Macron quer seguir adiante, mas os franceses discordam
Sem fim à vista para as manifestações e greves, presidente quer virar a página e retira legitimidade às ruas ao condenar a violência dos extremistas. Já o Conselho da Europa critica a atuação policial.
O Conselho da Europa mostrou a sua preocupação perante um "uso excessivo da força" pelas forças policiais francesas, depois de um dia marcado pela violência nas ruas contra a reforma que eleva a idade da aposentação. O presidente Emmanuel Macron, que se viu forçado a adiar a visita de Carlos III ao país, mostrou-se indiferente à tensão social ao afirmar que "o país não pode ficar parado", enquanto a oposição à esquerda tenta bloquear a iniciativa ao propor um referendo sobre a matéria.
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Emmanuel Macron não quer dar o braço a torcer à pressão das ruas e continua a esperar que até ao fim do ano o aumento a idade da reforma para os 64 anos esteja fixado na lei. "Não cederemos à violência. Em democracia não há direito à violência", afirmou em Bruxelas, aludindo a "ataques desproporcionados por militantes extraordinariamente violentos e equipados".
O chefe de Estado francês, que não acalmou os ânimos numa entrevista televisiva de quarta-feira à noite, reafirmou querer negociar com os sindicatos sobre outros temas e que a reforma irá "prosseguir o seu caminho democrático", isto é ser apreciada pelo Conselho Constitucional. Tal acontecerá a pedido do governo, da aliança de esquerda Nupes e da União Nacional de Marine Le Pen. "Continuamos em frente. O país não pode ficar parado", rematou.
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Emmanuel Macron na conferência de imprensa do Conselho Europeu, em Bruxelas.
© EPA/STEPHANIE LECOCQ
A oposição denuncia estar a fazer-se uma reforma das pensões através de uma lei retificativa do financiamento da segurança social. E os partidos de esquerda pediram ao Conselho Constitucional para apreciar a hipótese de a lei ser sujeita a referendo. Em caso afirmativo, o primeiro passo é recolher 4,7 milhões de assinaturas em nove meses.
Na quinta-feira, os ânimos estiveram exaltados quer entre as fileiras mais radicais dos manifestantes quer entre as forças de segurança. Segundo dados do Ministério do Interior, da mobilização de mais de um milhão de pessoas (3,5 milhões segundo a central sindical CGT) foram detidas 457 pessoas e 441 agentes da ordem ficaram feridos. Não foram divulgados dados sobre os manifestantes feridos pela polícia, mas só em Rouen registaram-se 13, um deles com gravidade.
Perante o barril de pólvora em que o governo de Élisabeth Borne e o presidente Macron estão sentados, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, apontou o dedo a "bandidos frequentemente da extrema-esquerda" que querem "derrubar o Estado, matar polícias e atacar as instituições". Horas depois, em entrevista à CNews, chamou os manifestantes violentos de "black bourges", um jogo de palavras em referência aos extremistas black blocks e aos burgueses.
Os métodos violentos da polícia, porém, estão também à vista e nas redes sociais multiplicam-se os vídeos em que se testemunha o uso desproporcionado da força em manifestantes pacíficos. A isso, Darmanin socorreu-se na mesma entrevista ao argumento de que por estarem "sob a influência do cansaço" alguns agentes policiais "cometam atos que não estão em conformidade".
Segundo o ministro há 11 inquéritos a decorrer pela Inspeção-Geral da Polícia relativos a incidentes ocorridos na última semana. E nestes inquéritos não estará um sobre a atuação de uma controversa brigada de repressão, BRAV-M. O Le Monde revelou uma gravação na qual uma dúzia destes agentes, ao longo de 20 minutos, ameaçam, insultam e humilham sete jovens detidos, enquanto agridem um deles.
Perante os acontecimentos, a comissária dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, criticou o "uso excessivo da força" contra os manifestantes. "Houve incidentes violentos, alguns dos quais visaram a polícia", admitiu a comissária. "Mas os atos esporádicos de violência de alguns manifestantes não podem justificar o uso excessivo da força por agentes do Estado", prosseguiu, "nem estes atos são suficientes para privar os manifestantes pacíficos do gozo do direito à liberdade de reunião".
Prova de como os ânimos estão exaltados, a deputada Aurore Bergé, do partido Renascimento, de Macron, denunciou ter sido alvo de ameaças de morte, tal como o seu bebé de quatro meses.
