O Gabinete da ONU contra a Droga e o Crime acaba de publicar um relatório que revela que os cultivos de folha de coca aumentaram 10% na Colômbia em 2023, chegando aos 253 mil hectares, e a produção potencial de cocaína alcançou as 2664 toneladas, mais 53% do que em 2022. A Colômbia está a falhar na luta contra a droga? Não, o regime global está a falhar. A Colômbia impôs receitas e soluções importadas durante décadas e isso não conseguiu reduzir o fluxo de cocaína para o exterior. A Colômbia decidiu, pela primeira vez, que não iria mais perseguir os seus camponeses e construiu uma política nacional com dois pilares: oxigénio e asfixia. O oxigénio significa dar oportunidades às comunidades camponesas que cultivam culturas para uso ilícito e a asfixia significa atingir os níveis mais elevados da escala criminosa, mais apreensões. Este ano aumentaram 30% em relação ao ano passado..Porque é que diz que o regime global está a falhar? A Colômbia tem sido o modelo da implementação da política de drogas. Fizemos tudo o que nos pediram e, ainda assim, o regime global está a falhar. Não conseguiu impedir o mercado ilegal, mas o que é mais grave é que também não conseguiu regular o mercado legal. Hoje existe um problema do acesso a substâncias controladas para o setor médico em muitos países. O regime global falhou tanto legal como ilegalmente. É isso que a Colômbia enfrenta e responderá com novos caminhos. .O plano "Semeando vida, desterramos o narcotráfico" do presidente Gustavo Petro... Para nós o problema mundial da droga, aquilo a que chamamos a situação mundial da droga porque não queremos continuar a estigmatizar a nossa planta, que é uma planta tradicional de uso indígena típica do ADN colombiano, é um problema de desenvolvimento. Então, o que estamos a tentar fazer? Estamos a tentar mudar a perspetiva da substituição de culturas. Durante várias décadas dizia-se aos camponeses que substituíssem a planta da coca por um produto para o mercado legal - ananás, palma, mandioca, o que fosse. O que estava a acontecer? Estes produtos destinavam-se a um mercado muito local e muito suscetível a variações de preços. O governo decidiu agora mudar a perspetiva. O que pretendemos é um desenvolvimento alternativo de substituição de culturas com uma abordagem de industrialização, ou seja, que o agricultor deixe de vender a matéria-prima, e passe a vender um produto acabado para que toda a cadeia de negócio beneficie as comunidades e, esperançosamente, com vocação para a exportação. Mas aqui deixe-me fazer um parêntesis para expressar o que preocupa a Colômbia..O que é que preocupa? A Colômbia está muito preocupada com o Pacto Verde. Com todas as boas intenções que tem e objetivos que partilhamos, porque a desflorestação é um problema que nos afeta a todos e um problema que a Colômbia decidiu enfrentar. O governo conseguiu baixar as taxas de desflorestação. Mas acreditamos que o Pacto Verde pode acabar por fechar as portas a estes produtos substitutos de culturas na Europa e o que gostaria de sublinhar é que cada vez que um consumidor europeu compra um produto de substituição de cultivos da Colômbia está a contribuir para a segurança na Europa. .Voltando ao plano de Petro. O objetivo é, até 2033, erradicar até 90 mil hectares de cultivos ilegais de folha de coca e reduzir a produção de cocaína em 43%. Até agora os números mostram uma subida. Vamos começar já a ver a tendência para a descida em 2024 para conseguir chegar aos valores propostos? O programa de substituição de culturas está pronto para começar a erradicar até 20 mil hectares nas próximas semanas. Claro que o nosso compromisso e a nossa vontade é reduzir os hectares. Com novas abordagens agrícolas, com substituição por energia limpa, com substituição em contextos urbanos... Mas, francamente, a única forma de resolver o problema da Colômbia, que é o problema do mundo, é encontrar uma utilização industrial para a folha de coca. Para que o agricultor possa cultivar a sua folha de coca e utilizá-la para outra coisa. Essa é a única solução. Porque mesmo que o mundo regulasse a cocaína, o que realmente queremos é que estes agricultores vivam a produzir algo que sirva o mundo. Mas o que queremos sublinhar é que isto depende de uma dinâmica global e não apenas do empenho da Colômbia. O compromisso da Colômbia está aí, mas o mercado não está na Colômbia e aqui este é um esforço de todos. Posto isto, não nos adianta dizer “eu produzo porque tu consomes e tu consomes porque eu produzo”. Precisamos de sair desta conversa e o importante é iniciar outra, num novo tom, um pouco mais pragmático, um pouco mais realista sobre a forma como todos juntos resolvemos este problema. .A descriminalização não faz parte dos planos do presidente? O presidente foi claro ao dizer que se a cocaína fosse legal não teríamos uma guerra na Colômbia. Mas o meu papel é levar esta conversa para um nível global. A Colômbia não pode fazer nada sozinha. Temos de o fazer juntos. E isso exige uma conversa muito mais sincera em Viena para reconhecer os fracassos da política global em matéria de drogas. A Colômbia não tem todas as respostas. O que sabe é o que não funcionou. E continuar a insistir no que não funcionou só irá aprofundar a crise de saúde pública. .O chamado “consenso de Viena” foi quebrado este ano precisamente com a política de drogas. O