Na fronteira, para turista ver, não há sinal de tensão entre as duas Coreias

Coreia do Norte e Coreia do Sul ainda estão tecnicamente em guerra e a retórica tem subido de tom, com os testes de mísseis de Pyongyang e os exercícios militares de Seul. Mas isso não impede o desenvolvimento turístico da região fronteiriça, pelo menos a sul da ​​​​​​​DMZ.

O autocarro com jornalistas vindos dos quatro cantos do mundo para num posto de controlo para os militares sul-coreanos poderem verificar os passaportes. A fronteira entre as duas Coreias, de 250 quilómetros de comprimento, pode ser uma zona desmilitarizada (DMZ) com cerca de quatro quilómetros de largura, mas até lá chegar é preciso passar por uma das zonas mais protegidas do mundo e a guia avisa repetidas vezes de que não é sequer permitido tirar fotos a partir das janelas. Num pórtico azul por onde o autocarro irá passar lê-se em letras brancas: "Porta de entrada para a Unificação." Mas esta não é uma mensagem política. Do outro lado fica Tongil-chon, que em coreano significa Aldeia da Unificação.

A península coreana foi dividida ao longo do paralelo 38 após a II Guerra Mundial, que pôs fim a três décadas de domínio colonial japonês, com o conflito entre as duas Coreias a rebentar em 1950. Norte e Sul ainda estão tecnicamente em guerra, tendo o armistício assinado a 27 de julho de 1953 posto fim aos combates, mas não ao conflito. A DMZ foi estabelecida ao longo daquela que era então a linha da frente, ligeiramente na diagonal em relação ao paralelo 38.

Quase 70 anos depois do armistício, a tensão está de novo em alta, com Pyongyang a testar mais mísseis do que nunca - e os peritos a dizer que se prepara para o primeiro teste nuclear desde 2017. Já Seul, junto com os aliados norte-americanos e até os velhos inimigos japoneses, reforça a cooperação e os exercícios militares, preparando-se para responder a qualquer ação do regime de Kim Jong-un.

Mas essa tensão não se sente em Imjingak, um parque perto de Paju (província de Gyeonggi), a cerca de uma hora de Seul, que é uma das portas de entrada para visitar a DMZ e a zona circundante. Além da roda gigante e de outras atrações típicas de um parque de diversões, é possível cruzar o rio Imjin num teleférico - a Gôndola da Paz - para chegar ao Camp Greaves, a antiga base militar norte-americana que foi abandonada em 2004 e devolvida aos sul-coreanos em 2007, tendo sido entretanto transformada em local turístico. Fica a apenas dois quilómetros da linha limite sul da DMZ.

No Camp Greaves há edifícios que estão como que parados no tempo, mostrando como era o quartel dos oficiais norte-americanos, enquanto outros foram transformados em galerias de arte e há até um albergue da juventude. A antiga pista de bowling é agora um museu, onde está atualmente patente a exposição Retratos dos Dias da Nossa Juventude, que conta histórias dos militares das Nações Unidas que foram destacados para ajudar o Sul a repelir a invasão do Norte, assim como dos correspondentes de guerra e estudantes que se tornaram soldados.

"Querida mãe, eu matei dez", lê-se no início de uma carta particularmente comovente, escrita por um deles, Woo-Guen Lee, que conta como usou uma granada de mão e matou os "inimigos, que também eram humanos", num "piscar de olhos" e questiona porque é que tem que lutar. "Não! Eles estão a vir de novo. Continuo esta carta depois. Mãe, adeus. Não, não digo adeus, volto a escrever", conclui a missiva. O jovem de 16 anos morreu no dia seguinte, tendo a carta sido encontrada dentro de um diário entre as suas roupas.

"Pali, pali", diz a guia sul-coreana. Rápido, rápido. O tempo é curto e o próximo ponto de paragem é o observatório Dora, no topo do monte Dorasan. Dali podemos olhar finalmente para o "inimigo". Estamos a 1,5 quilómetros da linha sul da DMZ e é o mais perto que iremos estar da Coreia do Norte, uma vez que estão suspensas as visitas turísticas a Panmunjom. Não foi a tensão entre as duas Coreias, mas a pandemia, que fechou aos visitantes a Área de Segurança Conjunta, onde basta um passo para entrar no país de Kim Jong-un.

Local emblemático, com os seus edifícios azuis, foi ali que foi assinado o armistício em 1953 - uma mesa estava na Coreia do Norte e outra na Coreia do Sul. E foi lá onde, a 30 de junho de 2019, o então presidente norte-americano, Donald Trump, e o homólogo sul-coreano, Moon Jae-in, se encontraram com o líder norte-coreano. E Trump deu aquele passo para ser o primeiro presidente dos EUA a pisar a Coreia do Norte.

No auditório no observatório Dora, a parede de vidro convida a olhar para a DMZ e para um dos países mais fechados do mundo. Um soldado sul-coreano vai indicando os pontos mais importantes. À esquerda vê-se a estrada, agora vazia, que foi construída para transportar materiais para o Complexo Industrial Kaesong, visível no lado norte-coreano. Foi um raro exemplo da cooperação entre os dois países, com as empresas sul-coreanas a terem acesso à mão de obra mais barata do Norte (ainda assim os salários eram muito superiores ao normal para Pyongyang) e o regime norte-coreano a aproveitar a entrada de divisas estrangeiras. O complexo funcionou entre 2004 e 2016 e chegou a empregar mais de 53 mil trabalhadores, que viviam principalmente na cidade de Kaesong - também visível.

