O que une Taiwan, República Saarauí e Kosovo? Não estão na ONU
Os líderes dos 193 Estados membros discursam a partir de terça-feira em Nova Iorque, mas apesar de serem reconhecidos bilateralmente por vários países, há três Estados que não têm tempo de antena.
Uma ilha que foi um dos Estados fundadores das Nações Unidas, um território que é considerado um caso de descolonização pendente e uma ex-província da Sérvia que desde o desmembramento da Jugoslávia procura o reconhecimento da independência. Taiwan (oficialmente República da China), República Árabe Saarauí Democrática (que reclama o controlo do Saara Ocidental, cujo território está 80% sob domínio de Marrocos) e Kosovo. Os três são reconhecidos bilateralmente por vários países da ONU, mas não são membros - o que os deixa de fora da "arquitetura multilateral internacional" e impede os seus líderes de discursar na Assembleia Geral, a partir de terça-feira.
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Taiwan é reconhecido por apenas 13 países da ONU (mais o Vaticano), já que a China exige exclusividade nas relações diplomáticas com os vários Estados. Quanto à República Saarauí, foi reconhecida por 84 países, mas houve recuos (restam 46), sendo que a ONU reconhece a Frente Polisário como representante legítima do povo saarauí. Já o Kosovo é reconhecido por mais de uma centena de países (incluindo Portugal), apesar de na própria União Europeia não haver consenso, e está no Fundo Monetário Internacional (que é da ONU).
"Em termos bilaterais podem até ter algum reconhecimento internacional, mas não podem entrar no sistema das Nações Unidas", lembrou ao DN o antigo secretário-geral adjunto da ONU, Victor Ângelo. "Isso exclui-os da arquitetura multilateral internacional. É um handicap político importante. Prejudica politicamente o estatuto internacional", referiu.
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Mas mesmo que quisessem ser Estados membros, esbarram nos cinco países que fazem parte do Conselho de Segurança. "Para serem considerados pela Assembleia Geral para ir a votação teriam primeiro de ter a luz verde do Conselho de Segurança. No caso do Kosovo, a Rússia certamente vai vetar. No caso de Taiwan, o veto seria quer da China quer da Rússia. No caso dos saarauís seria provavelmente da França, pela relação privilegiada com Marrocos. Como não têm hipótese, entrar na ONU não faz provavelmente parte da sua agenda internacional".
Atualmente há 193 países na ONU (cada um terá 15 a 20 minutos para discursar na Assembleia Geral). O último a entrar foi o Sudão do Sul, em 2011, após a independência do Sudão, oficializada através de referendo. Será que Taiwan, República Saarauí ou Kosovo podem ser o 194.º?
Taiwan
A ilha que já esteve no Conselho de Segurança
"Taiwan nunca pertenceu à República Popular da China, porque somos mais antigos. Somos duas coisas separadas"
Tsung-Che Chang , representante do Centro Económico e Cultural de Taipé em Portugal
Taiwan é oficialmente a República da China, que foi formada em 1911 e controlava então todo o território do que hoje é a República Popular da China. Em 1949, o general Chiang Kai-shek perdeu a guerra civil para os comunistas de Mao Tse-tung, refugiando-se com milhão e meio de pessoas na ilha que os portugueses batizaram de Formosa. A República da China foi membro fundador da ONU em 1945 e era um dos membros permanentes no Conselho de Segurança, com Taiwan a continuar a representar toda a China até 1971 - quando a resolução 2758 reconheceu oficialmente a República Popular da China como "único representante legítimo" na ONU.
"A resolução expulsou os representantes de Chiang Kai-shek da ONU, mas nunca menciona Taiwan", disse ao DN o representante do Centro Económico e Cultural de Taipé em Portugal, Tsung-Che Chang. "Só que a República Popular da China, depois de 1971, tentou enganar o mundo, dizendo que a resolução 2758/71 resolveu o problema de Taiwan, que o povo da ilha pertence à China. Exagerou. Não é verdade", referiu, rejeitando o argumento de "província rebelde" de Pequim. "Taiwan nunca pertenceu à República Popular da China, porque somos mais antigos. Somos duas coisas separadas", acrescentou, sendo que Pequim defende a política de "Uma Só China".
