"O 2.º semestre é muito importante para o relançar das relações UE-América Latina"

O secretário-geral ibero-americano, Andrés Allamand, esteve em Lisboa para reuniões oficiais e para participar num encontro organizado pelo Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas. Ao DN, o antigo chefe da diplomacia chileno falou do que podemos esperar da cimeira dos líderes dos 22 países ibero-americanos, das expectativas da presidência espanhola da União Europeia para o acordo UE-Mercosul e de um continente que virou à esquerda.

A próxima cimeira ibero-americana realiza-se a 24 e 25 de março, na República Dominicana. O que podemos esperar desse encontro?
Estamos muito otimistas com a realização desta cimeira. Vamos ter a presença de todos os países, o que é sempre importante, e temos como objetivo que a cimeira tenha resultados concretos que ajudem os cidadãos. Finalmente vamos aprovar, se os países assim o decidem, uma carta ibero-americana de direitos digitais. Hoje em dia a digitalização está a mudar o mundo, as formas de viver, de nos relacionarmos com os outros, de nos educarmos, de trabalharmos, de fazermos comércio. Por isso, há um grande interesse nos direitos das pessoas no universo digital. Alguns países, como Espanha, que foi propulsor desta iniciativa, têm cartas de direitos digitais ou leis, por exemplo, de proteção de dados pessoais. Mas, até agora, não tinha havido um esforço dos 22 países para coincidir em tais propósitos. Por isso, um dos eixos da cimeira vai ser esta carta dos direitos digitais. Também vamos trabalhar no tema do meio ambiente, no da segurança alimentar, que, por diferentes razões, se torna mais e mais complexo, e temas da arquitetura financeira internacional. Por isso, acreditamos que vai ser uma cimeira que vai ter resultados positivos. Nós queremos que as cimeiras sejam cada vez mais cidadãs, que os cidadãos ibero-americanos possam ver como beneficiam destas cimeiras.

Disse que todos os países vão estar presentes, mas ao nível de chefes de Estado ou de Governo?
A maioria vai estar presente com os seus chefes de Estado. No caso de Espanha e Portugal, vão os chefes de Estado e os primeiros-ministros. Noutros países vão os presidentes ou vice-presidentes. Mas acho que teremos uma assistência muito boa.

De que forma esta cimeira pode ser uma antecipação da que está prevista entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), em julho?
Esse é outro dos objetivos da cimeira. Nós vemos com muito bons olhos a realização da cimeira entre a União Europeia e a CELAC sob a presidência de Espanha, no segundo semestre do ano. Há oito anos que não se fazem estas cimeiras, ao contrário das cimeiras ibero-americanas que durante 30 anos mantiveram a sua periodicidade. Um dos temas que os países vão tratar é precisamente como fortalecer a relação entre a Europa e a América Latina. Penso que o segundo semestre é muito importante para o relançar das relações entre Europa e América Latina. E parece-nos que o papel que joga Espanha, Portugal e Andorra é, claro, muito importante. Qual seria o resultado ótimo da presidência espanhola da União Europeia? Que, no plano político, houvesse uma melhor articulação permanente. Que não se voltem a produzir estes vazios de oito anos entre uma reunião e outra. E que possa haver avanços no plano comercial...

O acordo entre UE e Mercosul?
Sim, concluir por fim e fechar o acordo com o Mercosul, o com o México. O do Chile encontra-se bastante bem encaminhado. Custa entender que, sendo o comércio tão importante para ambas as regiões, tenha sido impossível até agora chegar a acordo e que as negociações se eternizem, no caso do Mercosul, estamos há mais de 20 anos a negociar.

E acha que é possível desbloquear a situação?
Eu penso que é fundamental fazê-lo. É fundamental desbloquear o acordo UE-Mercosul, porque seria um sinal muito positivo. Em terceiro lugar, há um tema de investimentos bidirecional. A nós interessa que os investimentos europeus na América Latina cresçam e, ao mesmo tempo, há um incipiente fluxo de investimentos que vêm desde a América Latina até à Europa. Muitos deles aterrando em Espanha e Portugal. Há um fenómeno com todas as indústrias de alta tecnologia, que partem como startups, se transformam em scale labs e finalmente terminam em multilatinas e unicórnios. Essas empresas arrancam num ou mais países da região, crescem na região, mas querem saltar para o mundo. E quando querem fazer esse salto, pensam em Espanha e Portugal. E por último, pode-se sempre melhorar a cooperação entre os dois continentes.

