Quando a emissão da KCAL News deu o alerta de novas ordens de evacuação, reconheci o centro médico onde tinha ido ao dentista há duas semanas. O fogo que reduziu a cinzas milhares de casas em Pacific Palisades tinha chegado a Brentwood e ao Mandeville Canyon, ameaçando de forma decisiva o Vale de São Fernando. Olhei para o mapa da Watch Duty, uma aplicação sem fins lucrativos que nestes incêndios destrutivos se tornou uma ferramenta essencial para todos os residentes de Los Angeles: a zona de evacuação estava a 10 quilómetros, uma distância que parecia perigosamente curta tendo em conta a intensidade do incêndio em Palisades. Um inferno de chamas que, segundo o chefe dos bombeiros Anthony Marrone, nem dez vezes o número de carros de bombeiros e bocas de incêndio teria conseguido parar.Depois de três dias sem eletricidade, a usar lanternas em casa e baterias portáteis para carregar o telemóvel, a perspetiva de uma evacuação estava cada vez mais próxima. Tinha estado no abrigo de Woodland Hills, a fazer entrevistas, e agora ponderava se tinha de ir para lá dormir com marido e criança de 6 anos.As sirenes, as imagens aéreas das zonas a arder e os relatos desesperados das pessoas que perderam tudo ecoaram nos ecrãs durante dias como uma ameaça permanente. “E se Los Angeles arder toda”, questionei, com uma angústia que nunca tinha sentido em 11 anos a viver nesta cidade, habituada a terramotos e a fogos constantes.Os ventos de Santa Ana são sazonais e costumamos estar prontos para eles, mas nada nos poderia ter preparado para o que vimos na terça-feira à noite. As rajadas de 160km/h deitaram abaixo árvores, dobraram postes ao meio e rebentaram com torres elétricas, espalhando brasas por todo o lado e às vezes a vários quilómetros de distância. Vi sacos cheios de lixo pendurados em altura, arrancados dos caixotes. Vi estradas cortadas e detritos por todo o lado, com uma bruma de cinza a cair como se fosse neve. O cheiro a queimado sufocava a garganta, mesmo a grande distância dos fogos, e o céu parecia dividido em dois: de um lado sol e azul, do outro negro e laranja, com nuvens que pairavam sobre o horizonte, como uma promessa de mais horror. Preparei a mala de evacuação à luz de uma lanterna, tentando seguir os conselhos das autoridades: passaportes, certidões de nascimento, cartões de crédito e débito, comprovativos de seguros, computadores e discos externos, roupa para uma semana, sapatos confortáveis, artigos de higiene pessoal, medicamentos e máscaras para proteger do fumo. Depois também itens insubstituíveis, como fotografias antigas, desenhos infantis, lembranças de família. Olhei em volta com incredulidade: como é que toda uma vida pode caber na mala do carro? Escrevi artigos às escuras, usando o 5G do telemóvel para os enviar. Fui tomar banho a casa de amigos. Recolhi muitas vezes com um bolo na garganta, sentindo ao mesmo tempo medo do que podia vir e sorte por ainda não ter vindo. Com a vida em suspenso, as escolas fechadas e todos os eventos cancelados, o que me impressionou de imediato foi a enorme solidariedade de conhecidos e desconhecidos, numa onda que abraçou as comunidades afetadas. O grupo de portugueses em Los Angeles organizou-se, oferecendo sítios para dormir ou simplesmente tomar banho a quem não tinha água quente. Partilhámos informações, vídeos e anseios, discutimos teorias e desfizemos desinformação - porque uma das primeiras inclinações numa situação destas é vociferar contra as autoridades e o governo ou quem pareça ser responsável pela tragédia. Como é que os bombeiros não conseguem apagar isto? Onde está a água? Onde está a mayor e o governador? Porque não enviam a Guarda Nacional? Onde estão os helicópteros e aviões de combate a incêndios?Mas a água não faltou, apesar de a pressão ter diminuído por causa da intensidade do uso. A mayor, que estava fora do país no dia em que deflagraram os incêndios, voltou rapidamente e pareceu tomar as rédeas da situação. O governador fez uma declaração de emergência e enviou milhares de agentes da Guarda Nacional para ajudar no combate, com apoio incondicional da agência federal FEMA. Os helicópteros não conseguiam circular devido à intensidade dos ventos, que atingiram uma força de furacão de categoria 2. Os aviões de combate enviados pelo Canadá fizeram um trabalho fenomenal a deitar água e a espalhar retardante de fogo nos perímetros mais perigosos, tentando conter os incêndios mortíferos de Palisades e Eaton (em Altadena, perto de Pasadena). Em conversa com um amigo, ponderámos se se estava a tentar encontrar culpa em todo o lado menos no óbvio - que o sul da Califórnia enfrenta uma situação de seca, que as alterações climáticas têm tornado os ventos de Santa Ana cada vez mais violentos, e que o combustível natural da vegetação invasora e do solo sem pinga de água tornam o risco de incêndios descontrolados muito elevado.As origens dos fogos ainda estão a ser investigadas e quando houver mais dados saberemos se há culpa que possa ser atribuída. Mas o que fica por meio dos escombros é a forma como milhares de bombeiros e profissionais de emergência têm lutado dia e noite para salvar vidas, e a enorme solidariedade que os residentes têm demonstrado. Há tantas doações aos centros de ajuda que alguns já pediram às pessoas que não tragam mais roupas, brinquedos e outros itens, porque não há espaço. Há pessoas a tirar folgas para se voluntariarem nas operações de limpeza, que já começaram, ou na ajuda aos deslocados. Arderam 12 mil edifícios e mais de 88 mil pessoas continuam sob ordens de evacuação, o que significa que nos próximos meses muita gente vai precisar de alojamento que não existe - numa cidade que já enfrenta escassez de habitação acessível e rendas a preços exorbitantes. Há 25 mortos confirmados e muito luto para fazer. Perderam-se obras de arte de importância incalculável. Nada será o mesmo.Mas este sentimento de entreajuda e vontade de reconstruir é muito forte. Os edifícios históricos que arderam serão reinventados, as comunidades incineradas vão levantar-se novamente. Los Angeles tem uma vibração única, que normalmente faz as pessoas adorarem ou detestarem a cidade. Eu sou uma das suas maiores fãs. .Los Angeles em alerta vermelho para os ventos fortes que podem complicar combate a incêndios ."Estamos de coração partido". Billy Crystal, Paris Hilton e outras celebridades perderam a casa nos incêndios de Los Angeles