“O Dia D foi a maior invasão marítima na História das guerras”
US National Archives / AFP

“O Dia D foi a maior invasão marítima na História das guerras”

Desembarque dos Aliados na Normandia a 6 de junho de 1944 foi decisivo para a derrota da Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial, e o historiador Giles Milton, autor do livro Dia D - A História dos Soldados (Vogais), explica ao DN os acontecimentos de há 80 anos.
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O Dia D foi uma operação militar sem precedentes ou, mesmo que em escala mais modesta, houve algo semelhante durante a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos também enviaram soldados para lutar em França contra os alemães? 
O Dia D foi a maior invasão marítima na História das guerras. Embora a Primeira Guerra Mundial tenha testemunhado enormes ofensivas terrestres e um grande número de mortos (60 000 vítimas no primeiro dia da Batalha do Somme), ninguém jamais havia tentado uma operação combinada terra-mar-ar na escala da Operação Overlord. As estatísticas contam parte da história: 156 000 soldados, 7000 navios de guerra (incluindo  contratorpedeiros, caça-minas, escoltas e embarcações de assalto), 50 000 veículos militares e 11 000 aviões. Houve também operações significativas de paraquedistas nas extremidades oeste e leste das praias de desembarque. Estas ocorreram horas antes dos desembarques na praia e permitiram aos Aliados capturar pontes e travessias de rios de vital importância.

Foram as derrotas alemãs em Estalinegrado, no Norte de África e também na Batalha do Atlântico que deram confiança aos Aliados para avançarem com o Desembarque na Normandia a 6 de junho de 1944?
A ofensiva alemã inicial na Frente Leste foi - nos primeiros meses - um triunfo. Cinco meses após o lançamento da Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética por Hitler, as forças da Wehrmacht aproximavam-se de Moscovo. Continuaram a avançar ao longo de 1942. Mas, no início de 1944, as tropas de Hitler travavam uma guerra de desgaste e tinham sofrido uma série de derrotas humilhantes, principalmente em Estalinegrado. A rendição do general Von Paulus e do seu Exército demonstrou que os alemães já não eram invencíveis. Hitler também tinha sofrido grandes derrotas nos desertos do Norte de África, e a sua Kriegsmarine já não representava tal ameaça para a navegação Aliada no Atlântico Norte, onde tinha causado estragos nos primeiros meses da guerra. Estaline tinha pedido o lançamento do Dia D em 1942 e 1943, mas Churchill argumentou que não havia tropas suficientes em Inglaterra (nem munições e embarcações de desembarque) para garantir o sucesso. Somente em 1944 o general Eisenhower considerou possível dar luz verde à Operação Overlord. Junho de 1944 foi o melhor momento possível para os Aliados Ocidentais lançarem a sua ofensiva na Normandia, porque os alemães estavam sob intensa pressão na Frente Leste. Hitler não podia dar-se ao luxo de transferir divisões da União Soviética, por causa dos intensos combates ali. Isto significava que a Costa Norte da França era relativamente pouco defendida.

Quão importante foi a desinformação para o sucesso da operação, fazendo os alemães acreditarem que o esperado desembarque seria noutro local da costa francesa? 
A desinformação foi uma componente importante no plano geral da Operação Overlord. Os Aliados criaram Exércitos falsos, telegramas falsos e até produziram tanques falsos - todos concebidos para confundir os alemães. Os pilotos da Luftwaffe sobrevoavam o sul da Inglaterra e viam milhares de tanques prontos para a ação, sem saber que na verdade eram feitos de madeira e lona. O Comando Supremo Aliado queria que Hitler acreditasse que esses tanques estavam destinados a pousar na área de Pas de Calais, o ponto de ataque mais curto e, em alguns aspetos, mais óbvio. Nem todos foram enganados. O marechal de campo Rommel, encarregado da Costa da Normandia, permaneceu convencido de que os Aliados desembarcariam no seu trecho da costa francesa. Até apontou a Praia de Omaha como o local onde tentariam desembarcar, por ser muito parecida com as praias onde desembarcaram na Sicília. Mais importante do que a questão de onde os Aliados desembarcariam era a questão de quando desembarcariam. O atroz clima de verão de 1944 desempenhou um papel vital em enganar os alemães. Nem Rommel, nem os seus comandantes seniores acreditavam que os Aliados tentariam uma invasão no início de junho, quando o Canal da Mancha estava tão difícil. O céu também estava muito nublado, o que significava que os Aliados não podiam lançar bombardeamentos. No verão de 1944, os alemães já não tinham acesso às previsões meteorológicas de longo prazo. Tinham perdido as suas estações meteorológicas na Gronelândia e noutros lugares e agora dependiam dos pilotos da Luftwaffe  que forneciam informações muitas vezes inadequadas sobre a velocidade do vento e a cobertura de nuvens. Esta “cegueira” alemã ao clima deu aos Aliados uma vantagem crucial, que eles exploraram ao máximo.

