Há um mês, os rebeldes liderados pelo grupo islamita Hayat Tahrir al-Sham (HTS) pareciam ter apanhado de surpresa o Governo de Bashar al-Assad ao recuperar o controlo de Aleppo. Seguiu-se Hama, depois Homs e, 12 dias após começarem a sua ofensiva a partir de Idlib tinham chegado a Damasco. A fuga do presidente sírio, a 8 de dezembro, pôs fim ao regime dos Assad (que já durava desde os anos 1970). Quase um mês depois, o Governo de transição dá os primeiros passos com altos e baixos. Mas afinal, quem manda agora na Síria?O líder de facto foi, durante anos, conhecido pelo seu nome de guerra Abu Mohammad al-Julani, mas ao entrar triunfante em Damasco assumiu o nome verdadeiro: Ahmed al-Sharaa. Foi o último ato da mudança do homem forte do HTS, que inclui até uma mudança de visual, substituindo o uniforme militar pela camisa e o fato. Uma tentativa de se distanciar dos seus primórdios ao lado da Al-Qaeda, parte da razão pela qual o próprio al-Sharaa e o HTS estão na listas de terrorismo em vários países. Ainda antes de os rebeldes assumirem o controlo de Damasco, já al-Sharaa dava entrevistas no estrangeiro, para passar a imagem de líder moderado e pragmático. Algo que continua a fazer depois de se tornar no líder de facto, quando também se multiplica em encontros com enviados estrangeiros - incluindo da União Europeia e dos EUA - e até com líderes das minorias religiosas. O regime de Assad, ele próprio da minoria alauita, era visto como um protetor da pluralidade da Síria - apesar do caráter ditatorial. O futuro das diferentes minorias é uma incógnita com al-Sharaa (sunita), apesar das suas garantias de que nenhuma seria excluída desta “nova era muito distante do sectarismo”. Mas o Governo de transição é formado principalmente por antigos membros do HTS - que agora têm que fazer a transição da “ideologia de grupo” para “ideologia de construção de Estado”. Um dos testes é, por exemplo, a presença de mulheres - e o novo Governo só tem até agora uma. Aisha al-Dibs foi nomeada ministra dos Assuntos das Mulheres há menos de duas semanas, mas já causou polémica. Numa entrevista a meios turcos, apelou às mulheres “para não irem além das prioridades da sua natureza dada por Deus” e para conhecerem “o seu papel educativo na família”, levando a questionar que papel lhes será reservado no futuro. Outra mulher já foi entretanto nomeada para outro cargo de destaque: Maysaa Sabrine é a primeira governadora do Banco Central, após anos como vice. Governo de transiçãoO homem escolhido para liderar o Governo de transição, supostamente até 1 de março, foi Mohammed al-Bashir. Engenheiro de formação, de 41 anos, já era há um ano o primeiro-ministro da área controlada pelos rebeldes no noroeste da Síria e antes tinha a pasta do Desenvolvimento. Após ser escolhido, revelou que fazia sentido que os restantes membros do Executivo fossem os que já faziam parte desse Governo de Salvação, que operava a partir de Idlib, até serem confirmados ou escolhidos novos nomes. O Governo de transição já tem 21 membros. A passagem de poder decorreu sem incidentes, entre os anteriores ministros e os novos, mas os desafios do Governo de transição são muitos, a começar pela segurança, as relações externas e a economia.A 21 de dezembro, o Governo de transição nomeou Murhaf Abu Qasra para a Defesa. O antigo comandante do Comando de Operações Militares (que reunia vários grupos rebeldes), cujo nome de guerra era Abu Hassan al-Hamawi, era líder militar do HTS há cinco anos e foi entretanto promovido a general.Numa entrevista à AFP, ainda antes de assumir o cargo de ministro, Abu Qasra tinha dito que o HTS seria “o primeiro” grupo a dissolver o seu braço armado, integrando os seus combatentes no exército. E exigiu que os outros grupos façam o mesmo. Abu Qasra defendeu ainda que a nova liderança iria tentar estender a sua autoridade às áreas semiautónomas controladas pelos curdos no norte e noroeste da Síria. Os rebeldes podem