"Não teria havido a tragédia em Timor sem o assassínio em massa na Indonésia"
O "método Jacarta", que descreve no livro, foi a fórmula usada pelos EUA na Guerra Fria numa série de países, desde logo a Indonésia, que passou por apoiar os militares para uma resposta contra uma revolta comunista, real ou imaginária, e a instituição de regimes anticomunistas próximos dos EUA; responsáveis pela matança em massa de opositores de esquerda.
Não começou na Indonésia. A Indonésia é o caso mais importante em que foi usado o que apelido de "método Jacarta", que foi a morte massiva intencional de esquerdistas ou pessoas acusadas de serem esquerdistas. Penso que provavelmente começou na Guatemala em 1954. E descobri que, no total, este método, este homicídio em massa usado contra a esquerda foi usado em pelo menos 22 países na segunda metade do século XX. Na Indonésia, ocorreu em 1965 de quase um milhão de pessoas do Partido Comunista ou acusadas de estarem associadas a ele.
Porque é que a maior parte do mundo ocidental desconhece o que se passou?
Essa é uma boa pergunta. A forma como este evento acabou por ser esquecido, especialmente no Ocidente, apesar de ser bem percebido por agentes em Washington e pela maioria das pessoas que estavam a tomar atenção à Guerra Fria, o quão importante era a Indonésia. Era muito mais importante que o Vietname no início da década de 1960. A Indonésia é agora o quarto país do mundo em termos de população, estava na vanguarda do movimento do Terceiro Mundo. Tinha mais pessoas e mais influência do que o Vietname tinha. Como algo assim tão crucial, penso que um dos mais cruciais eventos da Guerra Fria, pode ser esquecido, só pode ser explicado por múltiplos fatores. Uma das explicações para o esquecimento que ocorreu na nossa memória coletiva foi precisamente o quão bem sucedida a ditadura de Suharto foi. A ditadura de Suharto, que assumiu como resultado desta matança em massa e imediatamente se estabeleceu como uma das maiores aliadas de Washington na Guerra Fria, teve sucesso em tornar a sua história oficial a única que pode ser contada na Indonésia. Até hoje é assim. É ilegal contar a verdade sobre o que aconteceu em 1965 e 1966. Outra razão é a própria guerra do Vietname. A atenção é limitada, especialmente nos EUA, para eventos em países longínquos. Pouco depois de a Indonésia ter mudado do campo anti-imperialista, anticolonial, não-alinhado para o campo anticomunista, autoritário e capitalista, o Vietname tornou-se num tema doméstico nos EUA. Estava nas notícias e acabou por dominar a atenção limitada que temos no Ocidente para estes eventos estranhos em locais longínquos. E, em terceiro lugar, e acho que este é o mais difícil de processar, o que acontece na Indonésia contradiz tão violentamente a nossa ideia do que a globalização era, de como o nosso sistema global foi formado, que é mais fácil esquecer.
Ainda hoje é ilegal falar e o Partido Comunista continua a ser ilegal na Indonésia. O comunismo ainda é uma espécie de bicho-papão?
Penso que é ainda mais literal. A associação é mais diabólica. Muitas vezes o comunismo era associado com bruxaria, não no sentido metafórico em que podemos chamar um movimento feminista neste ou naquele país de um bando de bruxas. Até hoje, muitos dos sobreviventes que conheci para este livro, que graciosamente me dispensaram o seu tempo e me contaram as suas histórias, ainda são considerados uma espécie de bruxas nas suas aldeias. As poucas pessoas que estão dispostas a falar sobre aquele tempo, que lembram como sendo uma altura excelente até 1965, fazem-no com grande medo das consequências.
Timor-Leste acabaria por ser invadido pela Indonésia e palco também de massacres terríveis. A ideia dos EUA na Ásia era impedir o efeito de dominó, a ideia de que se um dos países se tornasse comunista, outros cairiam no mesmo. De que forma o caso timorense se enquadra neste tema?