Giles Milton

Americanos e britânicos estão intimamente associados ao Dia D, mas milhares de canadianos também participaram em força, certo?
Os canadianos desempenharam um papel vital no Dia D, mas muitas vezes são excluídos dos livros de história. Excecionalmente, as tropas canadianas eram todas voluntárias. Receberam a sua própria praia de desembarque - Juno - e lutaram heroicamente apesar das poderosas defesas alemãs. Os canadianos tiveram a desvantagem real de desembarcar num trecho da costa que abrigava várias cidades e vilarejos. Os alemães exploraram isso ao máximo, transformando cada casa à beira-mar num reduto fortificado. As forças canadianas lutaram com habilidade e heroísmo e conseguiram avançar mais para o interior do que as tropas de qualquer outra nacionalidade. Na verdade, alguns tanques canadianos avançaram tanto para o interior - cerca de seis ou sete milhas - que acabaram por ter de recuar por medo de serem cercados e apanhados numa armadilha alemã.

Os alemães eram numerosos na Normandia e continuaram a lutar com braveza, apesar de o curso da guerra estar a mudar. Como explica a derrota? 
De facto, muitos alemães lutaram com braveza no Dia D, especialmente as Divisões Panzer SS altamente treinadas, que tinham uma experiência considerável de combate na Frente Leste. Mas muitos  soldados alemães eram jovens recrutas, cujo o único desejo era renderem-se aos Aliados. Eles perceberam que o Terceiro Reich estava condenado e não desejavam morrer nos meses finais da guerra. Além disso, muitas tropas da linha da frente eram apelidadas como Batalhão Ost - tropas de países como a Polónia ocupada. Há muito de cuja lealdade dos respetivos soldados ao Terceiro Reich se duvidava. No Dia D, muitos recusaram-se a lutar e renderam-se prontamente aos britânicos e americanos. Houve até casos de tropas do Batalhão Ost  a disparar contra os seus comandantes alemães em vez de dispararem contra os recém-desembarcados britânicos, americanos e canadianos.

Na sua 3.ª edição datada de 6 de junho de 1944, o DN dá conta do Desembarque na Normandia e escreve que “está a começar a grande batalha da Europa”.

Conta muitas histórias individuais no livro. É preciso uma coragem incrível para saltar para a água e correr até uma praia onde alemães armados com metralhadoras estão à espera. O que motivou esses jovens? 
Os jovens que invadiram a costa nas primeiras ondas do Dia D estavam, na sua maioria, absolutamente aterrorizados. Embora tivessem treinado arduamente para este momento - muitas vezes, durante muitos meses - nada poderia prepará-los para o horror de atacar uma praia fortemente defendida com metralhadoras alemãs. Muitos dos homens ficaram violentamente enjoados durante a travessia do Canal da Mancha. Não estavam em condições físicas para atacar a Muralha Atlântica de Hitler - aquela cadeia de defesas fortificadas que se estendia ao longo de toda a costa do norte de França. Mas houve um grande número de soldados Aliados que realizaram feitos incríveis no Dia D. Eles correram pelas praias debaixo de forte fogo de metralhadora alemã e conseguiram destruir os bunkers individuais que pontilhavam a costa. Uma vez silenciado um bunker - e os seus defensores capturados ou fuzilados -, isso permitiu que muito mais tropas Aliadas desembarcassem sem o horror de serem alvejados.

Qual foi o impacto da operação na população francesa que vivia perto da zona costeira? 
A população civil francesa raramente é mencionada em livros e artigos sobre o Dia D. No entanto, eles sofreram enormemente. A Costa da Normandia é densamente povoada, com dezenas de cidades e vilarejos que se estendem desde a Praia de Utah, no oeste, até a Praia de Sword, no leste. As famílias francesas que viviam nestes locais encontravam-se agora sob um dos mais pesados bombardeamentos aéreos e navais da História. Embora os Aliados tivessem largado panfletos do céu, avisando-os para abandonarem as suas casas e fugirem para os campos, esses panfletos chegaram tarde demais para salvar muitas pessoas de um ataque contundente das grandes armas dos Aliados. Ainda não se sabe quantos civis franceses foram mortos no próprio Dia D, mas estima-se que 3000 homens, mulheres e crianças morreram nas 48 horas que se seguiram aos desembarques Aliados. Isso compara-se a cerca de 11 200 vítimas aliadas no próprio Dia D. O número de alemães mortos e feridos não é conhecido: as estimativas variam de 4000 a 9000.