À medida que a China foi ganhando força, Taiwan foi perdendo apoios - só 14 países reconhecem atualmente a sua independência. "É por isso que Taiwan precisa de ter um espaço para falar a verdade", afirmou Chang, apesar de admitir que neste momento não há vantagem em ser membro da ONU (até porque a China, enquanto membro permanente do Conselho ode Segurança, não autorizará).
Contudo, defende a necessidade de uma "participação significativa" de Taiwan numa série de outras organizações especializadas, como a Organização Internacional de Aviação Civil, a Organização Mundial de Saúde (já foi observador numa altura de melhores relações com Pequim) ou a própria Interpol. "Sem canais oficiais é difícil contribuir para o mundo", referiu, lembrando o hashtag criado nas redes sociais "#Taiwancanhelp", Taiwan pode ajudar. "Se estivéssemos na ONU podíamos ajudar mais", disse.
Chang deixou ainda um alerta: "A ambição da China não é só tomar Taiwan." O representante lembrou que o Ocidente achou que a entrada da China na Organização Mundial de Comércio resultaria numa maior abertura, mas isso não aconteceu. "Era um sonho", explicou, que só serviu para enriquecer o Partido Comunista Chinês que apostou em Defesa. "O mundo está agora mais alerta", já que a guerra na Ucrânia deixou claro que uma "política de apaziguamento" não resulta e que o status quo que existe desde os anos 1950 na região está em risco.
A nova estratégia do Ocidente é "fazer mais na prevenção para evitar a terceira guerra mundial", alega. E se com a guerra na Ucrânia "o mundo está a sofrer por causa da falta de cereais e gás russo", numa guerra China-Taiwan, "a economia do mundo vai entrar em colapso", já que a ilha produz 70% dos microchips mundiais, que hoje estão em todo o lado.
Saara Ocidental
Um território à espera do referendo prometido
"A República Saarauí existe porque existe um território bem definido, porque existe um povo e porque a ONU reconhece a este povo o seu direito à autodeterminação"
Omar Mih, representante da Frente Polisário em Portugal
A questão sarauí tem sido debatida nas Nações Unidas, desde o comité de descolonização à Assembleia Geral que anualmente aprova resoluções sobre o tema, desde a década de 1960. "É o último conflito colonial ainda aberto em África", disse o representante da Frente Polisário em Portugal, Omar Mih. Esta frente, que conta com o apoio da Argélia, é considerada a legítima representante do povo sarauí, que a ONU defende ter direito à autodeterminação.
"A 27 de fevereiro de 1976, a potência colonial que naquele tempo era a Espanha, deixou o território e, para não criar um vazio jurídico, a Frente Polisário, que é movimento de libertação saarauí, proclamou a República Árabe Saarauí Democrática", referiu Mih. Os espanhóis tinham contudo decidido pela partilha do território entre Marrocos e Mauritânia, com a Polisário a pegar em armas para reivindicar a soberania sobre todo o Saara Ocidental.
O cessar-fogo com Marrocos, que controla 80% do território, só surgiu em 1991, após "um plano de paz negociado pelas Nações Unidas, aprovado, apoiado e aceite por ambas as partes" que previa a realização de um referendo. As condições para a realização desse referendo, nomeadamente sobre o direito de voto da comunidade marroquina que entretanto se mudou para o território, dividem os responsáveis. Em 2020, a Frente Polisário declarou o fim do cessar-fogo, tendo havido desde então confrontos esporádicos.
"A República Saarauí existe porque existe um território bem definido, porque existe um povo e porque a ONU reconhece a este povo o seu direito à autodeterminação", indicou o representante da Frente Polisário, alegando que a república é reconhecida por 84 países - só tem relações diplomáticas com 46, porque muitos Estados recuaram. "O reconhecimento não se pode apagar", defende contudo Mih. A república é membro da União Africana - onde durante anos Marrocos não esteve presente (entrou só em 2017).
"Ser membro da ONU é importante, mas não é essencial", admitiu Mih, lembrando o caso da Suíça - que só é membro pleno desde 2002. "A ONU é importante, porque sem regras, sem esse "guarda-chuva" que são as Nações Unidas, cada um faz o que quer, é a lei do mais forte", afirmou. "Nós temos muita confiança, ilusão talvez, mas pensamos que o papel da ONU é fundamental na solução dos conflitos que ainda existem", disse. A Frente Polisário tem uma representação em Nova Iorque, que está em contacto com a ONU.