controlar Damasco, mas há muito que Assad não controlava todo o território. As Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês), a coligação curda que ajudou no combate contra o Estado Islâmico e tem o apoio dos EUA, não aceitou fazer parte do novo exército - onde também ficaram oficiais que desertaram do exército de Assad -, defendendo a necessidade de haver negociações prévias. As SDF controlam um terço do território sírio (com os EUA entretanto a construir uma base em Kotani). Mas, ao contrário do que acontece no vizinho Iraque, a maioria da população que lá vive não é curda, mas árabe - pelo que dificilmente podem esperar criar uma região autónoma. Além disso, existe o problema da Turquia, que criou uma zona tampão dentro da Síria, junto à sua fronteira. Ancara vê as SDF como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), considerado um grupo terrorista tanto pelos turcos como pelos norte-americanos. Os combates entre os curdos e os rebeldes apoiados pelos turcos têm-se intensificado nas últimas semanas, criando mais instabilidade. Um desafio também para o chefe da diplomacia da transição, Asaad Hassan al-Shaibani, que liderava o Departamento de Assuntos Políticos no Governo de Salvação e que terá que jogar com os diferentes interesses e países que nos últimos anos tiveram um pé na Síria. Um exemplo: o futuro das duas bases russas no país ainda está em dúvida, sendo que Moscovo - tal como Teerão - apoiou o regime de Assad. A primeira viagem ao estrangeiro do novo ministro, que viajou acompanhado do titular da Defesa, foi esta quarta-feira à Arábia Saudita - esperando reabrir “uma nova página brilhante” nas relações entre os dois países. Na agenda, a discussão sobre a Liga Árabe - a Síria tinha sido expulsa, mas foi readmitida ainda com Assad no poder, mas mantinha-se a tensão com os países da região. Al-Shaibani também reiterou a disponibilidade para cooperar com os EUA. Um dos principais focos das novas autoridades é pedir o fim das sanções ocidentais, impostas ao anterior regime. Numa entrevista à Al-Jazeera, o ministro considerou-as agora “sem sentido e ineficazes”. Neste âmbito, são muitos os problemas económicas do Governo de transição e do ministro da Economia, Basil Abdul Aziz - que fazia parte do Governo de Salvação.Num país em que, segundo as Nações Unidas, mais de 90% da população vive na pobreza, a economia é chave. O ministro é defensor do mercado livre, querendo acabando com a ideia da “economia dos poucos” (Assad e os seus aliados) para passar a uma “economia de mercado”. As novas autoridades já prometeram um aumento dos salários de 400%, não sendo claro quando isso poderá acontecer. O Banco Central ainda terá, segundo as fontes da Reuters, as 26 toneladas de ouro que tinha antes do início da guerra civil em 2011. Mas tem poucas reservas de dinheiro estrangeiro.TransiçãoTodos estes desafios terão de ser enfrentados pelos novos líderes sírios, com o próximo passo a ser uma Conferência de Diálogo Nacional. A ideia é reunir mais de mil pessoas, representantes de todos os setores da sociedade civil e das diferentes regiões do país, além de sírios que estão no estrangeiro, para discutir o futuro. Não é certa a data da reunião, havendo quem diga que pode começar já este fim de semana e outros que falam só em meados de janeiro. Numa entrevista à estação saudita Al-Arabiya, al-Sharaa disse no fim de semana que a realização de eleições pode só acontecer dentro de quatro anos. Segundo o calendário do líder de facto sírio, a população pode só testemunhar mudanças significativas no país dentro de um ano, sendo precisos até três para escrever uma nova Constituição e depois ainda é preciso realizar os censos para ficar a conhecer a população antes de ir a votos. Alguns consideram este plano realista, mas outros temem que o HTS possa aproveitar para consolidar o poder. A Conferência de Diálogo Nacional poderá dar mais pistas para o futuro. susana.f.salvador@dn.pt