O aguardado telefonema entre Donald Trump, o líder da maior economia do mundo e referência da extrema-direita mundial, e Lula da Silva, o presidente de um dos BRICS e expoente da esquerda internacional, para tentar desbloquear a crise comercial entre Washington, que decidiu aumentar as tarifas a produtos brasileiros para 50% na última quarta-feira, e Brasília, em turbulência desde essa decisão, afinal não vai acontecer. Ou ficou, apenas, adiado sine die. A conversa chegou a parecer bem encaminhada, ao longo da última semana. “Ele pode ligar quando quiser, vamos ver o que acontece, eu amo o povo brasileiro”, disse o Republicano, em fins de julho. “Sempre estivemos abertos ao diálogo”, começou por dizer o líder, de facto, do Partido dos Trabalhadores, no dia 1. “Eu vou ligar para o Trump a convidá-lo para a COP 30 [conferência da ONU para discussão das mudanças climáticas, na Amazónia, em novembro]”, acrescentou, entretanto, já dia 5. Na noite de dia 6, em entrevista à Reuters, mudou de rota: “No dia em que a minha intuição disser que Trump quer conversar, eu ligo. Hoje, ela diz que ele não quer. E eu não vou me humilhar”, disse Lula, citando, como exemplo, visitas recentes à Casa Branca de Volodymyr Zelensky e Cyril Ramaphosa, presidentes da Ucrânia e da África do Sul, respetivamente. O pano de fundo da conversa seria o chamado “tarifaço”, que afeta 35,9% do total das exportações brasileiras e atingiu em cheio a economia do país. Mas não só: atingiu também a política e o poder judicial. Porque a medida, a mais dura de todas as que os Estados Unidos têm aplicado no mundo, foi vinculada pela Casa Branca à situação jurídica do ex-presidente Jair Bolsonaro. Darren Beattie, subsecretário americano de Diplomacia Pública, afirmou que o aumento tarifário era consequência dos “ataques” promovidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo governo Lula contra Bolsonaro e os seus apoiantes. Alexandre de Moraes, o juiz do STF que comanda o julgamento do ex-presidente do Brasil por golpe de estado e outros crimes, foi até processado pelo governo americano através da Lei Magnitsky, que pune “violadores dos direitos humanos”, congela os seus ativos e proíbe a sua entrada no país.O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente a morar nos Estados Unidos desde março, reivindicou a autoria do lobby contra a economia brasileira e disse que as tarifas são parte de um “arsenal diplomático” para pressionar o STF e o governo brasileiro. Como Moraes endureceu na segunda-feira, 4, as medidas cautelares contra Bolsonaro, as negociações com o governo Trump para mitigar os efeitos económicos do “tarifaço” lideradas pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin, e pelo ministro das Finanças, Fernando Haddad, foram abaladas. Robert Georg Uebel, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, destaca “a enorme tensão política” por trás da questão tarifária. “Lula vê no ‘tarifaço’ um problema político travestido de problema comercial, por ora o Brasil, antes de um eventual telefonema, vai tentando resolver a situação pela via diplomática, das negociações e da Organização Mundial do Comércio”, disse ao DN.Garantido mesmo, por agora, está um telefonema - só sobre tarifas - entre Scott Bessent, secretário do Tesouro dos EUA, e o homólogo brasileiro, Haddad, no próximo dia 13. Trump e Lula são política e profissionalmente antagónicos, um é empresário milionário, o outro fez carreira no sindicalismo. Quando o primeiro, em 2003, começou a apresentar o programa The Apprentice, o segundo chegava, pela primeira vez, ao Palácio do Planalto. Em 2018, Trump era presidente e Lula estava na prisão. Quando, em 2022, o brasileiro voltou ao poder, o americano era investigado por envolvimento no ataque ao Capitólio e por fraude financeira na Trump Organization e ainda alvo de buscas do FBI por posse de documentos secretos em Mar-a-Lago. No entanto, embora sejam naturais dos longínquos bairro de Queens, Nova Iorque, o primeiro, e da pequenina Garanhuns, Pernambuco, o segundo, nasceram com um intervalo de meros sete meses - têm 79 anos. Com inegável carisma pessoal e marcas físicas notáveis, como o cabelo do nova-iorquino ou a barba do pernambucano, os dois estão no terceiro casamento e ambos têm cinco filhos.Bush, Obama, Biden, TemerNo passado, as relações de Lula com os líderes dos Estados Unidos foram sempre positivas. Com George W. Bush, apesar de divergências sobre a Guerra do Iraque, foi pessoalmente cordial - até afetuosa, segundo quem acompanhou os muitos encontros entre ambos nos dois países. Em 2009, Barack Obama chegou a elogiar publicamente Lula - “he’s the man [este é o homem]”, em reunião do G20. Com Joe Biden, houve cooperação sobre defesa da democracia e do meio ambiente mas uma relação pessoal cautelosa.Trump, por sua vez, recebeu pessoalmente os presidentes do Peru e da Argentina mas nunca convidou Michel Temer para a Casa Branca. Já com Bolsonaro manteve forte alinhamento. “Eu amo-te”, disse até o brasileiro para o homólogo em encontro na ONU, em 2019. “Bom ver-te de novo”, respondeu, mais friamente, o americano.