A natureza não tem fronteiras e, exceto uma parte da estrada de terra batida, ao lado de uma cerca de arame farpado e de postos de controlo a poucos metros de distância uns dos outros, é difícil perceber onde é a DMZ e onde começa a Coreia do Norte. As montanhas ao fundo são dela, até porque está ali a torre que baralha o sinal de rádio e televisão vindo do Sul e que impede que os canais e rádios sul-coreanas sejam ouvidas para lá da fronteira.

As bandeiras, que com os binóculos no último andar do observatório é possível ver mais de perto, ajudam às delimitações, mesmo se estão ambas dentro da zona desmilitarizada. A da Coreia do Norte, que pesa mais de 200 quilos e ondeia a 160 metros de altura, já foi a mais alta do mundo. Fica em Kijong-dong, a "Aldeia da Paz", mais conhecida como "Aldeia da Propaganda" pelos sul-coreanos. A pouco mais de dois quilómetros fica a outra única aldeia da DMZ, mas do lado sul-coreano, Daeseong-dong. A bandeira da Coreia do Sul não chega aos 100 metros de altura.

Em Daeseong-dong vivem, em condições especiais, menos de 200 pessoas. Não pagam impostos e aqueles que lá nascem não têm que cumprir o serviço militar obrigatório (cerca de dois anos para os homens na Coreia do Sul - do outro lado da fronteira tanto homens como mulheres cumprem cerca de sete anos). Mas vivem com recolher obrigatório, que é verificado diariamente pelos soldados sul-coreanos. Os habitantes dedicam-se principalmente à agricultura - a soja produzida dentro da DMZ e da zona de controlo civil é especialmente apreciada, sendo parte integrante do tofu que foi a estrela do menu do almoço em Tongil-chon - a Aldeia da Unificação.

A pandemia interrompeu os planos de desenvolvimento turístico da região, que agora parece estar aos poucos a recuperar. Ainda não abriu, por exemplo, a estação de comboio de Dorasan. A última da linha que vem de Seul e segue para a Coreia do Norte, que alguns esperam um dia poder ser a primeira da Coreia do Sul para quem chegar do outro lado da fronteira. Junto ao antigo observatório, ligeiramente abaixo do novo, que abriu em 2019, eram também visíveis alguns militares a fazer algumas reparações, nomeadamente junto a uma antiga loja de recordações.

Apesar da calma, a ideia da guerra (mesmo que apenas na História) está por todo o lado, desde as exposições às homenagens nos diferentes parques ou monumentos. Mas não é só na fronteira que esta está presente. Na cidade de Busan, último reduto da resistência sul-coreana no Sudeste da península, está o Cemitério Memorial das Nações Unidas na Coreia.

Depois de as tropas de Kim Il-sung (avô do atual líder norte-coreano) terem invadido a Coreia do Sul a 25 de junho de 1950, o avanço foi rápido até Seul. Estavam mais bem preparadas (os sul-coreanos nem tinham tanques, por exemplo) e contavam com o apoio soviético. Em resposta, as Nações Unidas decidiram enviar tropas sob comando dos EUA. A votação no Conselho de Segurança passou sem vetos, porque a China era então representada pela República da China (isto é, Taiwan) e a União Soviética boicotou os trabalhos precisamente porque a representante não era a República Popular da China.

O porto de Busan serviu de porta de entrada para as tropas da ONU, tendo um total de 16 países enviado pessoal de combate e outros seis ajuda médica. No cemitério estão sepultadas 2319 pessoas de 11 países, com os sul-coreanos a não esquecer a preciosa ajuda que receberam. Dois representantes desses 11 países, uma jornalista turca e um tailandês do grupo que visitou o país a convite da Associação de Jornalistas da Coreia do Sul, colocaram uma coroa de flores, numa cerimónia oficial no dia da visita, tendo havido também um minuto de silêncio em homenagem.

As forças da ONU eram lideradas pelo general norte-americano Douglas MacArthur, um dos arquitetos do desembarque de Incheon - o Dia D da Coreia. A cidade nos arredores de Seul que atualmente é a porta de entrada da maioria dos visitantes do país - é lá que se situa o aeroporto internacional - fica numa zona onde as marés são muito pronunciadas. O desembarque anfíbio era considerado arriscado, mas foi um sucesso em setembro de 1950, permitindo cortar as rotas de abastecimento do Norte e recuperar o controlo de Seul.

Foi o início da reviravolta, com as tropas sul-coreanas a acabarem por entrar na Coreia do Norte, a ocupar Pyongyang e a aproximar-se da China. Isso levou Pequim a agir, enviando as suas tropas e permitindo dar de novo a volta à situação. Os combates acabariam por estagnar na zona da atual fronteira até à assinatura do armistício, em 1953, mas tecnicamente a guerra já dura há 73 anos.

susana.f.salvador@dn.pt

DN viajou a convite da Associação de Jornalistas da Coreia do Sul.

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