Joacine Katar Moreira: os infortúnios do wokismo
Ilustração Vítor Higgs / DN

Joacine Katar Moreira: os infortúnios do wokismo

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Ambíguos sentimentos desperta Joacine Katar Moreira, a ex-deputada do Livre que, por pouco, não ia dando cabo dele e que foi vítima da mais violenta e mais vil campanha de ódio, racismo e xenofobia de que há memória na história da nossa democracia.

“És uma fraude. És preta. Não serves para nada, mesmo morta”, foi uma dos muitos SMS que recebeu e provavelmente ainda recebe no seu telemóvel, como fez questão de mostrar enquanto era entrevistada para uma reportagem do Expresso, de 29/11/2019. A essas mensagens - centenas, milhares - haverá que juntar os abundantes insultos nas redes sociais, ferozes e atrozes, e outros tantos boatos e notícias falsas, como os que garantiam urbi et orbi que não tinha a nacionalidade portuguesa, que entrara ilegalmente em Portugal, quando para cá veio estudar aos 8 anos, que propôs que a bandeira portuguesa passasse a ter as cores da bandeira da Guiné-Bissau ou que simulava ou exagerava a sua gaguez para gerar compaixão nos outros e disso tirar dividendos políticos.

Com a alarvidade que o caracteriza - e que encontra eco no coração alarve de muitos dos seus votantes -, André Ventura sugeriu, a propósito da devolução de património às ex-colónias portuguesas, que também Joacine fosse devolvida “ao seu país de origem”, um lamentável episódio que a antiga deputada ainda recorda, comparando a passividade com que aquele insulto foi recebido pela nossa classe política (com Ferro Rodrigues à cabeça e o argumento de não dar protagonismo ao Chega) e a decisão mais recente, tomada pelo Parlamento francês, de suspender por dois meses um deputado da Frente Nacional que mandou um outro parlamentar “regressar a África”.

A entrada de Joacine Katar Moreira na Assembleia da República, na sequência das legislativas de Outubro de 2019, foi contemporânea da chegada do Chega à arena parlamentar, então com apenas um deputado e 1,29% dos votos. A deputada do Livre tornou-se rapidamente o alvo privilegiado dos ataques do vil Ventura e do seu partido, mesmo não sendo a primeira mulher negra na história do Parlamento - honra que cabe à farmacêutica Sinclética Soares dos Santos Torres, deputada por Angola à Assembleia Nacional do Estado Novo, entre 1965 e 1974 - e mesmo não sendo a primeira deputada negra no regime democrático - honra que cabe à académica Nilza de Sena, deputada do PSD na legislatura de 2011-2019. Antes dela, Helena Lopes da Silva, natural de Cabo Verde, já tinha sido cabeça-de-lista pelo PSR às eleições para o Parlamento Europeu, em 1994, e, de resto, com Joacine entraram na Assembleia duas outras mulheres de origens africanas, a bloquista Beatriz Gomes Dias, nascida no Senegal, e a socialista Romualda Fernandes, nada na Guiné-Bissau. Katar Moreira foi, isso sim, e apenas, a primeira cabeça-de-lista negra a ser eleita como deputada, facto que ela considerou “uma revolução”, mas que, em si mesmo, não era motivo para tanta sanha do Chega e dos seus esbirros, que soezmente a atacaram - e ardilosamente a usaram para se promoverem - não tanto por ela ser mulher e ter origens africanas, mas muito mais, quer-nos parecer, devido ao seu high profile, patente logo no dia da investidura, quando irrompeu por São Bento adentro levando a tiracolo um assessor trajado de saia escura (e bainha subida).

Depois, e como se sabe, foi um carrossel de aparições mediáticas, inclusive em revistas cor-de-rosa, e um vendaval de polémicas, tudo culminando na sua tempestuosa saída do Livre ao som daquele rugido épico “Isto é mentiraaaaa!! Tenham vergonhaaaa!!” que ainda hoje dilacera os nossos frágeis meatos. Instalada a peixeirada, Joacine e o seu partido portaram-se como um casal desavindo, desses em brigas ferozes, com os habituais passa-culpas (“não fomos nós que nos divorciámos de Joacine. Foi a deputada que se divorciou de nós”, disseram da sede do Livre, provavelmente barricados) e, claro, muita lavagem de roupa suja em público (ainda recentemente, Joacine acusou o líder, Rui Tavares, de ser “o estilo de indivíduo que atira a pedra e esconde a mão” e a companheira deste de ter estado “activíssima online a dar a ideia de que eu era maluca”: O Novo, de 12/9/2023). 