Não teria havido a tragédia em Timor-Leste sem o assassínio em massa na Indonésia. A tragédia do que aconteceu ao povo pacífico de Timor é impossível de imaginar sem os eventos de 1965. É como resultado deles que o general Suharto é capaz de consolidar o seu governo, afastar e ultimamente derrubar o presidente Sukarno e tornar-se num aliado importante dos EUA. Ele diz aos EUA que há ameaça comunista em Timor e isso permite-lhe sair impune. O lado português da história é conhecido. Os portugueses com a revolução recuam dos seus territórios ultramarinos, incluindo Timor-Leste. Isto acontece em 1975. Suharto finge então acreditar, ou talvez até acredita, que de alguma forma a metade desta ilha bem a leste de Jacarta vai ser uma ameaça à Indonésia por causa das forças comunistas. Ele usa isto como pretexto para a invasão de Timor Leste em 1975, que em última análise leva à morte de talvez um terço da população do país. E os EUA e a Austrália fazem um grande "piscar de olhos", eles dizem "sabemos o que vais fazer, está tudo bem". Os EUA não assistem ativamente da maneira que fizeram em 1965. Mas a razão para este "piscar de olhos" é porque Suharto está a colocar tudo neste contexto da Guerra Fria, dizendo que há uma ameaça comunista e que eles sabem o importante que ele é enquanto aliado. Nunca teríamos visto a tragédia que vimos em Timor, que é ainda visível nos dias de hoje. Se for lá hoje, é claro que eles ainda estão a viver com as consequências desta invasão. Seria impossível sem os eventos de 1965.
Conta que havia referências a Jacarta no Chile, por exemplo, que isso servia como ameaça antes do golpe contra Allende em 1973. É por ter havido comissões de verdade na América Latina, que não existiram na Indonésia, que conhecemos mais desses casos?
Exatamente. Isto remonta ao primeiro ponto do processo de esquecimento que falei. Nunca houve uma comissão de verdade, nem sequer parecido, como Chile, na Argentina e, até certo modo, no Brasil, por causa do poder contínuo dos militares da Indonésia. E quando falei com os sobreviventes indonésios e lhes disse que na América Latina não só houve essas comissões como houve pedidos de desculpa e até reparações pagas às vítimas, que antigas vítimas tornaram-se líderes do país... eles não acreditam. Eles pensam que isso é inimaginável na Indonésia.
Falámos de o comunismo ser mais do que um bicho-papão na Indonésia. E nos EUA? Ainda é? Ou agora é o terrorismo islâmico ou a imigração?
Penso que, quando tentamos explicar a política externa norte-americana, as intervenções mais flagrantes acontecem quando temos uma combinação de fatores económicos e ideológicos. Quando temos não apenas um país específico, que é percebido como uma ameaça para o tipo de ordem global que os EUA esperam manter, mas também algum tipo de empresa ou algo que diga dentro dos EUA que aquele é um local importante para um investimento ou para fazer negócios. A Indonésia era ambas. Na Guatemala, por exemplo, tínhamos a United Fruit Company mas também o medo do fantasma comunismo. No século XXI ainda são estes dois elementos combinados que explicam a maioria das intervenções dramáticas dos EUA no resto do mundo. Não é sempre o anticomunismo, mas esse é o mais importante fator ideológico. Referiu a guerra global ao terrorismo, onde qualquer associação ao islamismo radical podia ser usado como uma justificação, especialmente se também há interesses económicas para uma intervenção estrangeiro. Mas um ponto que tento deixar claro, que acho que emerge de olhar de forma global para este método, é que houve um processo de acumulação de conhecimento, de tecnologia e métodos, na segunda metade do século XX. O governo dos EUA, à medida que aprendeu lentamente o que funcionava num local, podia tentar num outro local. Se algo funcionava aqui, eles deixavam essa informação numa espécie de caixa de ferramentas do que se tinha revelado eficaz. E a mobilização de uma espécie de medo do "comunismo", o medo da rebelião desde baixo, de uma qualquer revolta social, provou ser muito eficaz no século XX nos EUA, domestica e internacionalmente. E não deitamos essa ferramenta fora quando é eficaz. Não só nos EUA, mas na América Latina, vemos o regresso violento dessa abordagem retórica, especialmente no Brasil de Bolsonaro. O bolsonarismo é um movimento que defende a eliminação violenta de esquerdistas. Nos EUA, com Trump, vimos o uso deste tipo de linguagem, não apenas contra os movimentos negros nos EUA, mas contra a ameaça da China. Isto funciona e acho que não vai desaparecer, mas vimos desde o final da Guerra Fria uma multiplicação de fatores ideológicos que podem ser usados para explicar as intervenções estrangeiras flagrantes.
Mas o método Jacarta não está a ser usado hoje ou está?
