Multilateralismo, clima, pandemia. Portugal ao lado de Guterres na agenda global
Multilateralismo, alterações climáticas, ajuda aos países menos desenvolvidos para que se possa debelar a pandemia de covid-19. Os eixos já anunciados por Marcelo Rebelo de Sousa para o discurso que vai proferir esta terça-feira na 76.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas seguem de muito perto as prioridades defendidas pelo secretário-geral da organização, António Guterres, agora a terminar o primeiro mandato e em vésperas de iniciar o segundo. Uma concordância "expectável", numa intervenção que visa também "dar apoio" ao líder máximo da ONU.
Para Victor Ângelo, consultor e colunista, e o mais antigo alto funcionário português da ONU, esta é, aliás, uma das preocupações centrais de Marcelo Rebelo de Sousa.
"Julgo que o Presidente da República vai este ano a Nova Iorque fundamentalmente para demonstrar o seu apoio ao secretário-geral da ONU. E é fundamental que o faça porque isso pesa, e porque o secretário-geral bem precisa desse apoio, para este segundo mandato, que é muito importante", diz ao DN. Esta será a quarta vez que Marcelo Rebelo de Sousa discursa no encontro anual dos chefes de Estado e de governo dos 193 Estados- membros das Nações Unidas, uma presença coincidente com momentos decisivos para Guterres. Já foi assim em 2016 quando, a um mês da eleição do novo secretário-geral, o Presidente da República foi a Nova Iorque defender que o novo líder da ONU devia ser "um congregador de espíritos e de vontades". Há menos de três meses, Marcelo esteve na sede das Nações, quando António Guterres prestou juramento para um segundo mandato de cinco anos como secretário-geral (que começará no início de 2022). Pelo meio, Marcelo marcou presença nas assembleias gerais da ONU em 2018 e 2019. Em 2017 e 2020 a intervenção coube ao primeiro-ministro, António Costa.
Francisco Seixas da Costa não precisa de ouvir o discurso de Marcelo para saber que se centrará nas linhas mestras da política externa portuguesa. "A intervenção resulta sempre de um acordo, nem diria implícito, mas explícito, com o Governo. É a voz de Portugal que, uma vez por ano, ali se projeta, algo que é articulado com o Governo, talvez mais do que em qualquer outra dimensão externa" , diz o diplomata, que foi representante permanente de Portugal junto das Nações Unidas entre 2001 e 2002. E "não é por acaso que essa postura segue um pouco aquilo que é a agenda de António Guterres: é uma "forma de Portugal manifestar a sua solidariedade com a agenda do secretário-geral", uma convergência que tem uma base objetiva, de que é exemplo a defesa do multilateralismo, "linha de fundo de sempre da nossa política externa".
Que temas deverão marcar esta 76.ª Assembleia-Geral da ONU, que decorrerá num formato híbrido, depois da versão virtual do ano passado? "Um dos grandes temas que vai certamente estar em cima da mesa, para além da pandemia, é a questão climática, na medida em que temos a COP 26 à porta", antecipa Victor Ângelo. Outro grande tema "não pode deixar de ser a pandemia e o facto de uma parte importante da população mundial não ter acesso às vacinas, o que é, aliás, uma das grandes preocupações do secretário-geral ". Curiosamente, a intervenção de abertura caberá a um cético da vacinação, Jair Bolsonaro, mas essa é uma contingência do protocolo - "ninguém o vai ouvir", diz Victor Ângelo, prevendo que ao longo desta semana serão também visíveis as tensões Estados Unidos/China e, fruto do recente acordo tecnológico e militar entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido, também entre os Estados Unidos e a França.
Há um lado menos conhecido daquele que é o maior palco da diplomacia mundial, que se traduz nos inúmeros contactos bilaterais entre os vários Estados membros. "São centenas, milhares de contactos bilaterais que se fazem à margem da Assembleia Geral , em instalações que as própria Nações Unidas fornecem, umas estruturas divididas por tabiques, para conversas de 10, 15 minutos. São horas naquilo. Mas são contactos muitos importantes, momentos de diálogo que resolvem problemas", sublinha o diplomata.