A memória dos americanos que atravessaram o Atlântico para salvar a Europa do nazismo ainda é forte em França e na Europa em geral?
Muitas pessoas que vivem na Normandia têm boas lembranças dos americanos que ajudaram a libertá-las. Mas essas memórias são coloridas pela tristeza e - ocasionalmente - pela raiva real. Este é especialmente o caso das pessoas que viviam em Caen, que foi sujeita a um bombardeamento aéreo maciço pelos Aliados no dia seguinte ao Dia D. Muitas vidas foram perdidas desnecessariamente. Um residente local viu os aviões American Liberator  lançarem bombas sobre a sua casa e comentou sarcasticamente: “Eles chamam-lhes libertadores!” A nível político, o papel americano na libertação da Normandia é mais complexo. Uma famosa discussão ocorreu entre o presidente Lyndon B. Johnson e o general De Gaulle, quando o líder francês informou o presidente americano da sua intenção de retirar a França da NATO. De Gaulle acrescentou que queria que todos os militares americanos fossem retirados do solo francês. “Isso inclui aqueles que estão enterrados nele?” foi a resposta cáustica do presidente Johnson. Muitos americanos continuam profundamente orgulhosos do seu papel na libertação da Normandia e do continente europeu. Até hoje, o Cemitério Americano imaculadamente mantido perto da Praia de Omaha continua sendo um dos pontos turísticos mais visitados.

O que se lembra da sua primeira visita às praias da Normandia? Para um britânico, cidadão de um país que num determinado momento esteve sozinho contra a Alemanha, deve ser extremamente comovente!
Fui às praias da Normandia pela primeira vez quando era criança. Devia ser no início da década de 1970 e ainda havia arame farpado enferrujado espalhado pelas praias. Lembro-me de levar um pouco deste arame farpado para casa e usá-lo para fazer um projeto de “Mostre e Conte” na escola. Fiquei absolutamente fascinado ao explorar os bunkers  e as posições de armas alemãs, muitas das quais ainda estavam intactas. Isso ajudou a inspirar o meu profundo interesse pela História. Nos anos mais recentes, descobri que o meu sogro alemão era um recruta jovem e relutante a servir na Normandia. Ele conseguiu contar-me o outro lado da história - como era ser um alemão na invasão ou no Dia D.

Algumas semanas após o Dia D, a União Soviética lançou na Frente Leste a Operação Bagration. Foi a soma das duas operações que ditou a derrota final de Hitler?
Winston Churchill sempre acreditou que era impossível para Hitler travar uma guerra em duas frentes. Isto explica por que razão - em 22 de junho de 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética - Churchill imediatamente se aliou a Estaline. Esta foi uma reviravolta política importante para Churchill, que odiou Estaline e o sistema soviético durante toda a sua carreira. Agora, em 1944, a profecia das duas frentes de Churchill tornou-se realidade: a exaurida Wehrmacht de Hitler não poderia travar grandes ofensivas tanto na frente ocidental como na oriental. Muitos soldados alemães perceberam que a guerra estava perdida - incluindo o marechal de campo Rommel, comandante local de Hitler na Normandia. Ele disse que se os Aliados conseguissem desembarcar no Dia D - e estabelecer uma posição segura - então seria impossível para os alemães empurrá-los de volta para o Canal da Mancha.

O que explica o fascínio do cinema pelo Dia D?
O Dia D é um vasto épico militar com um enorme cenário. No entanto, é também uma história de heroísmo individual; de jovens, muitas vezes aterrorizados, que arriscaram tudo na sua determinação de desembarcar e derrotar os nazis. É esta combinação de ação em grande escala e heroísmo em pequena escala que há muito atrai realizadores de cinema como Ken Annakin (O Dia Mais Longo) e Steven Spielberg (O Resgate do Soldado Ryan).

Giles Milton
Dia D - A História dos Soldados
Vogais
576 páginas
27,75 euros

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