Hila Abir mostra o improvisado memorial dedicado ao irmão Lotan no bosque onde se realizou o Supernova, um festival de música perto do kibbutz Re’im que foi palco do maior dos vários massacres feitos pelo Hamas a 7 de outubro de 2023, 364 mortos só ali, nos campos em volta e na estrada 232, naquele dia transformada em “estrada da morte” para os israelitas em fuga. Na fotografia, Lotan surge de calção de banho, “acho que numa praia do México”, diz a irmã, sublinhando que o jovem de 24 anos, que tinha também nacionalidade portuguesa, “sempre adorou o mar”. Hila faz uns segundos de silêncio junto do memorial, para uma prece, e depois beija a fotografia do irmão. Pouco antes, junto ao abrigo na estrada 232 onde Lotan foi morto, Hila contara um pouco do que sabia ter acontecido nessa manhã de shabat ao irmão, o mais novo de quatro filhos de um empresário da construção e de uma instrutora de ioga e pilates: “Lotan veio ao festival com uma amiga de infância, May Naim. Cresceram juntos quase como irmão e irmã. E deram juntos o último suspiro. Veio com eles outro amigo no carro, Ben Landau, que sobreviveu ao massacre”. Também morreram outros amigos nesse dia, Guy e Shalev. E prossegue: “Ouvimos sirenes no moshav Gan Haim, onde vivemos, o que é raro. Era não só manhã de shabat, mas igualmente de Simchat Torá. Um dia muito especial em Israel e estávamos a ter um fim de semana muito festivo. Mas por causa dos rockets do Hamas tocaram sirenes por todo o país. Sabemos que eles saíram mais cedo do Supernova. O Lotan telefonou ao meu pai às 6.30, a dizer que estava a fazer as malas para voltar para casa. Uma amiga enviou-me sms entretanto, do kibbutz Kfar Aza a dizer que havia tiros e que se estava a esconder. Perguntou-me onde estava Lotan e eu respondi que estava no Supernova, mas já a regressar. Disse-me para lhe dizer para irem antes para Netivot. Para saírem depressa desta estrada. Eu disse isso ao Lotan. E eles dirigiram-se para Netivot. Mas pensamos que no caminho a polícia lhes terá dito para voltar para trás e procurarem um abrigo. Este abrigo antiaéreo ao pé do kibbutz Be’ri foi o primeiro que viram. E entraram”. A amiga do Kfar Aza é Amit Soussana, sequestrada e levada para Gaza, mas já libertada.Dos cerca de 220 reféns feitos durante a vaga de terror a que o Hamas chamou de Dilúvio de Al-Aqsa, cerca de 80 continuam em Gaza, e mais de um terço deles estarão mortos. Naquele dia, o grupo islamita matou 1200 israelitas. A guerra que se seguiu terá causado a morte a mais de 47 mil palestinianos, e a destruição de grande parte das infraestruturas de Gaza.O abrigo, agora pintado em tons de azul por fora, está cheio de imagens dos muitos que ali morreram, afixadas por familiares e amigos. Pequenos autocolantes com fotos. Ou com frases em hebraico ou em inglês. Just living my best life diz um dedicado a Eden Ben Rubi, uma artista de 23 anos, mostrada sorridente, com as longas tranças loiras. São inúmeros os autocolantes, às vezes repetidos. Neste abrigo refugiaram-se dezenas de pessoas. Há vídeos feitos por telemóvel e enviados em desespero para as famílias que mostram os jovens amontoados e aterrorizados. Hila aponta para o autocolante com um Lotan sorridente. “Ele disse-me que estava aqui por volta das 7h45, algo do género. Enviou-me a localização. Disse-me que estavam 40 pessoas lá dentro. E se entrarem vão ver que foi feito para apenas 10 pessoas. ‘Não há polícia, nem exército, nem armas. Ninguém olha por nós’. Estas foram as últimas dele palavras para mim”, recorda Hila..“Perdemos o contacto com Lotan por volta das 8h00”, conta. “Um dos jovens ligou ao tio e disse-lhe que estavam a disparar para dentro do abrigo antiaéreo. Agora sei que os terroristas vieram até aqui várias vezes enquanto estavam a atacar o kibbutz. Atiravam uma granada. Depois tiros com uma arma automática. Passados 20 minutos, outra granada, outra rajada de arma automática. Apenas 12 pessoas sobreviveram. Uma deles é Yuval Raphael. É cantora e acabou de ganhar um concurso na televisão. Estará na Eurovisão a representar Israel. E estou muito orgulhosa dela”.Começam a juntar-se pessoas em redor de Hila. Há quem perceba que se trata da familiar de uma vítima. Hila, que já se habituou a falar com jornalistas, prossegue a narrativa, agora com audiência acrescida. Sorri para quem se aproxima. “Penso que por volta das 14h ou 15h o exército começou a chegar aqui. E resgataram os sobreviventes. Presumimos que por volta das 18h de sábado retiraram os corpos e colocaram-nos dentro de uma tenda. E no domingo de manhã, levaram-nos para a base militar de Shura. É onde guardaram os corpos até descobrirem quem era quem. E demorou quatro dias até nos baterem à porta. Primeiro anunciaram que encontraram o corpo da May. E uma hora depois disseram-nos que identificaram também o Lotan. Na