"O grande duelo EUA vs China está para durar e não muda de Trump para Biden"

Autor de 4 livros sobre presidências americanas, o último, <em>Joe Biden - o Homem e as suas Circunstâncias</em>, Germano Almeida fala ao DN do desafio do presidente de unir a América, do legado Trump e do futuro do Partido Democrata que vê passar por Kamala Harris ou Pete Buttigieg.
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Acaba de lançar o livro Joe Biden - o Homem e as suas Circunstâncias, se tivesse de escolher qual o momento mais alto e o momento mais baixo destes pouco mais de cem dias de mandato quais seriam?
O momento mais alto: a aprovação no Senado do American Rescue Plan. O momento mais baixo: ter chamado "assassino" ao presidente da Rússia. Esta presidência define-se por três grandes ideias: 1) contenção da China e da Rússia, comprometimento na travagem das autocracias; 2) dignificação do trabalho e do mérito, financiando a redução da pobreza e o apoio à classe média com o aumento de impostos às grandes empresas e às grandes fortunas; 3) Biden quer conquistar o apoio das famílias americanas não com grandes discursos, mas com políticas efetivas que promovam a justiça social e a equidade racial. Tornar as classes médias felizes é, para Joe Biden, a fórmula para evitar que estas voltem a cair na tentação dos populismos para exorcizar frustrações. Quando as instituições fazem bem o seu trabalho, a probabilidade do povo se revoltar contra elas é muito menor.

A vacinação contra a covid parece estar no bom caminho nos EUA. Podemos dizer que a organização é de Biden, mas a compra das vacinas vem de trás, da Administração Trump?
Se algum mérito Trump teve durante a pandemia - entre inúmeros pecados e erros gravosos no adiar de decisões, no negacionismo da gravidade e nas declarações irresponsáveis sobre "injetar desinfetante" - foi o de acelerar o processo de autorização e compra de vacina (operação Warp Speed). Mas Joe Biden acrescentou organização, capacidade logística e foco num esforço equiparado a um período de guerra. E também pelo mérito de ter recolocado a ciência no centro da decisão política da Administração americana. O êxito no processo de vacinação tem contribuído, nos últimos meses, para alguma quebra no número de americanos que desconfiam das vacinas. O problema continua a estar lá - tem muito a ver com o ecossistema comunicacional de desinformação, que redundou no trumpismo, agora é herdeiro dele e que ainda resiste em certos nichos -, mas tem vindo a perder peso. No verão de 2020, cerca de um terço dos americanos dizia que não queria levar uma vacina. Pelo final de abril de 2021, eram apenas um em cada cinco que a recusavam. No plano oposto, os americanos que pretendiam ser vacinados eram menos de 40% pelo final do verão de 2020. No final de abril de 2021 essa percentagem chegava aos 60%. A desinformação continua a ser um risco - mas os frutos de uma realidade bem-sucedida continuam a prevalecer.

O próximo grande desafio é recuperar a economia e minimizar os efeitos da pandemia? O plano de estímulo de 1,9 biliões de dólares que Biden aprovou é suficiente?
O sucesso na vacinação está a acelerar a retoma na maior parte dos estados. E está a marcar a diferença entre EUA e outros países do G7 e até da China, que em 2021 deverá crescer a percentagem menor que os Estados Unidos pela primeira vez em vários anos. Com imunidade de grupo nos EUA por julho, a solidez da recuperação económica pode ajudar na concretização dos três grandes planos Biden. O presidente sabe que a plataforma da esquerda progressista nunca prevaleceria na América: a iniciativa individual e a possibilidade de enriquecer pelo mérito é o paradigma dominante naquele país do capitalismo. Sucede que a década de crescimento até à pandemia pôs a nu ainda maiores discrepâncias e injustiças: enquanto o desemprego baixou para mínimos históricos de 3,5% em fevereiro de 2020, as desigualdades no rendimento aumentaram 25% na América. O crescimento económico não foi justo - e agravou ainda mais as diferenças. No livro cito uma frase do pai de Biden que ajuda a definir como o atual presidente dos EUA tem usado o seu poder para interpretar a sua visão: "O meu pai costumava dizer: "Joey, eu não espero que o Governo resolva os meus problemas. Mas espero que entenda os meus problemas"."

