“Merkel restabeleceu a crença na Alemanha como um parceiro internacional fiável e amigável”
Foto: Leonardo Negrão

“Merkel restabeleceu a crença na Alemanha como um parceiro internacional fiável e amigável”

Peter Altmaier foi ministro alemão durante 9 anos, os últimos três dos quais com a pasta da Economia, e acredita que o novo chanceler Friedrich Merz faz bem em investir forte na indústria de Defesa.
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O político democrata-cristão Peter Altmaier esteve em Lisboa para o Encontro Triângulo Estratégico, organizado pelo IPDAL com o apoio da Fundação Konrad Adenauer.

Quais são as suas perspetivas para este governo, liderado pelo chanceler Friedrich Merz, de coligação da CDU-CSU com o SPD? Tecnicamente, esta já não é uma Grande Coligação, pois o SPD agora é o terceiro partido alemão.

Não, já não é uma Grande Coligação. Isso é verdade, mas era a única coligação possível, dado o facto de a Alemanha ter sido afetada por movimentos populistas de direita e de esquerda nos últimos anos. Tivemos a época da chanceler Angela Merkel, que durou 16 anos e, desses 16 anos, em 12 nós, democratas-cristãos, estivemos também numa grande coligação com sociais-democratas. Creio que hoje o mais apropriado é tranquilizar a Europa de que a Alemanha ainda é um país fiável, que a Alemanha é um país que pode tomar as decisões necessárias para desbloquear o crescimento económico e a prosperidade. Temos estado numa estagnação, ou mesmo numa ligeira recessão, nos últimos três anos na Alemanha, e isso afetou muitos países, até mesmo algumas empresas em Portugal, porque esses países estavam tão intimamente interligados com empresas alemãs, que já não tinham as mesmas taxas de crescimento esperadas. Temos de garantir que a Alemanha é um parceiro político fiável, mas também uma economia forte, que possa, juntamente com outros países europeus, produzir uma nova dinâmica económica de que precisamos muito para superar os desafios da transformação climática, mas também os desafios sociais e as perspetivas para a nossa geração mais jovem. Friedrich Merz foi criticado pelos nossos meios de comunicação social antes das eleições por algumas das suas manobras, mas devo dizer que, já enquanto chanceler, fez muitas coisas certas e apropriadas depois das eleições. Decidimos, por exemplo, aliviar o travão da dívida alemã. Isto significa que poderemos gastar mais recursos militares na NATO e em apoio da Ucrânia, se necessário. Isto significa também que poderemos investir mais em infraestruturas, Educação e outras áreas, e esta é também uma boa perspetiva para os nossos parceiros europeus.

Como referiu, há uma tradição de coligações entre estes dois grandes partidos, mas quando se olha para o SPD, hoje, está no nível historicamente mínimo. É possível a CDU-CSU ter um programa comum com o SPD?

Depende um pouco do entendimento pessoal, da química entre Friedrich Merz, o chanceler, e o seu vice-chanceler, o ministro das Finanças Lars Klingbeil. Acredito firmemente que os sociais-democratas diminuíram de quase 40%, durante a era de Gerhard Schrö- der, há cerca de 25 anos, para 16% agora, porque não compreenderam as suas bases tradicionais. As suas bases tradicionais são os trabalhadores manuais, as pessoas do setor dos serviços, e estas pessoas que querem ter uma perspetiva de carreira profissional. E um nível de vida mais elevado. Em vez disso, concentraram-se e focaram-se apenas no alívio, apoio e assistência aos desempregados e às pessoas que necessitam de assistência social. Assim, a minha esperança é de que os compromissos que terão de ser firmados entre os sociais-democratas e os democratas-cristãos não sejam de mínimo denominador comum, mas que veremos compromissos fortes, com ambos os lados a implementar partes importantes dos seus programas. O programa do meu partido é a recuperação económica. O programa do meu partido é o compromisso europeu e da NATO. O programa do meu partido é a cooperação internacional. E penso que esta é a parte, aliás, em que a liderança social-democrata de hoje, por exemplo, o ministro da Defesa Pistorius, Boris Pistorius, concordará plenamente. E os desafios neste domínio são enormes, dadas as escaladas militares. E a segunda coisa é que, dentro da NATO, enfrentamos um enorme desafio de aumentar os nossos Orçamentos de Defesa nos países europeus. E esta é uma área em que a Alemanha terá de provar que o compromisso é honesto.