quarta-feira de manhã enterrámos Lotan. Depois May. Tivemos dois funerais. A nossa vida mudou completamente”.Hila conta que até terem certeza da morte, os pais foram ao hospital em Ashdod, depois a Be’er Sheva. Depois para Netivot, onde chegara um autocarro com sobreviventes do Supernova Festival. Queriam acreditar que o filho era um deles. “Não conseguíamos dormir, não conseguíamos comer. Estávamos apenas à procura deles, a tentar salvá-los. Não conseguia acreditar que Lotan não tinha sobrevivido. Quando trouxeram o corpo para casa dos meus pais, não nos deixaram vê-lo. Por isso, até agora, não sei o que aconteceu ao Lotan. Disseram-me que seria melhor lembrarmo-nos do Lotan como era em vida. Sempre com um sorriso no rosto”.Sobre o que aconteceu naquele dia, o que falhou em Israel para o Hamas conseguir matar 1200 pessoas e sequestrar mais de 200, Hila comenta: “ainda não tenho uma explicação. Não quero culpar ninguém. Só quero encontrar respostas. Precisamos de saber porque é que isto aconteceu porque precisamos de ter a certeza de que não acontecerá novamente. Só acho que o exército não fez a coisa certa e o governo não fez a coisa certa. Isto vem de há muitos anos. O Hamas usou o dinheiro que demos a Gaza para construir túneis e comprar armas, em vez de cuidar da população de Gaza e da educação. Escolheram a guerra em vez da paz”.Acrescenta que mudou a forma como olha para os palestinianos. “Agora sabemos muitas coisas porque os reféns estão a regressar e ouvimos os testemunhos. Em Gaza, estudam o Mein Kampf, o livro de Hitler. Ouvimos os testemunhos dos reféns de que até as crianças de 4 anos dizem que querem matar todos os judeus e cospem-lhes. Tudo começa com a educação. E infelizmente a não ser que algo mude, não vejo como podemos ter paz com os palestinianos”. Um casal mais velho escuta atento. A senhora dá um abraço a Hila. Vieram de um kibbutz no norte de Israel para ver o que aconteceu aqui no sul. Não são os únicos. Muitos israelitas aproveitaram este período de cessar-fogo, para visitar os kibbutz vizinhos de Gaza onde o 7 de Outubro foi terrível, como Be’ri, Re’im ou Nir Oz.“Lotan era um espírito livre, um rapaz amante da natureza. Ele vivia mesmo no limite. Esteve dois meses em Portugal. Tinha cidadania portuguesa e queria mudar-se para lá. Ia à Nazaré surfar. Queria construir um hotel perto do mar. Era um menino sorridente e iluminado. É o meu irmão mais novo. Temos 15 anos de diferença, por isso era uma espécie de mãe dele”.Lotan chegou a passar uma temporada nos Estados Unidos. Mas as raízes sefarditas, de judeus marroquinos de Fez, fizeram-nos aproveitar a lei da nacionalidade portuguesa e um dia importante para a família foi quando receberam os passaportes. “Adoramos Portugal. Já lá fui muitas vezes. Na verdade, pensámos mudar-nos para lá como família. O meu pai fala agora de comprar uma casa em Portugal e chamá-la de Lotan para mandar todos os amigos e familiares relaxarem lá, sentirem o Lotan, espero que isso aconteça em breve”, diz Hila.“Mudei a minha vida desde o 7 de Outubro. Eu sou arquiteta e tínhamos uma empresa de construção. Estávamos a construir em Telavive e Jaffa e já pensávamos começar a construir também em Lisboa. Depois do sucedido, fechámos a empresa. Os meus pais sofrem muito com o que se passou. E eu tornei-me uma ativista. Iniciámos um fórum para as famílias enlutadas porque ninguém as procurava. Iniciámos também um comité para pedir investigação do que se passou. Estou a tentar promover uma lei agora no Knesset para ajudar as famílias do massacre de 7 de Outubro. Quando vou lá ao nosso parlamento, compreendo que pessoas como eu, as vítimas e os cidadãos de Israel, precisam de tomar uma posição e deixar a política de lado. Se queremos novamente a segurança de Israel temos de lutar por isso”..Entramos no abrigo. Depois dos corpos retirados, foi limpo do sangue e repintado. “Nem imagina o que encontraram aqui”, sublinha Hila. “O pior que pode pensar”. Tal como no exterior, as paredes estão cobertas de autocolantes com fotos das vítimas. No chão, há pequenos vasos com velas, deixados pelas famílias. Hila mostra no telemóvel o tal vídeo que circula na net e em que Lotan aparece. O olhar assustado de todos é aterrador. Entram agora mais visitantes. Pedem a Hila que lhes mostre também o vídeo. Nenhum rosto é capaz de esconder uma reação mista de repulsa e revolta. O abrigo começa a ser pequeno à medida que mais pessoas entram. Torna-se claustrofóbico. Mas nem de perto nem de longe estão 40 pessoas. Cheias de medo. “É inimaginável o que sofreram aqui”, indigna-se Hila.O DN viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel .Crónica de Israel: Joga-se à bola em Majdal Shams.Crónica de Israel: Casa dos meninos ruivos continua vazia.Crónica de Israel: Halina, sobrevivente de Auschwitz