Donald Trump no tribunal criminal de Manhattan, em Nova Iorque, antes da sessão de 21 de maio.
Donald Trump no tribunal criminal de Manhattan, em Nova Iorque, antes da sessão de 21 de maio.MICHAEL M. SANTIAGO / POOL / AFP

O que Trump e o júri ouviram antes das alegações finais

Acusação apostou numa estratégia arriscada de levar Stormy Daniels a falar sobre a relação com Trump, enquanto a defesa tentou desacreditar o ex-advogado Michael Cohen. 
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Os argumentos finais do primeiro julgamento criminal de um antigo presidente dos Estados Unidos são produzidos amanhã, depois de a equipa de defesa de Donald Trump não o ter chamado a depor. O júri de 12 nova-iorquinos será chamado no dia 1 para deliberar, depois de terem passado as últimas cinco semanas a ouvir 19 testemunhas. Em causa estão as 34 acusações de falsificar registos contabilísticos para encobrir o pagamento, antes das eleições presidenciais de 2016, à atriz de filmes para adultos Stormy Daniels.

A falsificação de registos contabilísticos é um crime punível com uma pena de prisão até quatro anos. Para condenar Trump por este delito, os procuradores têm de demonstrar que foi cometido com intenção de cometer outro crime. Os procuradores alegam que Trump declarou erradamente os pagamentos feitos ao seu advogado Michael Cohen - que se gabava de ser o fixer (o facilitador) - nos registos da sua empresa como honorários legais, quando na verdade eram um reembolso dos 130 mil dólares que Cohen tratou de pagar a Daniels. A gravidade do ato não é em si mesmo a falsificação, mas de, com isso, ter a intenção de “minar a integridade de uma eleição presidencial”, o que configura violar a lei eleitoral em Nova Iorque, onde decorre o julgamento. 

Sem testemunhar em tribunal, Trump no entanto aproveitou os holofotes mediáticos para no final de cada sessão ter a última palavra do dia, ao dirigir-se aos jornalistas, criticar o julgamento e fazer campanha, ora destacando as sondagens favoráveis, ora para criticar as políticas de Joe Biden, com quem deverá reeditar a corrida à Casa Branca, ora ainda citando comentadores da constelação Fox News ou mais à direita sobre o julgamento. Esta tática é para “dar a si próprio a ilusão de controlo”, comenta o antigo procurador federal e agora advogado Mitchell Epner. “Ou não compreende quem são as vozes autorizadas no processo penal de Nova Iorque ou sabe que estas pessoas não são vozes autorizadas no processo penal de Nova Iorque, mas, mesmo assim, quer algo para dizer e, por isso, cita o que está disponível”, disse Epner ao The Washington Post

Também é de ter em conta que essas aparições diárias - sempre ao lado do advogado e com visitas diárias de republicanos - são uma forma de contrariar as perceções públicas sobre os seus atos. Em março, 38% dos inquiridos para uma sondagem YouGov/Yahoo News acreditavam que o provável candidato republicano cometeu um crime ao falsificar os registos contabilísticos. Essa percentagem passou para 47% em maio. Apesar de só 40% achar que o delito é suficientemente grave para acabar em julgamento, 51% aprova uma sentença de prisão a Trump, caso seja condenado. Outro dado curioso é que questionados em quem iriam votar, 45% dos sondados responderam Biden e percentagem igual Trump. No entanto, em caso de condenação do nova-iorquino, a percentagem do democrata subiria um ponto, e a de Trump desceria seis pontos percentuais - uma indicação de que uma condenação, independentemente da pena aplicada, pode ser um pesadelo eleitoral. 

David Pecker

David Pecker, à esquerda, numa fotografia de 2010. (JOE KOHEN / GETTY IMAGES / AFP)

Administrador da empresa editorial AMI e diretor do tabloide National Inquirer, mantinha uma longa relação mutuamente benéfica com Trump. Segundo contou, em agosto de 2015 comprometeu-se com Trump e o seu advogado Michael Cohen em identificar potenciais histórias negativas sobre o candidato presidencial, comprando os seus direitos para depois não as publicar (“catch and kill”). Foi o que aconteceu com Karen McDougal, uma ex-modelo da Playboy que alegou ter mantido um caso com Trump durante dez meses entre 2006 e 2007, em troca de 150 mil dólares. Ou com um porteiro da Trump Tower, Dino Sajudin, que recebeu 30 mil dólares pela história - ou antes, um rumor não confirmado, ao que investigações jornalísticas da Associated Press e da New Yorker concluíram - de que Trump teria uma filha de uma relação com uma governanta. 