Na altura, foi um foguetório: o Livre enviou diversos e-mails à deputada, com recibo de leitura, dizendo que lhe retirava a confiança política; ela nem respondeu, como antes não respondera às várias chamadas telefónicas de um órgão daquele partido que, ironicamente, tinha e tem por nome “Grupo de Contacto”. A direcção anunciou que pedira uma reunião com Ferro Rodrigues para discutir o processo de perda de representação parlamentar, e, dias depois, Joacine passou a deputada não-inscrita, mantendo-se a subvenção ao partido, tópico que, como em todos os divórcios, foi obviamente esgrimido e ventilado, com ela a acusar o Livre de a ter usado, e à sua cor da pele, para ganhar uns dinheiros (“elegeram uma mulher negra que foi útil para a subvenção”). Depois, correu a mentira de que Joacine iria ter direito a uma subvenção mensal vitalícia, outra inverdade clamorosa (manteve, isso sim, um montante para o apoio a trabalho parlamentar, então reduzido de 117 para 57 mil euros/ano).

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Joacine Elysees Katar Tavares Moreira viu a luz em Bissau, aos 27 de Julho de 1982, sendo a mais velha de 11 irmãos, sete da parte do pai, três por via materna. Quando nasceu, a mãe, Elsa Katar Mady, tinha 19 anos, e o pai, Joaquim Moreira, 18 primaveras, sendo ambos muito farristas, característica que, pelo menos ele, ainda mantém, a crer numa reportagem da revista Visão, de 14/12/2019, que o define como um bon-vivant, “que gosta de mulheres e de festas e que vai com as filhas para as discotecas”.

Na mesma peça jornalística, Joacine esclarece: “A minha família fazia parte dos civilizados, dos que tinham BI e podiam circular pelo território.” A avó paterna, Maria Leonor Teixeira Barbosa, Nonó, filha de um cabo-verdiano e de uma guineense, casou-se aos 16 anos com Joaquim Moreira, descendente de José Mendes Moreira, um africano que subira alto na Administração Colonial e que chegara até a ser condecorado pelo Governo Português (ao jornal i, de 26/8/2019, diria que os seus familiares faziam parte da “elite administrativa colonial”). Os festejos do casamento duraram uma semana inteira, mas o próprio do matrimónio cessou ao fim de quatro anos: com cerca de 20 anos, e já com dois filhos nos braços, Maria Leonor separou-se de Joaquim, o que não a impediu de tirar o Curso de Enfermagem e de cuidar da numerosa família. Optou por permanecer na Guiné-Bissau, dizendo que ali era mais necessária como enfermeira do que em Portugal.

Também os pais de Joacine acabariam por se divorciar, tinha ela 3 anos. Conhecendo os hábitos boémios do filho e da nora, Maria Leonor implorou ficar com a neta, que cresceu com a avó numa casa povoada de gente, onde se cruzavam filhos, netos e sobrinhos, tudo em boa harmonia. Maria Leonor sempre teve o sonho de que Joacine viesse estudar para a Velha Europa ou, mais concretamente, para Portugal; fez sacrifícios, poupou para isso, e, quando a neta tinha 8 anos, mandou-a para um colégio de freiras para onde, um ano antes, já tinha enviado uma filha, o das Irmãs Dominicanas da Anunciata, no Gradil, perto de Mafra.

Na altura, fazia furor na Guiné a novela Roque Santeiro e, naqueles sonhos de criança, Joacine embarcou no avião julgando que ia viver para o Brasil. Quando chegou ao Gradil, em Outubro de 1990, deparou com “um dia de nevoeiro, humidade gigante, frio insuportável”, mas acabou por adaptar-se na perfeição e ainda hoje guarda memórias felizes daquele colégio com estatuto IPSS onde esteve até aos 15 anos: devorou livros atrás de livros (A Morgadinha dos Canaviais, com o dicionário ao lado), sonhava ser escritora, enchia cadernos com textos e com poemas, redigia uns “diários filosóficos”. Era carinhosamente tratada pelas freiras espanholas como Mariquita Perez (uma famosa boneca do país vizinho, criada no rescaldo da Guerra Civil) e nunca se sentiu intimidada pela cor da pele ou pela gaguez, a ponto de ser ela que fazia as leituras da missa e as apresentações nas festas de Natal para os benfeitores do colégio. “Foi uma época de uma alegria enorme e ao mesmo tempo de uma grande inocência” e “as irmãs eram óptimas, não eram daquelas irmãs muito austeras e ríspidas (…). Aquelas irmãs espanholas ensinaram-nos a ser muito autónomas, a nunca dependermos de ninguém. Ensinaram-nos que devíamos estudar para ser alguém”, contou ela ao Diário de Notícias, de 11/8/2019, recordando que uma delas lhe disse uma frase profética, que adoptou como lema de vida: “Joacine, la sociedad no te aguentará”.