Mih desvaloriza a tomada de posição do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, de reconhecer o Saara Ocidental como parte de Marrocos no final do mandato (Joe Biden não reverteu essa decisão), alegando que esta administração tem defendido que o conflito tem que ser solucionado na ONU. Em relação a Espanha, que deixou a neutralidade para apoiar Marrocos - que defende que o território seja uma região autónoma - fala numa decisão do primeiro-ministro Pedro Sánchez (não do governo, porque há divisões na coligação, nem do parlamento) "contrária aos interesses" de Espanha que é um "mau sinal".
Kosovo
A ex-província sérvia que cumpre critérios
"A adesão à ONU continua a ser um objetivo chave da política externa do Kosovo, sendo a sua aspiração legítima e justificada"
Ylber Kryeziu , embaixador do Kosovo em Portugal
A República do Kosovo, de maioria albanesa, era desde o final da II Guerra Mundial uma província autónoma da Sérvia dentro da República Federal Socialista da Jugoslávia. Um primeiro movimento de independência, em 1991, desencadeou uma guerra que levou à intervenção da NATO em 1999 contra a Sérvia e culminou na declaração unilateral de independência do Kosovo a 17 de fevereiro de 2008. O país é reconhecido por mais de uma centena de Estados, incluindo Portugal - mas não Espanha, que também tem os seus desafios independentistas. Contudo não está na ONU.
"A adesão à ONU continua a ser um objetivo chave da política externa do Kosovo, sendo a sua aspiração legítima e justificada", disse ao DN o embaixador em Portugal, Ylber Kryeziu, já que o país "cumpre claramente os critérios estabelecidos na Carta das Nações Unidas". Não só atua de forma independentes de outra autoridade soberana, como não viola qualquer lei ou resolução da ONU e está em vários organismos internacionais, incluindo o FMI ou o Banco Mundial.
China e especialmente a Rússia são os obstáculos. "Ao contrário da China, que se manteve neutra, a Rússia esteve diretamente envolvida no processo internacional para determinar o estatuto final do Kosovo" entre 2005 e 2007. "Parecia que os russos estavam a contribuir para uma aproximação entre as partes, mas no final do processo "ameaçaram" usar o veto", e o plano desenhado não foi para a frente. Face à situação atual na Ucrânia, disse o embaixador, é claro que "a estabilidade regional dos Balcãs Ocidentais nunca foi um objetivo da política externa russa".
Para Kryeziu, estar na ONU, além de dar o direito de voto, ajudaria a "fortalecer a paz e a estabilidade regional". O embaixador lembra que o "Kosovo continua a ser um defensor do diálogo para estabilizar de uma vez por todas não só as relações com a Sérvia, mas com toda a região", lembrando que os sérvios "não têm perspetivas de integração na União Europeia sem o reconhecimento oficial da independência do Kosovo". Sendo que também os kosovares querem aderir à UE.
Observadores
Há dois países que mesmo não sendo membros, têm o estatuto de observadores permanentes das Nações Unidas e por isso os seus líderes estão convidados a discursar na Assembleia Geral.
Vaticano
Desde 1964 que o mais pequeno país do mundo tem o estatuto de membro observador permanente, com o direito de assistir a todas as sessões da Assembleia Geral. Nunca procurou ser membro pleno. A sua missão é "comunicar os séculos de experiência da Igreja Católica à humanidade e colocar a sua experiência ao dispor das Nações Unidas para ajudar na sua busca de paz, justiça, dignidade humana e cooperação humanitária e assistência".
Palestina
Os palestinianos têm o estatuto de "estado observador" desde 2012, tendo antes sido "entidade observadora". A alteração surgiu depois de a Palestina apresentar (novamente) a candidatura a Estado-membro. Apesar de ser reconhecido como país por quase 140 estados, a adesão nunca foi votada no Conselho de Segurança, já que vários membros permanentes recusam permitir que se torne membro pleno antes da resolução do conflito com Israel.
susana.f.salvador@dn.pt
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