Moscovo e Teerão aproveitam
Regimes não democráticos como o russo e o iraniano aproveitam-se entretanto da crise francesa para marcar pontos. "Quando é que Macron vai começar a entregar armas aos cidadãos franceses para apoiar a democracia e a soberania do país?", questionou a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros Maria Zakharova. Na Rússia, os canais de televisão - impedidos de difundir qualquer manifestação contra a guerra na Ucrânia - dão grande destaque à atualidade francesa.
A greve dos serviços de recolha do lixo na capital motivou comentários como "em Paris, é a Idade Média, o fedor e as hordas de ratazanas", enquanto informações falsas davam como certo de que a eletricidade tinha sido cortada nas esquadras policiais da capital francesa. Marine Le Pen, a líder da extrema-direita com ligações públicas a Vladimir Putin, tem sido ouvida pelos media russos que denunciam as alegadas lições de democracia do Ocidente. Segundo a France Info, a rádio Sputnik disse que o governo francês apoia as manifestações quando têm lugar na Geórgia, mas não as deseja no seu próprio país.
Já Teerão recorreu ao provérbio "quem semeia ventos colhe tempestades" para comentar o ato de vandalismo à porta da autarquia de Bordéus. "Não apoiamos a destruição nem tumultos, mas defendemos que, em vez de criar o caos noutros países, ouça a voz do seu povo e evite o uso de violência contra ele", aconselhou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão, Nasser Kanani, no Twitter.
Depois, a acompanhar um vídeo da polícia francesa a carregar nos manifestantes, Kanani comentou que "este tipo de violência não tem nada a ver com encostar-se na cátedra das lições de moral e pregar a outros".
O regime xiita aproveitou para rebater as críticas de outros países, incluindo França, pela repressão em resposta ao movimento de revolta iniciado em setembro último, na sequência da morte sob custódia policial da jovem iraniana curda Mahsa Amini, detida por não cumprir as regras de uso do véu islâmico. Desde então registaram-se centenas de mortes, incluindo crianças e jovens, e milhares de detidos, tendo a União Europeia e os Estados Unidos imposto sanções.
P&R
Por que protestam os franceses?
Que medida está em jogo?
A reforma tem como objetivo alinhar França com a média europeia no que respeita à idade de reforma. O trabalhador francês, que se reformava a partir dos 60 anos até 2010, passou a fazê-lo aos 62 anos e agora, a partir de 2030, terá de chegar aos 64. E para obter uma pensão na totalidade terá de ter 43 anos de descontos a partir de 2027. O governo disse que a reforma iria permitir poupanças, tendo alertado que a atual situação iria gerar 150 mil milhões de euros de défices acumulados nos próximos dez anos.
O que levou à crise política?
Qualquer tentativa de reforma no setor público e na segurança social é por norma recebida com contestação pelos franceses. Desta feita, o governo de Élisabeth Borne levou por diante a reforma do sistema de pensões. Estas medidas constavam do programa de Emmanuel Macron e durante o primeiro mandato o governo de Édouard Philippe, que contava com uma maioria parlamentar, apresentou uma reforma mais complexa e que iria elevar a idade da reforma para os 65 anos. Só que aos primeiros protestos apareceu também a pandemia, o que levou o projeto para a gaveta. Entretanto, Macron foi reeleito, tendo mais uma vez anunciado que "as pessoas têm de trabalhar mais tempo". Só que nas eleições parlamentares o seu partido perdeu a maioria. Apesar de ter passado no Senado, a lei não foi a votos na Assembleia Nacional porque não havia uma maioria, ao que o governo, no dia 16, aprovou a medida usando um recurso previsto na Constituição, ao invocar o artigo 49.3 e contornando o parlamento.
Qual foi a reação?
Até aí o movimento de contestação estava a perder gás, mas a jogada caiu muito mal numa opinião pública em que dois em cada três estão contra esta política. Foram votadas duas moções de censura na segunda-feira, tendo o governo ficado a menos de dez deputados de cair. As manifestações e as greves sucedem-se, a violência de manifestantes e de polícias estalou e a situação piorou depois de Macron ter posto em causa a legitimidade das massas, numa entrevista a dois canais de TV.
cesar.avo@dn.pt
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