O dia em que uma republicana tomou as rédeas da monárquica Irlanda do Norte
O ultimato do governo britânico resultou. Na semana passada, foi dado um prazo até dia 8 para os norte-irlandeses se entenderem e restabelecerem o governo autónomo e reabrirem o parlamento, ou enfrentariam eleições. Em causa o boicote do segundo partido mais votado em maio de 2022, os unionistas do DUP, que não aceitava as regras comerciais entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte na sequência do Brexit. Mas um acordo negociado entre o executivo de Rishi Sunak e o DUP desbloqueou, na terça-feira, um impasse de quase dois anos, e permitiu que os republicanos do Sinn Féin chegassem ao poder pela primeira vez desde a partição da Irlanda em dois, através da sua vice-presidente Michelle O’Neill.
Ao ser designada primeira-ministra, O’Neill, de 47 anos, considerou estar perante um “dia histórico que representa um novo amanhecer”. Prosseguiu: “A geração dos meus pais e dos meus avós não podia imaginar um dia assim.” O discurso não foi triunfalista nem de anúncio de uma revolução em curso por uma só Irlanda republicana. Pelo contrário, fez questão de sublinhar que irá trabalhar de forma inclusiva e “servir todos por igual” e que irá trabalhar em conjunto com as outras forças políticas. “Para todos os britânicos e unionistas, a vossa identidade nacional, cultura e tradições são importantes para mim”, garantiu.
O acordo de Sexta-feira Santa prevê que o governo autónomo seja constituído por membros dos vários partidos eleitos para a assembleia. Tendo em conta os resultados das eleições, o Sinn Féin tem três ministros, o DUP dois, o UUP (outro partido unionista) um, e a Aliança (centrista e não sectário) dois. A partilha de poder existe também na chefia do executivo - e no papel tem tanto poder quanto a número um: é vice de O’Neill a unionista Emma Little-Pengelly, de 44 anos.
“Adoro a Irlanda do Norte. Estou profundamente orgulhosa de ser deste lugar a que chamamos casa, apesar da nossa história muitas vezes conturbada e das divisões do passado, sei que temos um potencial incrível”, afirmou Little-Pengelly depois de dar os parabéns a O’Neill e de se afirmar “honrada” pelo cargo de vice-chefe do governo. A unionista fez o contraponto ao “novo amanhecer” saudado por O’Neill, ao invocar as suas memórias de quando tinha 11 anos e se deparou com a destruição causada por uma bomba do IRA.
“Na minha memória ficaram gravados o som assombroso das sirenes de alarme e dos nossos serviços de emergência, o tapete de vidro e detritos, o choque, o choro e o pânico que abalaram e destruíram o sítio a que chamava casa.” Little-Pengelly disse ainda que o “horror” vivido na época nunca poderá ser esquecido, mas deixou também uma nota de esperança: “Embora sejamos moldados pelo passado, não somos definidos por ele.”
A nova etapa da vida política da Irlanda do Norte levou a que os republicanos voltassem a falar do sonho por cumprir de reunificar a Irlanda. A presidente do Sinn Féin tem apresentado o referendo previsto no acordo de Sexta-feira Santa como o instrumento legal para materializar esse objetivo no prazo de uma década. “De facto, em termos históricos, está à mão de semear”, disse Mary Lou McDonald, líder do partido na República da Irlanda.
Quando as instituições da Irlanda do Norte foram criadas em 1921, a maioria da população era protestante. Um século volvido, os católicos já são em maior número, no entanto as sondagens sobre a reunificação da Irlanda não atribuem a vitória ao ‘sim’ no norte da ilha. Caberá sempre ao governo britânico a discricionariedade de convocar o referendo, pelo que não é de crer que esteja no horizonte. Mais: questionado na Câmara dos Comuns sobre as afirmações dos nacionalistas irlandeses, o ministro para a Irlanda do Norte Chris Heaton-Harris arrumou a questão: “Posso dizer sinceramente que me sinto confortável com o facto de, durante a minha vida, a Irlanda do Norte vir a ser uma parte forte e maravilhosamente próspera do Reino Unido.”
Heaton-Harris assinou na quarta-feira o acordo com o líder do DUP, Jeffrey Donaldson, para o fim do boicote. O governo britânico comprometeu-se em apoiar a região com um pacote de 3,3 mil milhões de libras e responder aos problemas surgidos com o Brexit.
Na prática, os controlos e a burocracia relativos às mercadorias que circulam da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte serão reduzidos dentro do quadro do acordo entre a UE e o Reino Unido, uma vez que a Irlanda do Norte, por não ter fronteira física com a República da Irlanda, mantém-se no mercado único europeu.
Com a voz do diálogo e o sangue do IRA
Nascida em 1977 no seio de uma família católica, republicana, e ativa no Exército Republicano Irlandês (IRA), Michelle Doris teve o pai e um primo presos, e outro primo baleado mortalmente pelas forças especiais britânicas, enquanto um tio emigrado nos EUA era dirigente da NORAID, uma associação de recolha de fundos pró-republicana. Antes de singrar na política foi mãe solteira aos 16 anos. Na sequência do Acordo de Sexta-feira Santa, em 1998, já com o nome de casada, começou por ser assessora do Sinn Féin no parlamento local. Em 2005 sucedeu ao pai enquanto representante na autarquia de Dungannon, onde mais tarde foi eleita mayor. Dois anos depois foi eleita para o parlamento, onde trabalhou de perto com o líder Martin McGuinness, o comandante do IRA que teve um papel crucial para alcançar a paz. McGuinness elevou-a a ministra em 2011 e designou-a como potencial líder antes da sua morte, em 2017. Um ano depois, O’Neill tornou-se vice-presidente do Sinn Féin e, em 2020, vice-primeira-ministra da Irlanda do Norte.
O resultado das eleições de 2022 deram a vitória ao Sinn Féin, mas só agora, vencidos os bloqueios dos unionistas do DUP, é que uma republicana chega ao mais alto cargo da Irlanda do Norte. Apesar dos antecedentes familiares, e de ter defendido o IRA - “na altura não havia alternativa”, afirmou numa entrevista em 2022 - Michelle O’Neill advoga o diálogo e deu sinais muito fortes disso mesmo quando se deslocou a Londres para o funeral de Isabel II e para a coroação de Carlos. O Sinn Féin sempre recusou ocupar os lugares dos deputados eleitos para a Câmara dos Comuns, em Londres.
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