Quando um advogado apareceu com a história de Stormy Daniels, Pecker já não estava para gastar mais dinheiro. “Não vou comprar esta história. Não me vou envolver com uma estrela porno e não sou um banco”, disse Pecker a Cohen, segundo testemunhou em tribunal. Ao que explicou, Cohen prometeu-lhe que seria reembolsado por ter pago a McDougal, mas os seus advogados avisaram-no entretanto de que o recebimento desse dinheiro poderia ser um crime (em 2018 viria a ser multado em 187 mil dólares pela Comissão Eleitoral Federal pela contribuição empresarial proibida). Foi então que Trump instruiu Cohen para pagar 130 mil dólares a Daniels pelo seu silêncio. 

Keith Davidson

Advogado de Los Angeles que negociou com Michael Cohen o silêncio de Stormy Daniels, acabou por revelar mais sobre o advogado que fazia o trabalho sujo a Trump. Disse que Cohen lhe telefonou, em total desânimo, após a vitória eleitoral de Trump, ao saber que as suas ambições de fazer parte da administração foram por água abaixo. “Pensei que ia suicidar-se.” Como muitos norte-americanos, lembrou a surpresa que foi a vitória do candidato republicano, mas com a diferença de ter sentido responsabilidade. “Houve um entendimento de que as nossas atividades podem ter ajudado de alguma forma a campanha presidencial de Donald Trump.” 

Hope Hicks

Hope Hicks, aqui a chegar a um comício de Trump na Florida, em 2020. (MANDEL NGAN / AFP)

Introduzida ao universo Trump via Ivanka, Hope Hicks rapidamente passou de diretora de comunicação da Trump Organization para porta-voz da campanha presidencial; na Casa Branca foi diretora de comunicações estratégicas, depois diretora de comunicação, saiu a certa altura para a Fox e regressou para os meses finais do mandato como conselheira do presidente. A última pergunta do procurador Matthew Colangelo teve uma resposta reveladora: questionada sobre a altura em que a notícia sobre o pagamento a Stormy Daniels foi publicada, em 2018, já com Trump no poder, respondeu: “Ele [Trump] queria saber (...) a minha opinião sobre esta história versus um tipo diferente de história antes da campanha, se o Michael não tivesse feito o pagamento. E penso que a opinião de Trump é que era melhor estar a lidar com isso agora, e que teria sido mau se essa história tivesse saído antes das eleições.” 

Stormy Daniels

Stephanie Gregory, conhecida como Stormy Daniels, em 2018. EDUARDO MUNOZ ALVAREZ / AFP

A protagonista de filmes para adultos Stephanie Gregory, conhecida como Stormy Daniels, de 45 anos, foi a testemunha que mais agitou o tribunal ao detalhar o encontro sexual com Trump - uma oferta que poderá vir a ser preciosa para a defesa de Trump. Como este negou ter mantido qualquer relação com Daniels, os procuradores terão querido dar credibilidade à estrela pornográfica, tendo para tal entrado em perguntas que levaram por um caminho surpreendente. 

Mais do que ter dito que o ato sexual foi consumado sem preservativo e na posição de missionário, Stormy Daniels disse que não queria que tal tivesse acontecido, mas não conseguiu resistir. O que levou o advogado de Trump, Todd Blanche,a pedir a anulação do julgamento, porque a insinuação de que o sexo não foi consensual é “extraordinariamente prejudicial”, além de não estar relacionado com as acusações em causa. O juiz recusou, mas em caso de condenação o recurso poderá centrar-se neste depoimento, tendo em conta a recente decisão de anular uma condenação do produtor cinematográfico Harvey Weinstein. É que durante o julgamento em Nova Iorque foram admitidos testemunhos de alegações que não faziam parte do caso.

