Pode fazer uma atualização dos acontecimentos de dia 1 [quando o Palácio do Governo em Bissau esteve sob ataque durante cinco hora]? O que pode dizer? Em relação ao processo de investigação o que posso dizer é que está em curso e eu não vou avançar muito para depois não dizerem que há três ou quatro versões do governo porque o presidente da república (PR) falou, o porta-voz falou, embora todos dissessem que foi um golpe de Estado. As pessoas de má-fé fogem do cerne da questão, que é o golpe de Estado, e depois vão discutir que um disse que havia rebeldes, o outro disse que havia paramilitares, coisas que, enfim, não fazem nenhum sentido e não é o cerne da questão. O cerne da questão é que houve um golpe de Estado, houve uma tentativa de decapitação do Estado da Guiné-Bissau, o assassínio do presidente da república e do primeiro-ministro e do executivo que estava reunido, e que ao todo morreram oito cidadãos guineenses. Isso parece que foi secundarizado por interesses políticos de algum setor da nossa política, nomeadamente o PAIGC, e dando mais importância ao assalto à Rádio Capital, que tem a sua importância, mas onde não morreram pessoas, e que houve uma tentativa de alteração da ordem constitucional, que está a ser secundarizada. O ponto da situação é que temos o princípio de separação de poderes na nossa constituição, estamos a observar esse princípio, e mesmo observado esse princípio somos criticados de que há interferência e que deve haver um inquérito internacional independente. Como se isto fosse prática no mundo. Enfim, isto parece um filme a preto e branco. Portanto, a comissão de inquérito vai fazer o seu trabalho. Vamos esperar por aquilo que a comissão ou a Procuradoria-Geral da República vier a apurar..Em relação ao que se fala de os mandantes estarem ligados ao narcotráfico. O que pode comentar? Acho que não há nenhuma dúvida. Está preso o comandante Bubo Na Tchuto, é público, foi dito pelo PR. Agora faço eu a pergunta: esse indivíduo, do seu conhecimento, está ou não ligado ao narcotráfico?.Foi condenado nos Estados Unidos por isso. Então, há alguma dúvida em relação a isso? As pessoas associadas a ele foram ou não foram condenadas e não estiveram presas nos Estados Unidos? Há alguma dúvida em relação a isso? Isto está claro como água. Portanto, essas pessoas estão presas, foi tornado público, estão ligadas ao narcotráfico, não temos nenhuma dúvida e há provas inequívocas que essas pessoas estão ligadas a essa tentativa de golpe de Estado falhado..Tem havido vários golpes de Estado nos países da região. Acha que há alguma ligação internacional ou é um acaso? Foi a pandemia que gerou acrescidos problemas socioeconómicos? Em relação ao nosso caso, temos um historial de golpes de Estado que não é nada famoso. Mas, se reparar, somos daqueles países que fizeram uma luta armada de libertação, dos três dos PALOP, que teve até 14 de novembro de 1980 uma ditadura feroz, com fuzilamentos públicos instituídos legalmente pelo PAIGC, que era o partido único, que dominava, que tinha as Forças Armadas (FA) como braço armado do partido, tinha os sindicatos, os tribunais. E em 80 faz a abertura económica com o golpe de Estado do Nino Vieira. Entretanto, passam 40 anos e não há nenhuma reforma nas FA. Os antigos combatentes são votados ao desprezo. Isso agravou muitas clivagens vindas já da luta. Amílcar Cabral, o líder principal dessa revolução, é assassinado por guineenses, por guerrilheiros. Acontece a independência, um dos presidentes, que é o Nino Vieira, vem a ser morto barbaramente na sua residência. Por quem? Por guineenses. Militares. Até hoje o processo não foi julgado e as pessoas não foram levadas à justiça. Portanto, são todas estas situações que vão criando um barril de pólvora e que endemicamente vão acontecendo os golpes de Estado. Não se resolvem os problemas de raiz, os problemas estão latentes e acabam por surgir numa conjuntura menos favorável. É preciso uma reforma de raiz, instituir-se umas FA republicanas de raiz. Isto é o que está por trás do golpe de Estado na Guiné. Aqui na sub-região, penso que a conjuntura internacional, a covid, o apertar de cinto, levou a estas sucessivas situações de golpe de Estado..Falando ainda dos militares. Faz sentido associar aí uma questão étnica? Uma outra camada na questão, além da política? Este figurino étnico que nós temos nas FA já existia na luta de libertação. O mesmo figurino étnico conviveu e conseguiu trazer a independência, a maior parte com a base militar em balanta e que depois chegam a chefias militares a seguir à independência. Queiramos ou não, há em toda a África