Anos depois, e sintomaticamente, após ter-se casado pelo civil, matrimoniou-se pela Igreja, argumentando que, “para irritação das minhas amigas feministas, digo que preciso de alguma incoerência na minha vida”.

As regras e a disciplina do colégio não a incomodaram em excesso, apesar de dizer que, já na altura, era “impertinente, insolente, inconsequente” (Notícias Magazine, de 15/10/2019). Em contraste, na casa do pai e da madrasta, um rés-do-chão esquerdo na Rua 25 de Abril, em Alverca, reinava a anarquia completa: apesar de ser um T3 espaçoso, o pai transformou-o num porto de abrigo para os seus patrícios guineenses, que ali ficavam largos meses, com uma família em cada quarto, mais uma família na sala, camas na cozinha, camas no hall de entrada.

Aos 15 anos, Joacine mudou-se para lá, passando a viver em total liberdade, sem regras e sem horários, o que, todavia, não a desviou do caminho dos estudos. Logo que chegou, e por sentir “necessidade de africanidade”, fez as primeiras amigas e teve os primeiros namorados entre os moradores guineenses e cabo-verdianos do bairro social de Arcena. Depois, na Secundária Gago Coutinho, seguiu a área de Humanidades, sempre com notas excelentes (ainda hoje exibe com orgulho - e deixa fotografar - as pautas e as cadernetas com os seus resultados escolares no liceu). “Os professores de Português e de Filosofia eram fascinados por ela”, diz uma antiga colega, acrescentando que ela “era a mais querida do círculo de professores.” Tornou-se delegada de turma, começou a escrever poemas no jornal da escola, era selectiva e parcimoniosa nos namorados, cantava para um grupo de sete amigas, que a tratavam por Tchiny e com quem convivia na escola ou num café-restaurante limítrofe, o GareHotel, que ainda hoje existe. “Era muito interessada. Tinha mais recursos intelectuais do que nós”, recorda uma das amigas do grupo, com as quais Joacine continua a encontrar-se regularmente.

VÍtor Higgs / DN

Na juventude, e além de ajudar no cuidado dos irmãos, dando-lhes banho e levando-os à escola, trabalhou com uma das madrastas na apanha do tomate no Ribatejo, um trabalho mal pago e fisicamente exigente, para a qual não estava talhada (“ali percebi que a única coisa que eu poderia fazer era estudar”); mais tarde, quando veio para a Faculdade, fez promoção de produtos em supermercados - iogurtes, queijos, maquilhagem, tintas para o cabelo, chocolates - e, com os ensinamentos aprendidos com as freiras do Gradil, foi arrumar e limpar quartos de hotel, sendo exímia a fazer camas (a sua passagem pelo Livre mostrou-o com exuberância). Nessa altura, já vivia numa residência universitária, para onde foi morar logo que entrou no ISCTE, onde se licenciaria em História Moderna e Contemporânea, em 2005 (diz que, se não tivesse de conjugar os estudos com o trabalho, “poderia ter feito a licenciatura com uma média altíssima” - jornal i, de 26/8/2019). Depois, em 2009, tirou aí o mestrado em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais e, mais tarde, em 2018, concluiu o doutoramento em Estudos Africanos, com uma tese publicada com o título Matchundadi: Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau (Sistema Solar, 2020; 2.ª ed., 2022), na qual sustenta que a exacerbação da masculinidade presente na “cultura de matchundadi” tem dominado a sociedade e a política guineenses, impedindo o normal funcionamento do Estado, a instauração da democracia e o desenvolvimento do país através de “uma lógica de absoluta violência” (ou de “violência nas suas várias dimensões”), da “centralização do poder como modo de liderança e da governação” e da “impunidade, que consiste na subversão total do sistema de justiça e que garante a supremacia de certos grupos ou indivíduos face a outros” (Observador, de 21/6/2020). Nesse interessante e original trabalho, dedicado à avó Nonó e aprovado com distinção, e por unanimidade, há algo que se destaca, mesmo que colocado somente em rodapé: a impressionante e terrível nota 50, na qual Joacine, sem eufemismos nem contemplações, enumera, um a um, os sucessivos assassinatos políticos que marcaram o seu país no pós-independência. Em seu entender, é a masculinidade hegemónica (ou, como diz, a “hiper-masculinidade”) que explica que a Guiné-Bissau, um “Estado Performático”, se encontre hoje dominada pelo narcotráfico, com dois terços da população abaixo do limiar de pobreza, um dos mais baixos PIB per capita do mundo e um dos piores lugares no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (177.º lugar, em 191 países). Ainda assim, e curiosamente, veio afirmar há pouco que “a história da Guiné-Bissau orgulha muito os guineenses” (DW, de 2/9/2023).