Biden foi eleito com a promessa de unir a América, mas as divisões parecem difíceis de sanar. Bastará um discurso mais moderado para acalmar as vozes extremistas?
Sanar todas as feridas é missão impossível numa América fraturada. Mas é também uma tarefa essencial. Joe Biden sabe bem disso e talvez seja a única pessoa no sistema político americano em condições de obter resultados positivos nesta área. O 46.º presidente dos EUA herdou tripla crise: sanitária (maior pandemia num século), económica (pela paragem pandémica); democrática (tomou posse duas semanas depois do maior ataque feito por norte-americanos às instituições democráticas, a invasão do Capitólio de 6 janeiro). Talvez só Roosevelt, em 1933, tenha começado a Presidência dos EUA com herança de dificuldade semelhante. Os quase 50 anos de experiência política de Biden ao mais alto nível estão bem visíveis nas boas decisões que soube tomar nos primeiros 100 dias na Casa Branca. Trump sabia mobilizar mas revelou-se profundamente incompetente a governar. Biden é pouco inspirador em campanha, mas está a revelar-se mais efetivo no exercício da Presidência. Tem falado para a "América esquecida" - está a cumprir sem sequer ter prometido. Joe aprendeu a lição e tem falado não só para a América pujante e sofisticada das costas e dos estados mais ricos, mas também para a América "esquecida", que não beneficia da revolução tecnológica, perdeu os empregos com a queda das indústrias pesadas que não voltaram pós-crise 2008. No American Jobs Plan, Biden prevê que "90% dos empregos criados sejam para americanos sem cursos superiores". E quer dar Internet rápida a 35% da América rural que ainda não a tem. Isso mostra que Biden quer governar também para a América que nos anos Obama e sobretudo em 2016 com Hillary [Clinton] não se reviu na mensagem democrata e caiu na conversa populista de Trump. Numa era de discursos extremados, a vitória de Biden foi oportunidade que os americanos pretenderam dar à moderação e ao bom senso. E foi, essa sim, a verdadeira proposta revolucionária nestes tempos de respostas supostamente fáceis para problemas complicados.

Apesar da maioria nas duas câmaras do Congresso, Biden está longe dos dois terços exigidos para passar a maior parte das leis no Senado. Isto mina a sua capacidade de mudança? Está condenado a governar por decreto?
Joe Biden optou por ser, no arranque, um presidente sem tempo a perder: nos primeiros 100 dias apresentou três dos quatro maiores planos federais da História; assinou mais ordens executivas do que Trump em meio ano e Obama num ano. É certo que não vai ser possível manter este vigor legislativo, mas também é verdade que a próxima fase passa por negociar e já não tanto por legislar. A dimensão dos três planos já apresentados é tão gigantesca que a partir de agora a chave é concretizá-los. Também não é crível que mantenha este ritmo de decretos presidenciais - o tempo de negociar com o Congresso está a chegar. O "filibuster" (minoria de bloqueio) permite que os republicanos bloqueiem as principais propostas com apenas 40 senadores, o que exige 60 votos para que algo seja aprovado, depois de Biden já ter esgotado quase todos os "créditos" que os procedimentos lhe conferem de aprovar leis pela via da "reconciliação" com maioria simples de 51. Mas isso só pode ser feito cinco vezes por sessão legislativa, uma em cada grande área de ação governativa. Dá para esperar, mas limita o poder governativo do presidente e assegura que o Congresso se mantenha relevante. Até agora, Biden tem sabido contornar isso - mas em questões como a do controlo no acesso às armas, que o presidente parece mesmo disposto a tentar resolver, só com supermaioria de 60 senadores as propostas de lei já aprovadas na Câmara dos Representantes poderão ser confirmadas no Senado.

A mudança de estilo em relação a Trump é inegável, mas há coisas que parecem não mudar. Em termos de política internacional, a China é hoje o grande inimigo dos EUA esteja quem estiver na Casa Branca?
O Grande Duelo EUA vs China está para durar - e não muda no essencial, mesmo com tão grande viragem política na Casa Branca de Trump para Biden. Será a única grande continuidade entre as duas administrações: ambas identificam a China como grande ameaça a travar. Mas com diferenças: em Anchorage, [o secretário de Estado, Antony] Blinken foi muito duro com a China, apontando vários temas de preocupação, como os direitos humanos, a supressão de liberdades em Hong Kong, a perseguição aos uigures em Xinjiang, a ocupação do Tibete, a pressão sobre Taiwan e as reivindicações territoriais chinesas no mar do Sul da China. E, não por acaso, Yoshihide Suga, primeiro-ministro do Japão, foi o primeiro líder estrangeiro a ser recebido na Casa Branca por Biden. A contenção da China é uma prioridade comum a Washington e Tóquio.

