O dia em que os cabo-verdianos se esqueceram da prolongada seca
Em Portugal, o verão de 1975 aquecia em cada dia que passava. No dia em que o DN publicava a reportagem na Cidade da Praia sobre as cerimónias da proclamação da independência, a primeira página do jornal está dividida entre esse tema (“A República de Cabo Verde não esqueceu Amílcar Cabral”); a criação de um “comité revolucionário” em Benfica formado por comissões de trabalhadores e de moradores e militares do Regimento de Engenharia n.º 1; o pedido de nacionalização da CUF por parte dos seus trabalhadores; uma fotolegenda na qual o ministro da Agricultura declarava o início da reforma agrária; uma nota da direção de Luís de Barros e de José Saramago a ironizar sobre o facto de o jornal ter sido acusado de ser “contra-revolucionário”; e o líder do PS, Mário Soares, a ameaçar em “paralisar todo o país” como forma de protesto “contra a manipulação dos órgãos de informação”.
Em Cabo Verde, que atravessava uma devastadora seca de oito anos, também estava quente, assegurava o enviado especial José Silva Pinto. “Sob um sol inclemente”, a cerimónia que tornou oficial a independência da terceira ex-colónia, depois da Guiné-Bissau e de Moçambique, “traduziu-se num misto de grave solenidade e despreocupado carnaval que levou ao modestíssimo estádio da Várzea cerca de qualtro mil cabo-verdianos que não quiseram perder este voltar de página deste jovem país”.
Não eram só cabo-verdianos. Na edição de dia 5 de julho, o correspondente do DN em Bissau dava conta do esvaziamento da capital guineense “pelos quadros políticos e técnicos e pela pequena burguesia” que partiu em barcos ou de avião para a capital cabo-verdiana. A explicação dá-se pela particularidade de a luta pela independência de ambos os países ter sido travada pela mesma organização fundada por Amílcar Cabral, o PAIGC.
Na cerimónia em que um navio português disparou salvas e quatro aviões militares sobrevoaram o estádio e lançaram flores, Cabral, assassinado dois anos antes, foi figura central. Um grande retrato, a inscrição em crioulo “Cabral ca mori” (Cabral não morreu) e a frase repetida pela assistência (“Amílcar Cabral, herói do povo”) marcaram a cerimónia ao ponto de o repórter afirmar que “a emoção e o entusiasmo populares foram tão explosivas como quando havia ensejo de vitoriar o ardoroso combatente pela unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde”. Nem quando foi içada a bandeira do novo país, então similar à guineense, mas acrescida de duas espigas de milho e de uma concha (a atual, azul com faixa vermelha e branca e 10 estrelas nasceu com a passagem para a democracia multipartidária, em 1992).
A unidade com Bissau foi abordada pelo secretário-geral do PAIGC Aristides Pereira. Este, que no primeiro dia da independência foi eleito presidente pelos 60 deputados da Assembleia Nacional, previa que a união fosse “original” e respeitasse a “via específica e o caráter particular dos dois países”. Na altura, o parlamento guineense já tinha dado o aval à união com Cabo Verde. Faltava o lado cabo-verdiano, mas essa união enfrentou resistências e acabou por colapsar com o golpe militar de 1980 em Bissau.
O percurso que fizeram os dois países não podia contrastar mais. Cabo Verde é das poucas democracias estabelecidas em África, com elevado crescimento económico, e o lusófono africano com melhor classificação no Índice de Desenvolvimento Humano, embora ainda longe dos países desenvolvidos.