Militares franceses da Operação Turquesa passam junto de uma milícia de hutus, em junho de 1994.
Militares franceses da Operação Turquesa passam junto de uma milícia de hutus, em junho de 1994.PASCAL GUYOT/AFP

O atentado que fez eclodir cem dias de febre genocida no Ruanda

Faz este sábado 30 anos que o líder ruandês foi morto, prelúdio para uma carnificina tendo como base a etnia. Os tutsis, principais vítimas, acabaram no poder.
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Não há dúvidas de que o ataque realizado com mísseis no dia 6 de abril de 1994 ao Falcon que se preparava para aterrar em Kigali, capital ruandesa, desencadeou uma das páginas mais sombrias da história do século XX -- e houve muitas. A dúvida que permanece 30 anos depois, mas que ninguém parece interessado em dissipar, é quem foi o autor moral dos disparos que mataram o presidente ruandês Juvénal Habyarimana e o seu homólogo do Burundi Cyprien Ntaryamira, ambos hutus. Paul Kagame, o homem que na sequência do atentado se insurgiu com sucesso contra a chacina levada a cabo por extremistas hutus e pela milícia Interahamwe, lutava há anos contra o governo ruandês e hoje é um líder sem margem para contestação.

Este domingo, na presença de dignitários de vários países, Kagame, de 66 anos, vai presidir à cerimónia no Memorial do Genocídio de Kigali, local onde se estima estarem enterradas mais de 250 mil pessoas, homens, mulheres e crianças vítimas de um ódio cego acirrado por propaganda em emissões de rádio e TV e que levou à morte por armas de fogo, mas também com catanas, a arma das milícias, num total calculado em 800 mil pessoas. Além disso, a violação foi uma arma usada contra as mulheres tutsis: as estimativas mais baixas apontam para cem mil vítimas (ONU), as mais elevadas para meio milhão (Human Rights Watch, HRW), parte delas vítimas de mutilações.

A cerimónia, intitulada Kwibuka 30, marca o início de uma semana de luto nacional, durante a qual a música, eventos desportivos e filmes estão proibidos em locais públicos, na rádio e na TV. Fotografias da capital mostram residentes a pintarem portões e cercas de cores escuras. Quem não estará presente é Emmanuel Macron, embora em representação de França esteja o ministro dos Negócios Estrangeiros, Stéphane Séjourné. O presidente francês, em mensagem de vídeo a publicar no domingo, reconhece que a França e os seus aliados “poderiam ter impedido” o genocídio de 1994, mas não tiveram a vontade de fazê-lo. Segundo um funcionário do Eliseu citado pela AFP, Macron vai dizer que “quando a fase de extermínio total contra os tutsis começou, a comunidade internacional tinha os meios para saber e atuar”.

Numa visita ao Ruanda em 2021, reconheceu as “responsabilidades” francesas. Nesse mesmo ano, um relatório encabeçado pelo historiador Vincent Duclert concluiu ter havido um “fracasso” por parte de França durante a presidência de François Mitterrand, mas por outro lado sublinhou não haver provas de cumplicidade de Paris. 

A Operação Turquesa, liderada pelos militares franceses sob mandato da ONU, é acusada de ter protegido o regime genocida hutu e de ter hostilizado a Frente Patriótica Ruandesa de Kagame, que viria a tomar a capital e o poder ao fim de cem dias de carnificina. Também há quem aponte para a operação francesa como responsável pelo insucesso da UNAMIR, missão de paz das Nações Unidas, que havia sido estabelecida meses antes, e cujo comandante, o canadiano Rómeo Dallaire, avisou em janeiro a sede das Nações Unidas sobre os preparativos dos extremistas hutus, mas foi ignorado. 

Se as responsabilidades dos países e dos líderes continuam por apurar, alguns dos envolvidos diretamente no genocídio continuam fugidos à justiça. A HRW chamou a atenção para a urgência do tema, quando há suspeitos a morrerem ou a serem declarados incapazes de ir a julgamento devido à sua debilidade.

Kagame, herói e vilão

Paul Kagame recebeu em mão o relatório do historiador francês Vincent Duclert, que concluiu sobre o "fracasso" da intervenção francesa. SIMON WOHLFAHRT/AFP

Antes do genocídio de 1994, o Ruanda já vivera situações de conflito interétnico. Em 1959, os hutus revoltaram-se contra a potência colonial, a Bélgica, e contra os tutsis que, apesar de menos numerosos, faziam parte da elite. Tutsis, os pais de Paul Kagame, levaram-no com dois anos para o Uganda, onde cresceu nos campos de refugiados. Em 1979 junta-se aos rebeldes liderados por Yoweri Museveni para derrubarem pela força o ditador Idi Amin, o que aconteceu em 1986, ano em que ascendeu a chefe dos serviços secretos militares e em que recebeu formação militar em Havana, Cuba. Quatro anos depois recebeu treino no Kansas, EUA.

Ao regressar, tomou conta da Frente Patriótica Ruandesa e invadiu o país natal, obrigando o governo a assinar acordos de paz e à entrada de uma força da ONU. Com o assassínio do presidente Juvénal Habyarimana, Kagame lutou contra as forças governamentais e milícias hutus, tendo ficado como o herói que estancou o genocídio. Ninguém sabe qual o seu papel na morte do líder, mas já como vice-presidente admitiu ter planeado derrubar o zairense Mobutu. No leste da agora RDC, as suas forças e milícias como a M23 perseguiram e mataram milhares de hutus. 

Com mão de ferro, o militar transformado em presidente eliminou qualquer concorrência no país e prepara-se para renovar o mandato em julho com mais uma vitória esmagadora.

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