Mas e os problemas internos? De que forma a crise política no Peru, com a destituição do presidente Castillo e os protestos contra a presidente Baluarte, e o conflito diplomático com o México podem ter impacto na cimeira ibero-americana?
As cimeiras conseguiram durante 30 anos lidar com os conflitos que ocorrem entre os países e dar um sinal de que é possível, mesmo em momentos politicamente complexos, trabalhar na base da inclusão e do consenso. Mas, obviamente que os países podem querer abordar os temas que considerem importantes para a região.

E acha que esta situação que falei poderá ser um problema na próxima cimeira?
A situação específica dos vários países não está na agenda da cimeira, porque não seria apropriado que assim fosse. Mas isso não significa que os países não possam abordar, se assim o desejam, essas situações. Mas, em qualquer caso, espero que prevaleça um espírito de concórdia. Porque é preciso não esquecer que a cimeira ibero-americana, para adotar qualquer decisão em qualquer matéria, tem que operar por consenso. Isto é, por unanimidade de todos os países.

Nestes últimos anos houve uma viragem à esquerda na América Latina - aliás também há governos de esquerda em Portugal e Espanha. Isso facilita a integração regional?
A comunidade ibero-americana está organizada desde há 30 anos e nunca as mudanças políticas, numa ou noutra direção, afetaram o seu funcionamento. Para mim, que tenha havido mudanças, tem a ver com o bom funcionamento da democracia. Que se produzam mudanças numa ou noutra direção parece-me normal. Agora, o que parece significativo, como disseram alguns analistas, é que o que existe na região é uma rejeição em geral à continuidade dos governos. Nas últimas 14 eleições, só numa o governo foi reeleito. Em todas as outras, a oposição ganhou as eleições. Vamos ver o que acontece este ano, no Paraguai dentro em pouco, depois a Guatemala e até ao final do ano a Argentina. Efetivamente na América Latina há uma reação contra os governos, qualquer que seja a sua ideologia, à esquerda, à direita ou ao centro.

Está a dizer que poderá então haver uma mudança nos países que vão a eleições este ano?
Temos que ver, as eleições na América Latina são muito competitivas. Muitas delas terminam em segundas voltas. Apesar de que, por exemplo, no caso do Paraguai, não há segunda volta. Aí ganha quem tiver um voto a mais. Então, penso que as eleições vão continuar a ser muito competitivas. Com resultados muito apertados.

Foi chefe da diplomacia do Chile, no governo conservador de Sebastián Piñera. O facto de vir da direita não cria problemas na relação com todos os governos de esquerda na região?
Eu tenho uma trajetória de centro-direita. Nunca estive em posições radicais ou extremistas. Sempre fui uma pessoa que procurei os acordos e o compromisso, o entendimento. Penso que foi uma das razões pelas quais os 22 países optaram pelo meu nome para a secretaria-geral ibero-americana. O secretário-geral ibero-americano tem um papel profissional, em muitos aspetos, administrativo, no bom sentido da palavra. A mim cabe-me o papel, em conjunto com a Secretaria Pro Tempore, que de garantir que as cimeiras funcionem bem, que as reuniões ministeriais se realizem, que os distintos programas de cooperação avancem, de maneira que não haja nenhum problema nesse horizonte.

Ser de esquerda ou direita não tem então influência.
Trabalho exatamente de forma igual, qualquer que seja a cor política dos governos. E mantenho relações pessoais muito boas com todas as pessoas com quem tenho que interagir.

Incluindo com o governo de esquerda chileno de Gabriel Boric?
Também, claro.

Como vê a situação política no seu país, depois de no ano passado ter sido chumbado o plebiscito sobre a mudança da Constituição?
Quando assumi a secretaria-geral ibero-americana indiquei que a minha etapa de participação na vida política chilena, de muitos anos, tinha terminado. Enquanto secretário-geral não me compete falar da política interna dos países que formam parte da comunidade ibero-americano. E essa norma aplico-a também ao meu país.