um processo de tribalização da atividade política. Num país que tem 28 ou 29 tribos, é mais fácil se sou fula, falo fula, ir para a região onde a minha identidade é linguística, cultural, religiosa... E eu que sou católico, falo português e outras línguas, quem tem vantagens comparativas é quem se identifica mais com essa população local. Chamar isso de tribalismo, de tribalização da atividade política, para mim, punha aspas. Se calhar é adequar o potencial dos recursos políticos que cada partido tem com as condições que nós temos no terreno. Mas se reparar na cúpula dos partidos não se reflete, não há um partido que tenha só dirigentes balanta ou só dirigentes fula, os partidos são heterogéneos, todos eles. E não acredito que esta atividade tenha sucesso na Guiné porque nós somos pequeninos, 36 mil quilómetros quadrados. Há uma mistura e um convívio tão grande das tribos que elas tocam-se entre si. Somos quase todos famílias. Em regiões bastante grandes, onde há um isolamento das tribos, pelo tamanho do país, aí se calhar é mais fácil acontecer a tribalização e esse tipo de política que tenha mais sucesso. Na Guiné não digo que não haja pessoas com essas pretensões, mas morre logo à partida, não terá nenhum curso..Falou na necessidade da reforma das FA. Há algum programa em curso? E quanto à justiça? São dois setores chaves. Nas FA há uma reforma de raiz e profunda. Temos o serviço militar obrigatório mas não há recrutamento de jovens desde 1993. Quem são as pessoas que estão nas FA? É isso que têm que entender. São as pessoas formadas pelo PAIGC e que leram a cartilha comunista do PAIGC e que era um braço armado do partido. São essas mesmas pessoas que estão nas FA. Portanto, não são pessoas despolitizadas, não são pessoas que pensam que devem servir a todos. Por isso é que se está a fazer o Centro de Formação de Cumeré onde estão a ser criadas condições para começarmos a fazer recrutamento e começar a haver serviço militar obrigatório. Isso combate, no fundo, o desvio social, a questão da droga, da prostituição. Traz uma sociedade mais saudável. Em relação à justiça, nós vivemos um período de partido único. Um período em que as pessoas eram fuziladas num campo de futebol. Os alunos das escolas primárias e das secundárias eram obrigados a assistir aos fuzilamentos. É uma sociedade muito traumatizada, há muita gente traumatizada, que viu os seus pais a serem fuzilados. A nossa justiça era uma justiça politizada. Toda a estrutura, todos os tribunais eram do partido único. Eram os seus agentes quem faziam a justiça. Hoje há a entrada de muitos quadros, muitos provenientes das universidades portuguesas e de outras espalhadas pelo mundo, e têm trazido luz a esse setor. São as reformas de longo prazo que estão em curso. Tivemos várias mudanças, com a eleição do Supremo. Penso que estamos no caminho certo, temos consciência de que é preciso trazer mais justiça a todos..O que é que o governo pode dizer sobre o acordo assinado entre os presidentes da Guiné-Bissau e do Senegal sobre a exploração de petróleo? Essa questão tem a ver com a zona conjunta. A zona conjunta situa-se dentro da fronteira norte da Guiné-Bissau. No tempo colonial fez-se uma conferência para que as fronteiras passassem a ser todas contíguas, podendo as potências coloniais controlar melhor os seus territórios. Um dos grandes problemas sociais de África é este, dividiu-se. Dividiram-se tribos, hábitos e costumes. Os que falavam português passaram a falar francês, outros inglês, enfim, trouxe uma série de problemas. Na altura, não havendo a plataforma continental, ou havendo de uma forma muito diminuta, não se contemplou no acordo a parte coberta por água, sem ser a fronteira terrestre, a superfície visível. Logo a seguir à independência, quando se fez os primeiros estudos prospetivos nessa zona e se descobriu a existência de hidrocarbonetos reclamámos: isso é nosso, está dentro da nossa fronteira. Fomos a um tribunal de arbitragem internacional onde perdemos o caso. O Senegal nessa altura ficou com 85% e nós com 15. E deu-nos os 15% tendo em conta, era o general Nino Vieira, as boas relações de vizinhança que queria manter connosco até para poderem fazer a exploração do petróleo sem conflito. É um dossier conhecido desde a independência até agora e é um dossier muito polémico, muito conflituoso. Kumba Yalá retoma-o e consegue mais 5%. O presidente Sissoco que retoma o mesmo dossier e consegue o que temos neste momento, 30%. Isto tem que ser ratificado pela Assembleia, mas penso que é melhor termos 30% do que 15% ou não termos nada. Tenho colegas que têm uma posição