Hoje, após a sua intervenção, o Presidente da República tem agendados encontros bilaterais com os seus homólogos do Peru, da República Democrática do Congo, da Guatemala e do Gana, bem como com Ibrahim Mohamed Solih, Presidente da República das Maldivas, um dos países mais ameaçados pela subida do nível das águas do mar. Um encontro que Marcelo inseriu no objetivo de fazer "todos confluírem em Lisboa" na Conferência dos Oceanos de 2022.
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, abre esta terça-feira as intervenções da 76ª Assembleia-Geral da ONU - um lugar que cabe sempre ao Brasil, um preceito protocolar que remonta aos anos 50 do século passado (e só quebrada em 1983 e 1984). Bolsonaro tem a particularidade de ser um dos poucos chefes de Estado presentes que não foi vacinado, o que chegou a levantar dúvidas sobre a presença do líder brasileiro no encontro, já que a cidade de Nova Iorque exige comprovativo de vacinação para circular em espaços públicos fechados. Mas, de acordo com a BBC, os serviços das Nações Unidas acabaram por informar as comitivas de que haveria uma exceção diplomática para o encontro anual da organização. Ainda segundo a BBC, Bolsonaro é o único líder dos países do G-20 (que reúne as 19 economias mais fortes do mundo e a União Europeia) que declaradamente não se vacinou. Este será o terceiro discurso do atual presidente brasileiro numa assembleia-geral da ONU. Neste primeiro dia, além do Brasil e Portugal, farão também intervenções os representantes da Turquia, México, Polónia ou Coreia do Sul.
Depois do encontro virtual do ano passado, em que os chefes de Estado e de Governo foram convidados a enviar mensagens gravadas, a Assembleia Geral da ONU volta a reunir presencialmente (embora alguns países, cerca de um terço segundo as agências internacionais, tenham ainda optado pela participação virtual). Mas há ausências de peso a assinalar em Nova Iorque. Xi Jinping, presidente da República Popular da China, não falará na Assembleia Geral da ONU. O mesmo sucede com Vladimir Putin: o presidente da Rússia também delegou a sua intervenção. O presidente francês, Emmanuel Macron, não está em Nova Iorque nem enviará uma intervenção em vídeo. O discurso caberá ao ministro dos Negócios Estrangeiros, no que pode ser lido como mais um sinal da ira francesa com o AUKUS, o acordo tecnológico e militar firmado na passada semana entre a Austrália, os EUA e o Reino Unido, e que fez os australianos romper um contrato de 31 mil milhões de euros com a indústria naval francesa, que visava a construção de submarinos. Outro ausente é o novo presidente iraniano, Ebrahim Raisi.
Esta Assembleia-Geral das Nações Unidas marca a estreia de Joe Biden neste fórum. Após a presidência de Donald Trump, que durante o seu mandato apostou na secundarização deste organismo, Biden volta a colocar os Estados Unidos - o maior financiador da ONU - no seu papel tradicional. Mas a intervenção do presidente norte-americano acaba por ocorrer num contexto difícil, depois da dramática saída do Afeganistão, deixando os talibãs novamente no poder. E, nos últimos dias, com a tensão com a França, o mais antigo aliado dos EUA. Ainda assim, ou também por isso, a intervenção dos Estados Unidos - que é sempre um dos momentos mais marcantes do encontro em Nova Iorque - é aguardada com particular expectativa. Biden será o segundo chefe de Estado a discursar, logo depois de Bolsonaro.
As alterações climáticas serão um dos temas em cima da mesa e com a COP26 (a 26.ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU) à porta, as Nações Unidas e o Governo britânico exortaram ontem os países ricos a um esforço financeiro maior na luta contra as alterações climáticas, numa reunião prévia ao encontro que se realizará em finais de outubro, início de novembro, em Glasgow, na Escócia. "Os países desenvolvidos têm que assumir a liderança", disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, depois de reunir-se em privado com cerca de 40 líderes mundiais para advertir que existe "um alto risco de fracasso" na cimeira climática de Glasgow. Também o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que se declarou "cada vez mais frustrado" com a falta de avanços em matéria climática, apelou aos países mais ricos para que cumpram o compromisso de alocar os prometidos 100 mil milhões de dólares (mais de 85.200 milhões de euros) por ano para financiar a luta contra as ações climáticas nos países em desenvolvimento.
Com Lusa