Quando olhamos para este forte investimento na Defesa, vemos uma oportunidade para a indústria alemã. É possível, em vez de produzir tantos automóveis ou maquinaria industrial, investir fortemente na produção industrial ligada à Defesa? É uma oportunidade para a indústria alemã?

Sim, acredito que, se queremos ajudar não só a Alemanha, mas todos os nossos amigos e vizinhos na Europa, precisamos de uma recuperação industrial do nosso país. A Alemanha sempre teve a maior quota de produção de valor nas indústrias da União Europeia. E isto tem estado sob pressão, recentemente, por causa do aumento extremamente elevado dos preços no setor energético. E temos partes importantes da nossa indústria que exigem muita energia e enfrentam intensa competição. Indústrias como a química, a de fabrico de automóveis e a siderúrgica. E já temos, no acordo de coligação, um compromisso de reduzir o preço da electricidade e os preços da energia para estas empresas. Isto irá ajudá-las a recuperar. E também as ajudará a recuperar se agora estivermos preparados para investir mais no equipamento militar das forças armadas alemãs, o que é preciso para ser reconhecido como preparado para os desafios. Sempre tivemos uma forte indústria de defesa com muitas competências, mas que foram questionadas nos últimos anos por pessoas do Partido Social Democrata e do Partido Verde, que eram contra qualquer tipo de armamento. Mas creio que isso já não é o caso. Essa é uma boa notícia. E a segunda coisa é que temos de ter a certeza de que podemos proteger os nossos vizinhos da Europa de Leste e outros contra agressões de quem quer que seja. E é por isso que precisamos de uma indústria de defesa mais forte. O que também precisamos de perceber é que a indústria de defesa também está a mudar e a desenvolver-se. Hoje em dia, é muito mais importante produzir drones excelentes e armas alimentadas por IA em vez dos tanques tradicionais. Mas felizmente as nossas empresas, como a Rheinmetall e outras, estão bem preparadas neste campo.

Em termos de política externa, o chanceler Merz é fortemente contra a Rússia e apoia a Ucrânia. Isso também é algo consensual no governo?

Até agora é consensual no governo, sim. E de acordo com a nossa Constituição, o chanceler tem o direito de decidir sobre os princípios básicos da política. Chama-se Richtlinienkompetenz, em alemão. E a minha impressão é que a abordagem algo vaga do antigo governo, em que Olaf Scholz era chanceler, mudou agora para uma abordagem mais decidida. E, até agora, o Partido Social-Democrata não se opõe a isso. O Partido Verde apoia. Isso é novo, nunca foi assim nos últimos 40 anos. E, no geral, isto significa que temos a oportunidade de desenvolver uma abordagem política coerente a nível da União Europeia, envolvendo todos os nossos parceiros na NATO e na UE. Quando digo NATO, refiro-me explicitamente ao Reino Unido, porque o Reino Unido não só tem muitas capacidades militares e de Defesa, como é um pilar importante da NATO. E isso tranquilizará, aliás, também um grande número de investidores que procuram refúgios seguros, numa altura em que as políticas económicas americanas se estão a tornar mais erráticas, como temos visto nas últimas semanas.

Como é a relação entre o chanceler Merz e o presidente americano Donald Trump?

Até agora tiveram alguns telefonemas. Eu diria que estas chamadas correram bem. Mas não é, em primeiro lugar, uma questão de relação pessoal. Por exemplo, Donald Trump tinha, como sempre expressou, uma química muito boa com o presidente francês, Emmanuel Macron. E Friedrich Merz disse: “Vou ter uma boa química com Donald Trump.” Isto antes de ser eleito chanceler. Mas o que temos visto, nos últimos meses e semanas, é exatamente que não é só a química que importa, mas as políticas concretas que se estão a implementar. E as políticas implementadas pelo governo americano parecem já não respeitar plenamente os valores comuns consagrados na Carta da NATO e na nossa cooperação transatlântica há mais de 70 anos. E, por isso, creio que hoje temos muito mais unidade entre os países europeus. Esta é a primeira vez, em décadas, que temos uma relação tão boa entre o presidente francês e o primeiro-ministro britânico, mesmo com o Reino Unido fora da União Europeia. É a primeira vez que temos um grande consenso dentro da União Europeia. Portugal faz parte desse consenso e é uma parte importante do mesmo. Não tenho a certeza se a química pessoal, por si só, ajudará a abrir caminho para que as decisões certas sejam tomadas em Washington. Espero que sim. E devemos tentar ser instrumentais no desenvolvimento de uma nova base para uma economia de mercado global e para o comércio livre. Mas não estou convencido de que esta seja ainda a filosofia da Administração Trump.

Falando de novo sobre política interna, a AfD, agora o segundo maior partido, é realmente uma ameaça à democracia alemã?

Bem, antes de mais, devo dizer que sou muito conhecido na Alemanha como alguém tolerante e que tem uma boa relação com outros partidos políticos. Sou democrata-cristão há quase 50 anos, mas sempre tive uma boa relação pessoal com pessoas do Partido Verde, do Partido Liberal e do Partido Social-Democrata. A AfD é diferente. Não só porque a AfD, e também o antigo partido comunista Die Linke, estão a defender mais ou menos Vladimir Putin na sua agressão contra a Ucrânia. Estes dois partidos são, em grande parte, contra a NATO e a UE, mas, o que é ainda mais importante, no início, quando a AfD foi eleita e passou a fazer parte do Parlamento alemão pela primeira vez, em 2017, havia alguma esperança de que este partido pudesse desenvolver-se e crescer numa direção que eu diria ser um conservadorismo de direita. Isso teria deixado opções em aberto. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário: a AfD não traçou uma linha clara entre o perfil do partido e o extremismo de direita. E, dentro do partido, há ainda um enorme número de pessoas que já não deixam claro que existe uma barreira absoluta contra a ideologia nazi. O repúdio da pior parte daHistória alemã, entre 1933 e 1945.

Daí a linha vermelha, a recusa de qualquer negociação com a AfD?

A linha vermelha é a opção correta. É a opção correta enquanto a AfD não for capaz de traçar uma barreira clara entre o extremismo de direita, de um lado, e o populismo conservador, do outro. Hoje em dia isso não acontece. Têm muitos membros que estão a tentar atrair eleitores de extrema-direita. E isso não é aceitável, nem tolerável. E, já agora, se retirássemos hoje essa linha vermelha, isso prejudicaria não só a imagem da Alemanha, mas também a posição política e económica do país na Europa e no mundo.

Uma última questão. O que pensa do legado da chanceler Merkel? O senhor foi ministro dela nove anos.

O legado de Angela Merkel foi, antes de mais, um claro compromisso com a cooperação internacional. E não apenas no âmbito da NATO e da UE, pois ela estendeu também a mão aos países africanos. E alcançou os países asiáticos com muito sucesso. E acho que isso vai durar. A segunda coisa que foi muito importante foi que Angela Merkel restabeleceu a crença na Alemanha como um parceiro internacional fiável e amigável em todo o mundo. Tenho agora 67 anos e nunca testemunhei um período da História alemã em que a imagem da Alemanha tenha sido tão positiva. E isso deve-se a Angela Merkel. Em quase todas as partes do mundo, na China, em África, na Austrália, no Canadá, onde quer que seja. E o último ponto é que ela sempre foi uma pessoa modesta. E ela sempre disse que uma boa política e uma política moderada são muito mais importantes do que o perfil pessoal do chefe de Estado ou do governo.

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