Na Faculdade, Joacine sustentava-se a si própria, nunca pedindo dinheiro aos pais (com o que ganhava nos supermercados e nos hotéis, além da bolsa do Estado, conseguia até levá-los ao cinema e a almoçar fora, além de comprar bicicletas para os irmãos). Com as primeiras poupanças, e quando ainda estava no último ano do curso, Joacine foi a Bissau visitar a avó, que alimentava o sonho de que ela, uma vez concluídos os estudos, regressasse ao seu país de origem. “Vais, mas vais unicamente para estudar e, depois de estudares, regressas”, disse-lhe a avó quando a mandou para Lisboa, pensando que a neta iria seguir-lhe o exemplo; esta ainda pôs a hipótese de voltar, mas, uma vez na Guiné, concluiu que Portugal era a sua terra, o lugar onde vivia desde os 8 anos. Não se adaptou a Bissau, disse em entrevista ao jornal i, de 26/8/2019, e, tendo optado pela segunda pátria, seria uma das fundadoras, em 2018, do Inmune - Instituto da Mulher Negra em Portugal, uma “entidade anti-racista e feminista interseccional”, tornando-se sua “presidenta”, como prefere dizer. Aí promoveu as Conversas às Escuras, onde mensalmente reunia um conjunto de mulheres em diálogo numa sala escura, comendo alimentos igualmente escuros, como chocolate, passas ou azeitonas pretas. Ao Público, de 3/12/2018, a activista explicou o décor: “Normalmente o obscuro, o oculto, o sombrio, estão associados ao mistério, mas igualmente a algo negativo, algo que, mesmo existindo, não pode ser reconhecido.” Ora, perguntou, “qual é o problema em ser uma ovelha negra?”

Colocada como investigadora do Centro de Estudos Internacionais, teve a desdita de, em 2018, não ter conseguido uma bolsa de pós-doutoramento no âmbito de um projecto do Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina (CEsA), por o júri ter considerado que, na entrevista, a candidata não conseguira “demonstrar ideias claras quanto à sua participação no projecto” e, pior ainda, por “não ter tomado em conta qualquer dos quatro tópicos especificamente solicitados para a entrevista (pois nem sabia a que tópicos o júri se referia)”. À revista Visão, Joacine afirmou ter passado “um ano traumatizada com essa acta”, que achou “cruel”, tanto mais que todas as juradas eram suas amigas e uma delas, Inocência Mata, da Faculdade de Letras, até tinha estado uns anos antes no seu casamento. 

Em 2015, Rui Tavares telefonou-lhe, desafiando-a a entrar nas listas do Livre, no 22.º lugar, dificilmente elegível. Deu a cara pelo partido nas europeias de Maio de 2019, mas logo ali discordou que, nos cartazes, a tivessem posto em posição subalterna, a olhar embevecida para o cabeça-de-lista. Nas legislativas de 2019, exigiu aparecer sozinha nos cartazes e outdoors, pois entendia possuir legitimidade própria, já que fora ela a escolhida através do método de “primárias abertas”, no qual todos podem eleger e ser eleitos candidatos do Livre, mesmo não sendo militantes (cf. o Regulamento das Primárias Abertas do Livre, disponível aqui). No rescaldo do furacão Joacine, a direcção do partido disse que iria rever os seus processos internos, adiantando, contudo, que manteria as “primárias abertas”, da qual o Livre tinha sido pioneiro (o PS adoptou-o em 2014, e, apesar de discordar desse método, foi com ele que António Costa acabou por derrotar Seguro com 69,6% dos votos.)

Tem sido observado noutros países que a escolha dos candidatos pelas bases dos partidos, em primárias abertas ou fechadas, nem sempre leva a resultados virtuosos e, pelo contrário, é um factor de promoção dos mais extremistas e radicais. Devem-se às primárias, em larga medida, o triunfo da linha Brexit no seio do Partido Conservador, a manutenção de Jeremy Corbyn como líder trabalhista, a captura do Partido Republicano por Donald Trump, a escolha de François Fillon como candidato presidencial em França, a desastrosa designação de Liz Truss como chefe do Governo britânico (cf. Max Fisher, How Political Primaries Drive Britain’s Dysfunction, The NY Times, de 23/10/2020). 