contrária, uns dizem que deve ser 100% da Guiné, ou devia ser o contrário, 70 da Guiné, 30 do Senegal..Porque era uma região claramente da Guiné? Uma parte norte da Guiné era de franceses e a parte sul, Casamansa, era portuguesa. Havia descontinuidade nas fronteiras. Então, os portugueses e os franceses trocaram a parte norte da Guiné, que era senegalesa-francesa, passou para a Guiné, e a parte sul, Casamansa, que ainda hoje fala o crioulo, e falavam português, passou para o Senegal. Mas na altura o conceito era só terrestre. A plataforma não estava incluída. Quando fomos ao tribunal perdemos. Os senegaleses também levaram especialistas franceses e conseguiam provar que aquilo que foi negociado foi só esta parte. É um problema que não é fácil de dizer, se está na nossa área. É uma questão internacional, de convenções internacionais. As convenções têm que ser cumpridas e respeitadas. Eles fazem usufruto, por exemplo, de tudo o que é potencial piscícola desta zona, emitem licença como nós, porque é uma zona conjunta de exploração..Enquanto ministro do Turismo, tem alguma meta dessa atividade no PIB? O turismo é a maior indústria do mundo. A Guiné-Bissau tem 88 ilhas; uma zona no sul onde se vê chimpanzés, elefantes, uma série de fauna, uma incrível diversidade de espécies quase em extinção; rios; o Boé, uma zona montanhosa a norte com grutas nunca exploradas. Não fazia sentido que, perante um potencial que eu diria indescritível, não apostasse no turismo. Infelizmente não tem acontecido porque, após 500 anos de colonização, não tivemos a sorte de herdar um país infraestruturado. Só para dar um exemplo, herdámos um país em que a presença portuguesa nos 500 anos construiu-se com 200 e tal quilómetros de estrada alcatroada. Nos nossos 40 e tal anos de independência fez-se cerca de mais 700. Portanto, é um país que carece de infraestruturas. Totalmente. E para fazer turismo são precisas infraestruturas. Primeiro infraestruturar o país, faz parte do nosso programa fazermos isso, o aeroporto nas ilhas, receber os voos internacionais, termos uma rede de ligação continente-ilha por transporte marítimo com o mínimo de condições e qualidade e com preços competitivos. Termos rampas nas ilhas para descarregar os camiões para a construção. Termos um hospital. Tudo o que é do nosso século, portanto, com oferta para os futuros visitantes. Passando essa fase, naturalmente que a aposta será muito mais séria. Hoje, em Cabo Verde, o turismo contribui com 25% de receitas para o PIB. A Guiné-Bissau, tendo o potencial que tem, pensamos que poderá contribuir com muito mais. Mas para isso é preciso todo este trabalho de infraestruturação, convencermos as marcas para virem investir. Vindo uma marca, como aconteceu em Cabo Verde, depois foram todas as outras a seguir..Não tem receio de poder matar a galinha dos ovos de ouro ao construir um aeroporto e outras infraestruturas em Bijagós? Vamos optar por não ter um turismo de massas como Cabo Verde fez. Vamos optar pelo ecoturismo, um turismo sustentado. Temos os únicos hipopótamos no mundo que vivem na água salgada e na água doce, imagine nós fazermos turismo de massas. Não faria sentido. Noutras partes do país podemos fazer turismo de massas, como Varela, ou outras praias..Quando diz turismo de massas noutras regiões... Controlado. Turismo de massas controlado. Será um turismo em que teremos seis, sete, oito unidades hoteleiras e que seja também sustentável. Por exemplo, em Varela temos cerca de 20 e tal quilómetros de costa, praias magníficas. Temos, por exemplo, um projeto com seis polos turísticos..O projeto está aprovado? Temos vários projetos, várias propostas, o grande problema é a sua materialização. São projetos enormes. Por exemplo, não temos a estrada São Domingos-Varela, que são 66 quilómetros alcatroada. A primeira coisa que temos de fazer é alcatroar essa estrada para dar acesso à zona turística de Varela através de uma via que tenha condições para as pessoas investirem. Temos os árabes da Emirates que nos propuseram esse projeto. Aliás, com a construção inclusive de um aeroporto que funcionaria como uma base para os aviões da Emirates aqui na África ocidental..E em relação às outras áreas naturais? Temos um grande potencial. Temos cerca de 26% do território em zona protegida. Temos o parque nacional de Cantanhez, com uma fauna muito rica com chimpanzés, e uma ONG tem um hotelzinho para fazer turismo de observação. O parque de Cufada e o Ilhéu dos Pássaros são zonas de nidificação de aves, que recebe população de aves do norte da Europa..cesar.avo@dn.pt.O DN viajou a convite do governo da Guiné-Bissau.