O testemunho de três embaixadores portugueses sobre Eduardo dos Santos
António Martins da Cruz, Francisco Ribeiro Telles e António Monteiro falam sobre o legado do ex-presidente de Angola, que morreu na sexta-feira aos 79 anos.
"Depois de ganhar a guerra, soube ganhar a paz"
António Martins da Cruz
Embaixador e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros
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O presidente José Eduardo dos Santos enfrentou uma situação muito difícil no princípio da sua presidência, que foi uma guerra civil que demorou 27 anos. Ele ganhou e depois de ganhar a guerra, soube ganhar a paz. Ou seja, soube absorver uma série de políticos que não estavam de acordo com ele e pô-los no próprio governo, integrou nas Forças Armadas a maioria dos generais e dos oficiais da UNITA. Soube fazer a paz e soube transformar Angola numa potência regional africana e marcou o tempo de Angola e o tempo de África enquanto esteve na presidência. Aproveitou a paz para desenvolver o país e sobretudo soube sair a tempo, ao contrário de muitos outros presidentes africanos. Soube respeitar as regras de uma constituição que ele próprio tinha pedido para ser feita e apoiou o seu ministro da Defesa, o general João Lourenço, para presidente. É curioso, nas suas decisões era um homem frio e racional. Mas depois tinha o seu lado africano como por exemplo, como muitos outros fazem, ao proteger, talvez demasiado, a família. E isso é obviamente alvo de críticas. Simplesmente, penso que muitas das críticas que são feitas não têm em conta que não podemos comparar Angola com a Suécia ou a Dinamarca. Temos que comparar Angola com os outros países africanos. E em termos dos outros países africanos, José Eduardo dos Santos não só não destoa, mas faz melhor do que muitos outros. Desenvolveu melhor o país do que os vizinhos. Penso que é preciso enquadrá-lo na região e no continente e não fazer-lhe críticas injustas como se ele fosse presidente de um país nórdico.
"Interlocutor empenhado em construir boas relações"
Francisco Ribeiro Telles
Embaixador e antigo secretário-geral da CPLP
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No período em que estive como embaixador em Luanda, de 2007 a 2012, houve três questões que marcaram o mandato de José Eduardo dos Santos. Por um lado, a reconciliação que promoveu entre os angolanos. O facto de ter inserido a UNITA na arquitetura política, chamando-os para Luanda, inclusivamente para poderem ser candidatos às eleições. Isso contribuiu para pacificar o país e, de certa forma, para se reconciliar depois de duas guerras civis muito duras e violentas. Acho que isso foi um ato de lucidez de José Eduardo dos Santos, que não era muito comum naquelas circunstâncias. Depois, a relação entre Angola e Portugal. Sempre vi no presidente um homem interessado em construir boas relações, sólidas e consistentes com Portugal, interessado em ultrapassar os problemas a nível bilateral. Sempre encontrei nele um interlocutor atento e empenhado em construir boas relações com Portugal. Em terceiro lugar, uma questão que na altura fiquei muito agradado: ele contribuiu muito para a promoção e difusão da língua portuguesa em Angola. Hoje em dia fala-se muito mais português do que se falava no período colonial. O português funcionou como um fator de coesão e unidade do país. Acho que José Eduardo dos Santos percebeu isso. Porque na altura havia uma grande pressão para que as línguas nacionais pudessem ser revitalizadas e ele sempre disse que as línguas nacionais eram importantes, mas que o que se tratava era de nos podermos entender todos. E o português funcionou como língua franca. José Eduardo dos Santos promoveu isso.
"Legado mais importante é a luta pela paz"
António Monteiro
Embaixador e ex-chefe da diplomacia
O legado mais importante da presidência de José Eduardo dos Santos é a luta dele pela paz e a abertura e capacidade de respeitar os acordos e tentar um processo de reconciliação nacional, que permitiu ao país pacificar e entrar na via democrática. E mesmo com todas as dificuldades construir um processo não apenas de reconstituição física, um país que estava destruído e devastado, mas também do convívio entre todos os angolanos. Isso permite que Angola, hoje em dia, possa olhar para o futuro com otimismo. Numa longa presidência há sempre altos e baixos. Pontos positivos e pontos negativos. E é evidente que há défices de desenvolvimento para um país que tem a potencialidade de Angola. Mas temos que olhar para o facto de que Angola teve uma guerra terrível. Nós hoje assustamo-nos com o que está a acontecer na Ucrânia e o que será necessário para reconstruir o país. Angola estava devastada praticamente a 70% e foi reconstruída por eles próprios, não teve um plano Marshall de ajuda. Foram eles que o fizeram. Aí temos que prestar homenagem aos angolanos e aos seus líderes. José Eduardo dos Santos gostava de Portugal e mostrou sempre confiança no nosso papel como mediadores em Angola. Confiou sempre. Também defendia muito a língua e cultura portuguesa. Em relação aos acordos de paz, em que trabalhei muito com ele, o que ele dizia fazia, e isso era um aspeto muito positivo. E a posição de que o mais importante para a Angola era a estabilidade, a pacificação, a segurança interna, isso é um trunfo da presidência de José Eduardo dos Santos.