Michael Cohen à saída do tribunal. (TIMOTHY A. CLARY / AFP)

Michael Cohen

Esta era a testemunha central do processo, o que o levou três vezes à sala de tribunal. O homem de mão de Trump entre 2006 e 2017 cumpriu pena de prisão por mentir ao Congresso e por vários outros crimes, um deles relacionado com o dinheiro com que pagou o silêncio de Stormy Daniels, considerado uma “contribuição excessiva” para a campanha eleitoral.

Cohen manteve-se calmo e disse o que os procuradores queriam, ao detalhar como foi decidido avançar com o seu dinheiro e, mais tarde, ao combinar com o chefe das finanças da empresa de Trump, Allen Weisselber - que entretanto cumpriu quatro meses de prisão - como iria ser restituído: um total de 420 mil dólares em prestações mensais de 35 mil e registar os pagamentos como honorários legais. Como era o único a afirmar ter comunicado diretamente com Trump para fazer os pagamentos, a defesa tentou desacreditá-lo. E num momento conseguiu: depois de ter num dia afirmado ter discutido com o seu chefe ao telefone sobre o pagamento a Daniels, no dia seguinte o advogado Todd Blanche mostrou mensagens de texto trocados com o guarda-costa de Trump sobre outro assunto, o que levou Cohen a retractar-se, dizendo que a sua memória não permitia ter a certeza e que provavelmente teria falado sobre os dois assuntos, o que levou Blanche concluir que o ex-advogado estava a mentir.

Juan Merchan

O juiz Juan Merchan, os jurados e os procuradores foram um alvo de Trump e dos seus aliados, tendo respondido com as armas ao dispor. Aplicou ao arguido ordens de silêncio no que respeita às pessoas referidas, e numa segunda ordem também aos seus familiares, depois de Trump ter atacado a filha de Merchan. Por duas vezes os advogados do empresário pediram para que o juiz se afastasse do caso, tendo alegado que é parcial porque a sua filha dirige uma empresa de consultoria política que trabalhou para democratas, incluindo Joe Biden. Merchan declinou os pedidos, tendo afirmado ter “capacidade de ser justo e imparcial”.

Perante as violações das ordens, multou o arguido em 10 mil dólares, mil por cada violação, lamentou que esse seja o máximo previsto por lei, e deixou no ar a hipótese de prender Trump por desobediência. Na última sessão, o ex-presidente voltou a pisar a linha e a ignorar as ordens de Merchan que o impedem de se referir (ou melhor, atacar) em público os envolvidos no caso. “O juiz odeia Donald Trump, vejam bem. Vejam de onde é que ele vem”disse sobre Merchan, que é natural da Colômbia. 

Além de estas considerações serem consideradas xenófobas, podem reverberar noutro caso em que, até agora, a juíza tem mostrado pouco entusiasmo pela acusação: Aileen Cannon, também natural da Colômbia, foi nomeada juíza federal por Trump e tem em suas mãos o processo relativo aos objetos e documentos - centenas deles classificados e alguns dos quais top secret - que o ex-presidente levou da Casa Branca para a sua casa na Florida no final do mandato. Cannon tem repetidamente acedido às pretensões da defesa, tendo há dias anulado a data do início do julgamento. 

Direitos políticos à prova de condenação

O que pode acontecer a Trump em caso de ser condenado pelo júri? Não perde o direito de concorrer às eleições nem de exercer o cargo de presidente - nem sequer se tiver de cumprir pena de prisão efetiva. Em teoria, o empresário enfrenta uma pena máxima de 136 anos, porém juristas e académicos duvidam de que, em caso de sentença condenatória, Trump se veja privado de liberdade.

Em sua defesa, argumentam a idade (77 anos), o facto de ser ex-presidente, bem como de não ter registo criminal - esquecendo-se, porém, que em 2017 Trump chegou a acordo com mais de 6 mil pessoas que foram defraudadas pela Trump University, pagando 25 milhões de dólares; que em 2023 e em 2024 foi condenado em dois casos civis relacionados com a colunista E. Jean Carroll (abusos sexuais e difamação, num total de 88,3 milhões de dólares de indemnizações); e que em fevereiro deste ano foi condenado noutro caso civil a pagar 454 milhões de dólares por retirar benefícios de inflacionar a sua fortuna imobiliária em 3,6 mil milhões. Em todos os casos, Trump recorreu.

cesar.avo@dn.pt

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