Juntar PS, PCP, Bloco e Verdes num governo não é nada quando comparado com a tarefa de Lula da Silva, o presidente eleito do Brasil, que além do seu PT, vai abrigar no executivo e na base de apoio parlamentar, o PSB, o Solidariedade, o PSol, o Rede, o PV, o Pros, o Agir, o PCdoB e o PDT, membros da coligação de campanha, o PSD, o MDB e talvez o União Brasil, aliados pós-eleitorais, e até alguns adeptos do impeachment de Dilma Rousseff e membros do partido do presidente de extrema-direita cessante, Jair Bolsonaro..Uma "geringonça" numa escala muito maior do que a que formou o XXI Governo Constitucional português, de 2015 a 2019, não é novidade no Brasil, país onde 23 partidos têm assento no Congresso e em que, desde a redemocratização, em 1985, o mais representado deles nunca superou os 25% do total de parlamentares. Lula formou uma quando, de 2002 a 2010, governou o país pela primeira vez. E Bolsonaro, embora eleito em 2018 com um discurso crítico às alianças não programáticas, também acabou obrigado a costurar a sua "geringonça"..A atual, no entanto, por Lula ter tentado (e conseguido) esvaziar a possibilidade de criação de uma terceira via eleitoral a si próprio e a Bolsonaro, tende a ser ainda mais heterogénea. E, como o Congresso eleito é maioritariamente de direita, no poder legislativo o novo presidente deve tentar juntar até representantes do campo adversário na sua base..Como sublinha ao DN o economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, uma ONG criada com o objetivo de controlar os orçamentos públicos. "A Câmara dos Deputados ficou muito mais à direita do que à esquerda, a soma dos deputados à direita, eleitos pelo PP, pelo PL e pelo Republicanos, dá-nos um total de 187 parlamentares, por outro lado, os mais à esquerda, PT, PSol, PV, PCdoB, Rede, PSB, somam 108, e no Senado a situação não é muito diferente, Lula parte, por isso, com desvantagem e a tentar buscar apoio nos partidos que ficam a meio caminho e não só", continua..Gleisi Hoffmann, presidente do PT, já se reuniu com Baleia Rossi, presidente do MDB, o partido de centro-direita de Simone Tebet, a terceira mais votada nas eleições que abraçou a campanha de Lula na segunda volta, mas também de Michel Temer e de boa parte dos principais aliados do sucessor de Dilma na presidência, chamados insistentemente por Lula de "golpistas"..Mesmo partidos, como o União Brasil, assumidamente de direita, estão disponíveis a ouvir e até a embarcar no governo Lula. "Jamais faremos oposição", disse Luciano Bivar, presidente da formação e ex-lider do PSL, partido que abrigou Bolsonaro nas eleições de 2018..E até parte dos 99 novos deputados do PL, atual partido de Bolsonaro, deram a entender apoiar o governo, o que levou o presidente da formação a ter de registar, em conferência de imprensa, que é, pelo menos formalmente, oposição a Lula..Além de partidos, Lula quer atrair o "centrão", conjunto de deputados de formações diversas que apoia o governo de ocasião em troca de cargos ou verbas. "O "centrão" foi vitorioso nas eleições e, por isso, o eleito tem de conviver com ele, assim como todos os governos no passado", diz Castello Branco..O líder desse "centrão" hoje é Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, pelo PP. Mesmo aliado de Bolsonaro - "sem esse homem não teríamos sido tão bem-sucedidos no nosso governo", disse de Lira o ainda presidente na convenção que o lançou candidato ao Planalto em julho passado -, o chefe dos deputados já se fotografou sorridente a apertar a mão a Lula. Antes da foto, Lira prometera que a Câmara vai ajudar o novo governo a aprovar um orçamento que contemple o pagamento de Bolsa Família, mesmo furando o teto de gastos previsto em lei; e Lula garantira ao parlamentar que o PT não fará oposição caso ele queira se recandidatar ao cargo.."Não cabe ao presidente da República interferir no funcionamento da Câmara nem do Senado, nem eles interferirem no nosso comportamento, nós somos poderes autónomos e assim a sociedade vai viver tranquilamente, democraticamente", disse Lula..Na formação do governo, entretanto, o novo presidente tem a tarefa de agradar a todas as alas, a começar pelo PT, que reivindica pastas de peso para militantes do partido, como Fernando Haddad, equacionado na Fazenda (ex-Economia), ou Rui Costa, especulado na Casa Civil..O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, por outro lado, trouxe para a equipa de preparação do novo governo, sob sua responsabilidade, economistas liberais, como Persio Arida e André Lara Rezende, no que foi entendido como um agrado ao mercado. O mercado, porém, já reagiu energicamente - queda na Bolsa e subida do dólar - a um discurso de Lula em que o presidente reforçava que, com ele, "o pobre vai entrar no orçamento" e que "a principal regra orçamental deve ser que ninguém mais passa fome no país"..Tebet terá a seu cargo uma pasta na área social mas o MDB pode exigir mais em troca de apoio parlamentar. Marina Silva, empenhada na eleição de Lula, é cogitada no Ambiente, mas o seu partido, o Rede, quer ver também Randolfe Rodrigues, coordenador de campanha, no executivo. E por aí adiante....Para acomodar toda a gente na "geringonça tropical", o governo Lula será ampliado, provavelmente com 33 ministérios, mais 10 do que o de Bolsonaro. Funcionará?.A economista liberal Elena Landau, ouvida pelo jornal Folha de S. Paulo, acredita que sim e usa Portugal como prova. "A geringonça portuguesa permitiu fazer reformas, inclusivamente reformas liberais modernas, é um exemplo a ser seguido"..dnot@dn.pt