que aconteceu? A Colômbia teve um papel fundamental na quebra do consenso de Viena. Os órgãos de decisão das Nações Unidas em Viena funcionam tradicionalmente por consenso e raramente votam. Nunca houve uma votação na Comissão de Estupefacientes. A redução de danos é um conceito extremamente controverso. Embora todas as evidências científicas sejam incontestáveis sobre o impacto positivo da redução de danos, há países que ainda se opõem a ela..O que é a redução de danos? A redução de danos são medidas de saúde pública que reduzem os riscos e os danos do consumo de drogas. Significa coisas diferentes em países diferentes. Em alguns países são salas de consumo onde as pessoas podem consumir em segurança. Noutros países significa que a polícia tem um comprimido para dar aos utilizadores em caso de overdose. Noutros distribuição de seringas... Mas para alguns países reconhecer a redução de danos significa reconhecer que é praticamente impossível alcançar uma sociedade livre de drogas. E é por isso que se opõem. Nós acreditamos que o conceito de redução de danos reconhece a prioridade da saúde pública e a importância do respeito pelos direitos humanos na aplicação das políticas de drogas. E parece-nos que uma sociedade livre de drogas é uma utopia e que temos de começar a desmantelar essa utopia. Porque as utopias não conduzem a políticas públicas eficientes. .E foi isso que levou a quebrar o consenso de Viena? Esta questão foi extremamente controversa em Viena e surgiu numa resolução dos EUA sobre a prevenção das overdose. Dois países, a Rússia e a China, ameaçaram votar se este conceito fosse incluído. Os EUA proprietários da resolução, inclinavam-se para a redução de danos, mas não estavam convencidos a votar. A Colômbia afirmou que se fosse apresentado sem redução de danos, convocaria a votação. É por isso que terminamos numa votação sobre a redução de danos, eventualmente convocada pela Rússia, que votou contra com a China. Penso que muitas pessoas tinham medo da redução de danos porque viram que poderia ser o primeiro grande buraco no proibicionismo a nível global. Mas para nós este conceito é fundamental e se não tivesse importância, o consenso de Viena não teria sido quebrado. Penso que a saúde pública e os direitos humanos tiveram uma grande vitória com esta quebra do consenso de Viena. .Portugal descriminalizou as drogas há mais de 20 anos... Portugal é absolutamente um país de vanguarda. Mas o que é preciso fazer é aprofundar essa estratégia. .É para isso que serve esta visita, que inclui reuniões e a participação na Lisbon Addictions? E o que venho fazer é munir-me de evidência científica para nos poder levar à discussão política. O regime global das drogas baseia-se, pelo menos desde 2016 quando se realizou a assembleia geral extraordinária convocada pela Colômbia para abordar o regime global das drogas, no reconhecimento do princípio da evidência científica. Portugal tem um acumular de evidências científicas importantes. O Uruguai acumula importantes evidências científicas sobre a canábis. E, no entanto, já tive de me sentar em salas de negociação onde certos países afirmam que a droga mais letal do mundo é a canábis. Contra todas as evidências científicas. Quando me pergunta o que a Colômbia vai fazer, por termos um aumento de 10% nas culturas, eu digo que a Colômbia fará todo o possível, mas a Colômbia não pode fazer isto sozinha. E a Colômbia não está disposta a continuar a pôr em perigo a vida do seu povo na luta contra as drogas. Ainda para mais quando, do outro lado, há um regime global de drogas num universo paralelo com discussões completamente distantes da realidade e da ciência..Como é que a produção de cocaína está a afetar esta ideia de “paz total” que o presidente Petro defende? É evidente que os traficantes de droga são atores armados. Então, o presidente disse, e repito, que se a cocaína fosse legal não havia guerra na Colômbia. Mas o facto é que hoje o regime mundial da droga coloca não só a cocaína, mas também a folha de coca, entre as listas de substâncias proibidas. Coloca fora da lei qualquer agricultor que tenha um arbusto de folha de coca no seu terreno. .Mas o que está a ser feito para combater a violência das guerrilhas depois do plano de paz? A Colômbia está a dialogar. Abriu várias mesas de negociação. Algumas com guerrilhas que estão claramente envolvidas no mercado ilegal de droga. Mas também está a falar com alguns grupos criminosos no âmbito da submissão à justiça para conseguir também aí afetar o mercado. Nós conhecemos este tipo de violência há décadas. Tentámos resolver o problema através da repressão. O meu governo está agora a lidar com esta questão através do diálogo. A mensagem que gostaria de passar a todos é que temos feito tudo o que podemos para combater o tráfico de droga. A Colômbia joga limpo na comunidade internacional. Durante décadas fizemos tudo e não resultou. Agora estamos a explorar novos caminhos mas, acima de tudo, colocamos a vida dos colombianos em primeiro lugar. Chega de sacrifício de vidas na Colômbia pelo cultivo de culturas para uso ilícito. A culpa não é da planta, a culpa é do uso da planta. E penso que o que temos de fazer é, no quadro da transparência que nos caracteriza e falando francamente, trazer uma conversa um pouco mais realista para as esferas globais..susana.f.salvador@dn.pt