Digo sempre duas coisas sobre isto. Quando um método como este funciona, eles não o deitam foram. E é sempre um erro pensar que algo que aconteceu no passado não pode acontecer outra vez. É precisamente isso que as pessoas me disseram no Chile. Os chilenos disseram: "quando o Allende foi eleito, pensávamos que aquele tipo de situação que tinha acontecido na Guatemala já não acontecia. Eu achava que golpes violentos eram algo do passado. Pensámos. Isto é o Chile, estes são os anos 1970. Isso não acontece". Por isso acho que é sempre um erro acreditar que algo desapareceu para sempre ou isso pode regressar. Mas também digo que, com o final da Guerra Fria, vemos um alargamento dos mecanismos que podem ser usados pelo governo norte-americano para moldar os resultados, especialmente no sul global. Vemos mais pessoas afetadas hoje em dia por sanções do que provavelmente por programas com esquadrões da morte, apesar de haver esquadrões da morte a funcionar em redor do mundo. Se alguém morre de fome por causa das sanções impostas ao seu país ou um bloqueio do estilo que vimos no Iémen, isso não é menos morte.
Não significa que haja esquadrões a matar pessoas, as políticas que implementam podem matar...
As sanções podem matar e os esquadrões de morte também ser usados no momento final. Porque como vimos em Jacarta, o uso de massacres em massa não foi a primeira coisa que tentaram. Não queriam ter que recorrer a isso. Estavam dispostos a fazê-lo, mas a primeira coisa que tentaram foi financiar um partido de extrema-direita, a segunda foi tentar fomentar um conflito interno...
Quando fala disso vem-me à cabeça a Venezuela...
Em 2019 eles tentaram um golpe. É estranho que as pessoas fiquem chateadas quando digo isto, porque eles estavam a dizê-lo. [O senador republicano] Marco Rubio foi claro a dizer que estavam a tentar derrubar Maduro. Este é o verdadeiro superpoder que a agência clandestina da maior potência mundial tem. Não há árbitro no sistema global que possa levantar um cartão vermelho e dizer à CIA "estão em problemas". Ninguém fica em problemas se é a CIA. Não há ninguém acima. Na Guatemala eles tentaram três diferentes golpes. Finalmente tiveram sucesso em 1954. [O presidente] Jacobo Árbenz descobriu o que eles iam fazer, tentou dizer a todos e não importou. Na Indonésia, tentaram três coisas diferentes. Estes são os privilégios que tens quando és o país mais poderoso do mundo. Não há ninguém para te pôr em problemas se falhares. Outros países, quando violam as regras da ordem internacional, há consequências, normalmente mais se não estão alinhados com o país mais poderoso do mundo. No caso dos EUA eles podem tentar, tentar e tentar novamente.
Mas será que são só os EUA que tentam este tipo de jogadas. A forma como a China, por exemplo, tem investido em África ou na América Latina. Não é também uma forma de neocolonialismo?
Penso que estamos aos poucos a fazer o caminho de uma ordem mundial unipolar para uma ordem mundial multipolar. Podemos pensar formas de esta ser melhor e deixar mais espaço aberto para mais experiências e para mais estados soberanos forjarem as suas próprias políticas. Também podemos imaginar um sistema que é ainda pior do que o que tínhamos no século XX. Por isso acho que é muito importante prestar atenção à forma como se comporta cada ator principal. Os únicos dois países neste momento que têm a capacidade de fazer frente à ordem global são a China, principalmente pela sua ascensão, e a Rússia, pelo seu declínio. Está a atacar para tentar manter a influência que costumava ter. É muito importante prestar atenção às formas como os grandes atores geopolíticos estão a tentar afirmar a sua influência à volta do mundo. Porque os EUA são menos poderosos do que costumavam ser, mas ainda são, de longe, o país mais poderoso do mundo. Não há outro país que esteja sequer perto em poder económico e militar.
E no meio de tudo isto, a União Europeia, conta para alguma coisa?
Penso que essas são as palavras perfeitas. No meio. Está no meio. Apesar de algumas tentativas de afirmar algum protagonismo, tem tendência a ficar no meio de tudo.
A ler o livro fica claro que o poder dos EUA vinha de estar unido contra uma ideologia, o comunismo, enquanto no campo comunista havia divisão.
No mundo ocidental ouvia-se muito falar no século XX da conspiração internacional comunista. O que acho que fica claro é que havia uma mais coerente rede global anticomunista. Havia redes formais e informais que permitiam ao movimento anticomunista global nos EUA, não como o seu único participante, mas como o mais poderoso, agir de formas concertadas. Vimos pessoas a mudar-se do Sudeste Asiático para a Guatemala, para a Coreia, atravessar o mundo, e agir de formas que muitas vezes eram mais coerentes do que o movimento internacional comunista. O outro lado tinha mais recursos para fazer uma coordenação global.
susana.f.salvador@dn.pt