupla Williams e Wilmore a bordo da ISS e para estes expressarem a alegria por estarem “num lugar feliz” e regozijarem-se por “aqui estarmos”.

Uma Babel fora da Terra

O “lugar feliz” habitado temporariamente por Williams e Wilmore já foi a casa de 270 astronautas e convidados, provenientes de 23 países. Uma lista encabeçada pelos Estados Unidos (163 visitantes), seguidos da Rússia (57 visitantes), do Japão e do Canadá, respetivamente com 11 e nove visitantes. Brasil, Israel, Cazaquistão, África do Sul, Malásia, entre outros estados, contam com um visitante até ao presente. A 28 de abril de 2001, o empresário e multimilionário norte-americano Dennis Anthony, desembolsou cerca de 20 milhões de euros para se tornar o primeiro turista espacial. Chegou a bordo da ISS ao abrigo da missão russa Soyuz TM-32.

Desfiar a linha do tempo até à origem do projeto da ISS, faz-nos recuar a 1984 e à presidência de Ronald Reagan. O aval oficial do projeto por parte do Republicano e a aprovação do orçamento a cargo do Congresso dos Estados Unidos abriu as portas à fase de projeto que decorreu até 1993. Uma iniciativa dos Estados Unidos, Canadá, Japão e Europa, a que se juntaria a Rússia em 1993, a convite do Presidente Bill Clinton. Presentemente, cinco agências espaciais operam a ISS (Agência Espacial Canadiana,Agência Espacial Europeia, Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial, a NASA e a Roscosmos). Na fase de construção da Estação, iniciada na década de 1990, o afã de voos de montagem enxameou o espaço. Os grandes módulos e outras peças da estação foram entregues em 42 voos de montagem, 37 nos vaivéns espaciais dos EUA e cinco nos foguetes russos Proton/Soyuz.

A estação é utilizada continuamente para experiências científicas, entre outras nos campos da biomédica, física, genética, biologia, meteorologia. Experiências que apresentariam elevada dificuldade se empreendidas na Terra e que já carregaram para a ISS mais de 80 toneladas de materiais de investigação. Uma vertente científica da ISS, enfatizada pela NASA no site que dedica à Estação Espacial. De há vários anos a esta parte a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA) lança regularmente uma publicação que intitula International Space Station Benefits for Humanity (Benefícios da Estação Espacial Internacional para a Humanidade), destacando que esta “evoluiu para um laboratório avançado de microgravidade para operações espaciais humanas e científicas”. Desde o ano 2000, a bordo da ISS já se realizaram mais de 3.300 experiências de carácter científico. Na edição de 2022, a referida publicação sublinha os estudos empreendidos no tratamento do cancro, o desenvolvimento de materiais que permitam reduzir o calor absorvido pelas superfícies urbanas, novas técnicas de irrigação agrícola e a criação de tecidos humanos impressos em 3D.

Os desafios das grandes viagens

A equipa internacional de sete pessoas, a que se juntaram Sunita Williams e Butch Wilmore, vive e trabalha enquanto viaja a uma velocidade de oito quilómetros por segundo, orbitando a Terra a cada 90 minutos. A bordo há seis dormitórios, duas casas de banho, um ginásio e uma janela panorâmica com uma vista de 360 graus sobre o nosso planeta. Um quotidiano que a BBC, no artigo “Astronauts reveal what life is like on ISS”, com a autoria de Georgina Rannard, detalhava no passado dia 15 de setembro. “Acordam cedo. Por volta das 6h30, os astronautas emergem do dormitório do tamanho de uma cabine telefónica no módulo da ISS chamado Harmony (...) Normalmente, o suor e a urina são reciclados para água potável”, descreve a repórter, para continuar: “os compartimentos têm computadores portáteis para que a tripulação possa manter contacto com a família”. “Sem a gravidade a extrair o suor do corpo, os astronautas ficam cobertos com uma camada de sudação. Sentia o suor a acumular-se no couro cabeludo. Restava-me coçá-lo”, descreve no mesmo artigo Nicole Stott, uma astronauta americana da NASA que passou 104 dias no espaço em 2009 e 2011.

As atividades extra-veiculares são outra das constantes na Estação Internacional, com a fasquia atual na casa dos 260 desde a entrada em operação daquela estrutura. No já citado artigo da BBC, o astronauta canadiano Chris Hadfield pormenorizava que as “15 horas lá fora, com nada entre mim e o universo, além do meu visor de plástico, foram estimulantes e sobrenaturais”. Sobre o cheiro que experimentam no espaço, detalhava no mesmo artigo Helen Sharman, a primeira britânica a bordo da estação espacial soviética MIR em 1991: “na Terra temos muitos cheiros diferentes (...) mas no espaço há apenas um cheiro [metálico] e acostumamo-nos a ele rapidamente”.

Também no mesmo artigo, Scott enfatizava: “o espaço coloca os nossos ossos e os músculos num processo de envelhecimento acelerado e os cientistas podem aprender com esse facto”. A astronauta tocava numa questão sensível para a exploração espacial. A NASA está particularmente interessada em investigar como o corpo reage a voos espaciais de longa duração. A agência planeia num futuro próximo missões à Lua e a Marte. O que exatamente acontece com o corpo no espaço e quais são os riscos a que se sujeita? E, esses riscos são os mesmos para astronautas que passam seis meses na Estação Espacial em comparação com aqueles que poderão participar numa missão a Marte ao longo de anos? A resposta para uma questão complexa é simples: “Não”, escreve a NASA no seu site. A Agência está a pesquisar os riscos para missões a Marte e agrupa-os em cinco perigos, resumidos na sigla "RIDGE", abreviação de Radiação Espacial, Isolamento e Confinamento, Distância da Terra, Campos Gravitacionais e Ambientes Hostis/Fechados.

Em síntese, e no que concerne à radiação espacial, os tripulantes estão expostos a altos níveis de radiação cósmica, o que pode causar danos celulares, aumentar o risco de cancro entre outros problemas de saúde. No que toca ao isolamento e confinamento, a convivência prolongada em ambientes fechados pode gerar stresse psicológico, afetando o desempenho e a saúde mental. A considerar também é a enorme distância à Terra. Quanto mais longe do nosso planeta, maiores são os desafios, como a dificuldade de comunicação em tempo real e o acesso limitado a recursos médicos. Por seu turno, e como já visto, a exposição prolongada à microgravidade causa perda óssea, atrofia muscular, entre outros efeitos adversos ao corpo humano. Finalmente, ambientes hostis/fechados são desafiadores. Fatores como a reciclagem de ar e da água e o controlo de temperatura são cruciais à sobrevivência dos astronautas.

Ainda distante de Marte, próximo da Terra e dos 400 quilómetros que nos separam da ISS, a Starliner lançou-se na noite de 6 de setembro num voo solitário e angustiado em direção ao planeta azul. A nave espacial entrou na atmosfera terrestre a uma velocidade orbital de 27.400 quilómetros por hora. Antes de se precipitar rumo ao solo, a Starliner acionou um conjunto de paraquedas e airbags, travões à chegada ao porto espacial de White Sands, no deserto do Novo México. Como expectável, Sunita Williams e Butch Wilmore não seguiam a bordo. Terão de aguardar mais cinco meses no lugar com a melhor vista sobre a Terra.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt