Meloni "soube ler o eleitorado" e já não há medo do "papão fascista"

Os italianos vão este domingo às urnas com as sondagens a darem a vitória ao centro-direita e a abrir a porta, pela primeira vez, a que haja uma mulher na chefia do governo. Investigadores italianos radicados em Portugal falaram ao DN sobre as eleições.

A líder dos Irmãos de Itália, Giorgia Meloni, é a favorita à vitória nas legislativas deste domingo, desejando tornar-se na primeira mulher na chefia do governo italiano. Aos 45 anos, pode parecer que a sua ascensão foi fulminante, mas é fruto de um trabalho que tem vindo a desenvolver há anos, tendo também beneficiado das falhas dos adversários. A esquerda achou que alertar para o perigo do "papão fascista" era suficiente, mas segundo dois investigadores italianos radicados em Portugal, isso já não mete medo em Itália. Mas será que ainda há espaço para surpresas?

"A capacidade que Meloni teve de ler o eleitorado e captar a sua cultura política, percebendo que havia espaço à direita para lá das suas raízes neo e pós-fascistas, assim como a capacidade de esperar, de ser coerente ao dizer "não" [ao governo de união de Mario Draghi] e insistir no seu projeto político sem ceder, está agora a dar frutos", disse ao DN o investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE Riccardo Marchi, que tem vários livros sobre a direita portuguesa (o último é A Bolha).

Além desse trabalho de Meloni, o investigador italiano radicado há mais de 20 anos em Portugal aponta o dedo ao fracasso da campanha do principal adversário no centro-esquerda, o Partido Democrático (PD). "Enrico Letta não é particularmente carismático e, na minha opinião, fez a campanha de forma errada, dizendo "vem aí de novo o fascismo" quando isso em Itália já não funciona", referiu. "Já não há o papão fascista", explicou, até porque o Movimento Social Italiano e depois a Aliança Nacional, partidos nos quais Meloni militou, há anos que fazem parte do governo.

A mesma opinião é partilhada por Goffredo Adinolfi, investigador de Ciência Política também no ISCTE, em Portugal desde 2005. "O PD, na sua incapacidade de ouvir o que os eleitores já estão a pedir há quase uma década, manteve as mesmas políticas e está convencido que chamar a atenção para o perigo fascista era suficiente para os italianos votarem nele", contou. "Mas depois de tantos anos, com a situação dramática que se vive agora determinada pela guerra e o preço da energia, o recurso à ideia do perigo fascista já não está a funcionar como antes", acrescentou.

Os Irmãos de Itália, que em 2018 não foram além dos 4,4% nas urnas, surgem nas últimas sondagens com 25% das intenções de voto. Os números foram conhecidos a 10 de setembro, sendo proibido divulgar sondagens nas últimas duas semanas de campanha. O partido de Meloni lidera o campo do centro-direita onde estão também a Liga, de Matteo Salvini (12%), e a Força Itália, se Silvio Berlusconi (8%).

O acordo entre os três não é uma novidade na política italiana. Mas desta vez, mais do que uma aliança de centro-direita, estamos diante de uma de "direita-centro", referiu Marchi. Se em 2018 já havia uma Força Itália em queda, agora esta está ainda mais acentuada - com saídas de importantes nomes femininos. Além disso, a própria Liga, que nos últimos anos participou em vários governos, está em declínio. "É a primeira vez que a direita radical italiana, de cariz fascista, tem uma relação de forças superior aos parceiros", disse Marchi.

Em altura de guerra na Ucrânia, a maior diferença entre Meloni e Salvini é em política internacional. A líder dos Irmãos de Itália, conservadores nos valores, liberais na economia mas atentos à vertente social, condenou desde o início a invasão de Vladimir Putin. Além disso apoiou as sanções internacionais e reiterou o seu compromisso com a Aliança Atlântica, apesar do seu cunho soberanista. Por seu lado, o líder da Liga sempre foi próximo do presidente russo - apesar de não chegar ao nível de amizade que este tem com Berlusconi - e apesar de ter condenado a invasão, critica as sanções.

Há também diferenças entre os dois partidos em questões económicas ou até de reformas institucionais, com Meloni a ser a favor do presidencialismo e a Liga, com as suas origens no norte, a defender maior autonomia regional. Em matéria de migração e refugiados, sempre centrais em Itália, a proposta de Meloni é o "bloqueio naval", que na prática é chegar a acordo com os países de norte de África para travar e avaliar aí o caso de cada pessoa. Já Salvini, ex-ministro do Interior, quer voltar à sua política de proibir desembarques de migrantes no país.

O cansaço dos eleitores com Salvini, nomeadamente com o seu estilo de comunicação muito agressivo, justifica também a passagem de parte dos votos para os Irmãos de Itália, acredita Adinolfi. Apesar das sondagens darem a vitória do centro-direita, "o problema é saber como cada partido ganha ou perde". Segundo Marchi, se Salvini não chegar aos 14% ou 15%, terá a sua liderança em risco. "Há muita gente na Liga que lhe quer fazer a folha, como se costuma dizer". Depois, a própria Meloni já deixou claro que quer ser primeira-ministra, mas "só com 25% ou 27% é que pode bater com o punho na mesa e fazer frente aos parceiros".

Divisões à esquerda

Esta coligação "que é mais de direita do que de centro", nas palavras de Adinolfi, beneficia contudo da divisão no campo da esquerda. O PD de Letta surge com 21%, à frente do Movimento 5 Estrelas (M5E) de Giuseppe Conte, que tem cerca de 13%. A aliança centrista entre o Ação e o Itália Viva, partidos de dois ex-militantes do PD (Carlo Calendaa e Matteo Renzi), com 7%. E há ainda mais outros pequenos partidos.

"Não houve a capacidade de fazer uma frente anti-extrema-direita e isso faz com que a direita possa ganhar com resultados bastante elevados, muito embora não tenham muito mais votos do que a sua tradição. Andam sempre entre os 40% e os 46% dos votos desde sempre", explicou Adinolfi.

Em causa está o sistema eleitoral misto italiano, que é uma mistura entre o proporcional e os círculos uninominais - nestes, ganha o candidato mais votado, independentemente da diferença de votos e sem necessidade de segunda volta. O centro-direita apresenta-se com um candidato em cada círculo, face a um centro-esquerda dividido. "Há o risco de a direita não ter apenas a maioria absoluta, mas uma maioria de dois terços que lhe permita reformar a Constituição", indicou Adinolfi.

Mas ainda pode haver surpresas. Os analistas dizem que o M5E tem vindo a ganhar terreno depois de ter sido conhecida a última sondagem. "O M5E foi o culpado da queda do governo Draghi [foi o primeiro a retirar o seu apoio o que levou a eleições antecipadas] e tinha tudo para que as coisas corressem mal, mas tem conseguido aguentar-se", explicou Marchi. Em plena crise e na expectativa de um 2023 ainda pior, fizeram campanha com a questão do rendimento mínimo garantido, aprovado durante o primeiro governo Conte - quando governaram aliados com a Liga.

"Muitos eleitores italianos, especialmente no sul onde o desemprego é mais elevado, mas realmente em todo o país, acreditam que este pode ser uma boia de salvação. E Conte soube dizer que o M5E é o único que garante a defesa desta medida", disse Marchi. "A campanha eleitoral deles foi bem sucedida. Pode haver um grande salto para a frente do M5E em relação às sondagens de agosto", indicou Adinolfi, alegando que o partido tem procurado colmatar o vazio deixado à esquerda pelo PD, que se aproximou do centro.

Quem é quem?

Os rostos que lideram os partidos que vão hoje a votos não são novos para os italianos, com quatro ex-primeiros-ministros na corrida. A favorita é a única mulher: Giorgia Meloni, devendo os Irmãos de Itália ser os mais votados da coligação de centro-direita. À esquerda, a união é mais complicada, prejudicando as possibilidades do seu principal rival, Enrico Letta, do Partido Democrático.

Giorgia Meloni - Irmãos de Itália
A líder dos Irmãos de Itália, partido de raízes neofascistas que formou em 2012 e que foi o único a não se juntar ao governo de união de Mario Draghi, é a favorita à vitória sob o lema "Deus, pátria e família". Meloni é uma ex-jornalista de 45 anos, está no Parlamento desde 2006 e em 2008 tornou-se na mais jovem ministra de sempre (pasta da Juventude), pelas mãos de Silvio Berlusconi. Em 2018, o partido valia 4,4% e elegeu 32 deputados (em 630). Agora, pode conquistar 25% dos votos e, com o apoio dos aliados de centro-direita, tornar-se na primeira mulher primeira-ministra em Itália.

Matteo Salvini - Liga
O político de 49 anos está desde os 17 na Liga, que lidera há nove anos. Transformou o partido regional, que sob os comandos de Umberto Bossi queria a independência do norte de Itália, num partido nacional sob o lema "italianos primeiro". Nas eleições de 2018, teve 17,4% dos votos e Salvini acabou como ministro do Interior - os imigrantes têm sido o seu grande alvo, além da União Europeia -, alcançando os 34% nas europeias de 2019. Pouco depois, deixou o governo e passou para a oposição, antes de apoiar o executivo de união de Draghi. Agora deverá ficar nos 12%.

Silvio Berlusconi - Força Itália
O milionário ex-primeiro-ministro faz 86 anos na quinta-feira e não parece disposto a abdicar da vida política, apesar dos problemas de saúde. Il Cavaliere chefiou o governo de 1994 a 1995, de 2001 a 2006 e de 2008 a 2011. O líder da Força Itália (que as sondagens dizem que pode ter 8% dos votos) é candidato ao Senado, do qual foi forçado a sair durante quase uma década devido a condenação por fraude fiscal, estando de olho na presidência desta câmara - depois de não ter conseguido chegar à presidência do país. Amizade com o líder russo Vladimir Putin caiu mal em plena guerra na Ucrânia.

Enrico Letta - Partido Democrático

Tem 56 anos e foi, em 1998, com 32, o mais jovem ministro italiano, assumindo a pasta das Políticas Comunitárias, tendo tido depois um longo percurso como deputado. Em abril de 2013, era n.º2 do Partido Democrático (PD, centro-esquerda), quando foi convidado para chefiar um governo de grande coligação. Acabaria derrubado menos de um ano depois por um rival do próprio PD: Matteo Renzi. Em 2015, foi para Paris presidir à Escola de Assuntos Internacionais da Sciences Po, voltando a Itália no ano passado para liderar o PD. Sondagens dizem que poderá chegar aos 21%.

Giuseppe Conte - Movimento 5 Estrelas

O pouco carismático tecnocrata, professor de Direito, nunca tinha sido eleito para um cargo público quando, em 2018, assumiu a chefia do governo. O Movimento 5 Estrelas (M5E, antissistema) tinha ganho as eleições, mas não conseguia governar sozinho, formando uma coligação primeiro com a Liga e depois, quando esta saiu, com o Partido Democrático. A coligação ruiu em 2021 e o independente Conte, de 58 anos, acabaria eleito líder do M5E - que enfrenta divisões, como a saída, para um novo partido, do ex-chefe da diplomacia Luigi di Maio. Nas sondagens, o M5E tem 13%.

Carlos Calenda e Matteo Renzi - Ação e Itália Viva

Dois antigos membros do Partido Democrático, do qual saíram em 2019, formaram as suas próprias formações políticas e surgem nestas eleições unidos numa proposta alternativa de centro, tendo recusado uma aliança com Enrico Letta. Carlo Calenda, eurodeputado e antigo ministro do Desenvolvimento Económico, de 49 anos, lidera o Ação. Já Matteo Renzi, o antigo presidente da câmara de Florença e ex-primeiro-ministro (esteve no cargo de 2014 a 2016), de 47 anos, formou o Itália Viva. Juntos surgem nas sondagens com quase 7% das intenções de voto.

susana.f.salvador@dn.pt

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