Esteve em Lisboa para reuniões oficiais e para o encontro do Triângulo Estratégico América Latina-Europa-África. Como vê o papel de Portugal nesta triangulação?
É um papel muito importante, não apenas no triângulo Europa, América Latina e África, mas também na comunidade ibero-americana. Tive oportunidade de conversar com o ministro [dos Negócios Estrangeiros, João Gomes] Cravinho e passámos em revista toda a agenda da comunidade ibero-americana, dando muita importância ao futuro das relações e ao trabalho que se pode fazer entre a comunidade ibero-americana, a SEGIB, e a CPLP. Nesta cimeira, a CPLP vai transformar-se em observadora da comunidade ibero-americana. Nós já somos observadores na CPLP. E vamos organizar um trabalho conjunto entre ambas as organizações. Quanto ao triângulo, Portugal também tem um papel muito importante. A verdade é que se olharmos para os vínculos entre Europa, África e América Latina, é evidente que os vínculos com África desde ambos os continentes podiam ser muito maiores e melhores. O alto comissário [da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep] Borrell diz sempre que a América Latina, nos últimos tempos, não esteve no radar da UE. Mas a verdade é que este mesmo comentário pode fazer-se em relação a África. E, muito especialmente no caso da América Latina, o comércio entre África e América Latina é insignificante, é menos de 2%. E as relações diplomáticas também são muito poucas, muito baixas. Só Cuba tem 32 embaixadas. Brasil tem 31, mas o resto dos países... Argentina tem 10, México tem 8 e muitos países da América Latina simplesmente não têm presença diplomática em África. E estamos a falar de um continente que representa 17% da população do mundo, que é o continente demograficamente mais jovem. Dois terços dos africanos têm menos de 25 anos. É um continente de enorme riqueza em matéria de minerais que, como a América Latina, devia jogar um papel muito forte no combate às alterações climáticas. Acho que existem muitas formas possíveis de colaboração. Penso que Portugal, pela sua posição, pela sua presença em África, pela sua influência na Europa e na América Latina, pode desempenhar um papel muito importante para que este triângulo seja cada vez mais forte.

Falou do Brasil. Foi com Lula da Silva que foi dada muita importância à relação Sul-Sul. Agora que ele voltou à presidência, será uma oportunidade para reforçar esse laço com África?
Penso que sim. E não apenas isso. Penso que o Brasil, no novo governo do presidente Lula, vai retomar o papel - um papel muito importante - na política internacional. O presidente Bolsonaro teve uma estratégia completamente distinta e o presidente Lula foi muito claro ao dizer que, com a sua vitória, o Brasil voltou ao mundo. O Brasil vai desempenhar um papel muito importante a nível ibero-americano e global. De facto, já está a desempenhar. Por exemplo, nas abordagens para encontrar uma solução para a terrível guerra na Ucrânia.

A Europa está muito próxima da guerra e estamos todos a sofrer com a inflação, a crise. É da mesma forma na América Latina, apesar de estar mais longe?
Obviamente que olhamos para a guerra de forma mais distante na América Latina, mas já teve um grande impacto em matéria de inflação, nas questões dos fertilizantes ou dos produtos que se compram ou vendem à Rússia. É certo que poderia haver oportunidades para países que são particularmente fortes, por exemplo, na exportação de alimentos, mas esses países também têm dificuldade por causa dos fertilizantes e também sofrem os efeitos negativos da inflação e do aumento dos preços dos combustíveis. De qualquer forma, a grande maioria dos países ibero-americanos, nas diferentes votações na ONU, assinalaram a rejeição da invasão por parte da Rússia.

Não o fazem de forma unânime...
Não há unanimidade, mas a grande maioria dos países tem essa posição. Só cinco é que não votaram nesse sentido nas resoluções da ONU ou abstiveram-se. Mas os restantes 17 aprovaram sempre as resoluções. À América Latina convêm um mundo em paz. Um mundo estável, um mundo aberto aos investimentos do comércio e a instabilidade global que gerou este conflito não convém a ninguém.

Dado o impacto que a China tem na região, onde investiu milhões, uma guerra que envolvesse a China seria pior, certo?
Eu espero que a China desempenhe um papel cada vez mais de procurar uma solução para o conflito. No princípio da guerra, Borrell disse que a China podia ter um papel de mediador importante. Até agora não teve, mas não significa que não possa vir a ter. Um conflito a envolver a China teria consequências inimagináveis para a humanidade, mas não estou a ver a China, de modo algum, a participar no conflito atual.

Eu estava a pensar em Taiwan...
Penso que todo o mundo espera da China um papel a favor da paz e não de favorecer conflitos.

susana.f.salvador@dn.pt

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