A Europa e a NATO esperavam uns EUA mais próximos com Biden. Vê aqui alguma mudança de fundo ou sobretudo retórica e de estilo?
Vejo clara mudança de fundo: um dos aspetos mais graves dos anos Trump foi o modo como o ex-presidente dos EUA ameaçou a NATO e destratou aliados permanentes. A Aliança Atlântica nunca esteve verdadeiramente em risco, mas passou por um momento deprimente durante a presidência Trump. Biden recolocou a América no compromisso transatlântico: nomeou um atlantista convicto para o Departamento de Estado (Blinken) e fez tudo para evitar que a UE assinasse acordo de investimentos com a China dias antes de tomar posse (sem sucesso) e que o Reino Unido não saísse da UE sem acordo que evitasse um "hard Brexit" (com sucesso). As Cimeiras EUA-União Europeia e da NATO, a decorrer no próximo mês de junho em Bruxelas, deverão solidificar este "regresso da América" ao palco europeu.

Apesar da tensão com Putin e da troca de palavras, a cimeira entre os dois parece um cenário possível. Pode haver aqui uma aproximação entre EUA e Rússia?
Não tanto uma aproximação, mas uma clarificação de trincheiras. Biden não esconde as preocupações quanto às movimentações da Rússia - e na conversa telefónica que teve com Putin reafirmou o compromisso dos EUA em relação à integridade territorial da Ucrânia e expressou preocupação devido a um aumento da presença militar russa na Crimeia e nas fronteiras leste da Ucrânia. Os ciberataques e a interferência russa nas eleições americanas são outros pontos de discórdia com Moscovo. Uma cimeira Biden/Putin pode vir a ser um "turning point" no clima de tensão máxima entre os dois presidentes, depois da tal expressão "sim, diria que ele é um assassino" com que Biden se referiu a Putin. Mas também poderá haver alguns pontos de convergência entre Biden e Putin: o interesse comum em reanimar o acordo nuclear do Irão, o desarmamento nuclear, as alterações climáticas e a luta contra o terrorismo.

Passados uns primeiros cem dias discretos, podemos esperar uma vice-presidente Kamala Harris mais presente e ativa a partir de agora?

Possivelmente sim, em duas frentes: como elemento de desempate no Senado, que pelo menos até 2022 se manterá 50-50; como responsável política pela gestão da crise migratória na fronteira sul dos EUA com o México, tema complexo e que pode vir a revelar-se ainda mais problemático para a Administração Biden. O cargo de vice-presidente dos EUA foi desenhado para que o seu poder seja silencioso: o poder de apenas atuar se o presidente falhar.

Biden chegou a falar em fazer só um mandato, agora parece disposto a uma recandidatura. Em que pé é que isso deixa as diferentes fações existentes no Partido Democrata?
Joe já garantiu que quer tentar a reeleição em 2024. Sabemos que pela idade tão avançada (terá 82 anos nessa altura) é um risco e, sobretudo, uma incógnita imaginar que possa tentar partir para um segundo mandato que só vai terminar quando tiver 86 anos. A verdade é que, até agora, Biden mostra todas as capacidades físicas e intelectuais para exercer a Presidência. Ninguém de boa fé poderá dizer que sabe que cenário se porá em 2024 quanto a isso. Kamala é a hipótese democrata mais forte caso Biden não esteja capaz em 2024. Mas não excluo que o nomeado seja Pete Buttigieg, atual secretário dos Transportes, que pode vir a ser a maior estrela política deste mandato, caso o Plano de Infraestruturas venha a revelar-se um sucesso. Não por acaso, no livro dedico atenção quase equivalente a Kamala e a Buttigieg. O futuro do Partido Democrata passa pelos dois: ambos são competentes e qualificados; Kamala tem história poderosa de afirmação das mulheres e das minorias raciais, Pete é o político mais brilhante e bem preparado da sua geração, mas não é certo que a América esteja preparada, já daqui a quatro anos, para eleger um homossexual à Presidência.

E os republicanos? A sombra de Trump paira já sobre as midterms de 2022 e ainda mais sobre 2024?
Donald Trump está no terreno para influenciar 2022 e concorrer em 2024, nunca deixou de estar. É o favorito à nomeação para 2024 e isso é um problema para o Partido Republicano porque foi um candidato perdedor em 2020 e, posteriormente, agravou os danos dessa derrota com um negacionismo infantil e irresponsável, que arrastou milhões de apoiantes para uma esfera antidemocrática. Se a Presidência Biden continuar a ser um sucesso, não parece muito inteligente que os republicanos insistam numa via populista, identitária, anti-imigração: pode ser muito mobilizadora para a base fiel, mas tende a ser limitativa e minoritária no todo da sociedade. Não chega para voltar a ganhar uma eleição presidencial.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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