Joe Biden: "Aprendemos de novo que a democracia é frágil. A democracia prevaleceu"

Mesmo sem multidões, a cerimónia de tomada de posse foi o que se espera de um evento norte-americano: um espetáculo com música, humor, poesia, emoção e fé. O protagonista cumpriu o papel à risca, com um discurso encorajador e de concórdia, no qual exaltou o valor da verdade, numa alfinetada ao ausente antecessor.

Poucos minutos depois de Joseph Robinette Biden Jr. se tornar oficialmente no 46.º presidente dos Estados Unidos, a conta oficial no Twitter do chefe de Estado demonstrou que a página foi virada. "Não há tempo a perder quando se trata de lidar com as crises que enfrentamos. É por isso que hoje me dirijo à Sala Oval para trabalhar, garantindo ação corajosa e ajuda imediata às famílias americanas."

Para trás ficou uma cerimónia ímpar pela ausência de público, com poucos convidados e uma segurança musculada, e após a qual se ouviu a palavra "alívio". O presidente alemão Frank-Walter Steinmeier resumiu em poucas palavras o sentimento de muitos, ao declarar-se "aliviado" pela entrada de Joe Biden na Casa Branca: "Hoje é um bom dia para a democracia."

Joe Biden, de 78 anos, é conhecido por fugir ao guião, por deixar levar-se pela emoção e por cometer gaffes. Conta-se que quando era vice-presidente os militares que operavam o teleponto viam-se e desejavam-se para acompanhar o ritmo de um homem que em criança gaguejava. Nada disso aconteceu numa cerimónia de tomada de posse em que o mais extravagante foi a prestação musical de Lady Gaga a cantar o hino dos Estados Unidos.

Ao simbolismo do juramento da primeira mulher vice-presidente, juntou-se um discurso de 20 minutos de Biden, no qual aprofundou a mensagem de unidade que fez parte da campanha e do discurso de vitória. "Este é o dia da América. Este é o dia da democracia, um dia de história e esperança, de renovação e determinação. A América foi novamente posta à prova, e a América está à altura do desafio. Hoje, celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia. A vontade do povo foi ouvida e a vontade do povo foi observada. Aprendemos de novo que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. E, meus amigos, a democracia prevaleceu", começou por dizer, numa alusão à campanha de Donald Trump para reverter os resultados eleitorais, nos quais o candidato democrata foi o mais votado de sempre, com 81 milhões de escrutínios, e o ex-presidente o segundo, com 74 milhões.

O democrata também não quis deixar de lembrar o que aconteceu há menos de duas semanas naquele local para assegurar que não há futuro para movimentos extremistas. "Aqui estamos nós apenas dias após uma turba desordeira pensar que poderia usar a violência para silenciar a vontade do povo, para parar o trabalho da nossa democracia, para nos expulsar deste solo sagrado. Não foi o que aconteceu. Nunca irá acontecer. Hoje não. Não amanhã. Nem nunca."

A esse propósito, mais à frente no discurso e sem alguma vez identificar o alvo, Joe Biden deixou uma alfinetada para o antecessor que optou não estar ali presente, ao contrário do agora ex-vice-presidente Mike Pence. "Temos de rejeitar a cultura em que os próprios factos são manipulados e mesmo fabricados. As últimas semanas e meses ensinaram-nos uma dolorosa lição. Há a verdade e há mentiras, mentiras ditas para o poder e para o lucro. E cada um de nós tem um dever e uma responsabilidade, como cidadãos, como americanos, e especialmente como líderes, líderes que se comprometeram a honrar a nossa Constituição e a proteger a nossa nação, a defender a verdade e a derrotar as mentiras."

O tom do discurso do novo presidente não foi, no entanto, de rancor ou vingança. Bem pelo contrário. "A política não tem de ser um fogo em fúria a destruir tudo no seu caminho. Cada desacordo não tem de ser uma causa para uma guerra total", disse, antes de se dirigir em especial àqueles que não o apoiam: "Ouçam-me à medida que avançamos. Se ainda discordam, assim seja. Isso é democracia. Isso é a América." Biden insistiu neste ponto, ao afirmar que a "discordância não deve levar à desunião" e prometendo ser um presidente para "todos os americanos". Isso passa por terminar a "guerra incivil que opõe vermelho contra azul, rural contra urbano, conservador contra liberal". A receita? "Abrir os corações" e mostrar "um pouco de tolerância e humildade".

Biden não falou dele, mas as suas referências falaram por si. Católico, citou Santo Agostinho que definia o povo pelos "objetos comuns do seu amor", para depois dizer que os dos norte-americanos são a "oportunidade, segurança, liberdade, dignidade, respeito, honra e sim, a verdade". Também como expressão da sua fé e em nova homenagem aos 400 mil compatriotas que morreram de covid, Biden fez uma oração em silêncio. Já na véspera presidira a uma cerimónia junto do Lincoln Memorial. "Para curar, temos de nos lembrar. Por vezes é difícil recordar, mas é assim que curamos. É importante fazer isso enquanto nação. É por isso que estamos aqui", disse então. Na tomada de posse deixou uma mensagem pouco otimista sobre os efeitos do coronavírus. "No trabalho que nos espera, vamos precisar uns dos outros. Precisamos de todas as nossas forças para perseverar neste inverno escuro. Estamos a entrar no que pode ser o período mais duro e mortífero do vírus. Temos de pôr de lado a política e finalmente enfrentar esta pandemia como uma nação."

Outro ponto importante do discurso foi o que dedicou à injustiça racial. "O sonho de justiça para todos não será mais adiado. Sei que as forças que nos dividem são profundas e são reais. Mas também sei que não são novas. A nossa história tem sido uma luta constante entre o ideal americano de que todos somos criados iguais e a dura e feia realidade de que o racismo, o nativismo, o medo, a demonização nos separaram durante muito tempo."

Joe Biden dirigiu ainda uma palavra para o exterior: "Repararemos as nossas alianças e voltaremos a relacionar-nos com o mundo. E lideraremos, não apenas pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo."

Um discurso que contrasta com o da tomada de posse de Donald Trump, no qual este, em nome dos "homens e mulheres esquecidos" vítimas de uma "carnificina americana" responsável por ter tirado os empregos e a riqueza aos seus cidadãos. Como tal, Trump comprometera-se em beneficiar os trabalhadores e as famílias norte-americanas. "Deste dia em diante, será apenas a América primeiro, a América primeiro", afirmara.

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