No caso de Joacine, uma defensora ardente do conflito e da polarização políticos (“a polarização é necessária. Estamos numa altura em que não dá para evitar a polarização, com o avanço absoluto da extrema-direita e o ressurgimento de ideologias outrora vencidas”, afirmou ao Novo, de 26/3/2023), o problema não residiu, ou não residiu apenas, no seu radicalismo, ou sequer na imposição de uma agenda excessivamente apostada nas questões raciais ou de género, em detrimento de outras bandeiras do Livre (v.g., ecologia, europeísmo). O problema de Joacine Katar Moreira - e do Livre - foi ter entendido que a eleição por primárias lhe conferia uma legitimidade pessoal e intransmissível, só dela, dando-lhe carta branca para correr em pista própria sem dar satisfações a ninguém, sobretudo à direcção do seu partido. Aliás, numa entrevista ao Diário de Notícias, de 11/8/2019, disse-o com todas as letras: “Não há uma direcção partidária a escolher quem é que faz parte das listas, há eleições primárias, qualquer pessoa pode ser escolhida por qualquer pessoa, isto é uma enorme ferramenta democrática. Não precisamos de estar submetidos e obedientes a uma direcção partidária.”

Numa personalidade com outras características, essa “enorme ferramenta democrática” poderia ter funcionado. No caso dela, a designação através de primárias conjugou-se, em tempestade perfeita, com uma sobranceria e um pedantismo intelectuais que raiavam o autismo. A desconexão da realidade chegou ao extremo quando mandou afixar por toda a Lisboa gigantescos outdoors com o seu rosto e os dizeres “Portugal Interseccional”, indiferente ao facto de 99,99% dos portugueses não saberem sequer o que isso quer dizer, nem alcançarem a subtileza teórica desse conceito de importação estrangeira. Com isso, e além de demonstrar um completo alheamento em relação ao país onde vive e ao seu povo, Joacine não pretendeu mobilizar ninguém ou alcançar o voto de quem quer que fosse, mas tão-só fazer um statement da sua densidade e superioridade académicas, esquecendo-se, nesse transe, que não estava a falar para os seus pares ou a escrever um paper, nem a prestar provas no ISCTE.

Ao fim de pouco tempo, já os jornais davam conta do mal-estar entre Joacine e a direcção do Livre, começado ainda durante a campanha, quando ela exigiu aparecer sozinha nos cartazes do partido, e prolongado logo que foi eleita, quando assumiu o exclusivo da escolha dos quatro colaboradores do seu gabinete de apoio. Um deles, Rafael Esteves Martins, um rapazito de Queluz que antes militara na Maçonaria e na JCP, chegou a superá-la no narcisismo, exuberantemente mostrados no célebre episódio da saia, que ele disse ser moda corriqueira em Londres, onde viveu, e, em simultâneo, uma “mensagem política”, que, é óbvio, acabou por ofuscar todas as outras e a própria deputada (a revista Nova Gente, de 26/10/2019, chamou-lhe, não por acaso, “o homem que roubou o protagonismo da deputada no dia de estreia no parlamento”). Martins teve os seus 15 minutos de fama, até foi ao programa do Goucha, mas depois quis recatar-se, não sem antes ter-se envolvido noutro incidente burlesco, quando chamou os serviços de segurança da Assembleia para acompanharem “a senhora deputada” ao gabinete, pois esta, enquanto dava uma entrevista à Al-Jazeera, fora assediada pelos jornalistas portugueses, com quem se recusava a falar. Os repórteres parlamentares, sintomaticamente, queixavam-se da “soberba” do assessor e, na verdade, Martins mostrava ser um deslumbrado parvenu académico que, por estar a estudar em Oxford, usava um esforçado accent etoniano para discorrer com altivez sobre o provincianismo dos portugueses e dos demais povos meridionais, o que fazia dele, claro está, um caricato produto do colonialismo cultural britânico, como foi oportunamente notado pela humorista Joana Marques num hilariante episódio de Extremamente Desagradável

“Eu nasci para estar ali”, afirmou Joacine sobre a Assembleia da República, quando se abriu o conflito com o Livre. Simplesmente, enquanto ali esteve, as trapalhadas e as confusões foram tantas que acabaram por obnubilar o trabalho feito, patente em diversos projectos e iniciativas, sobre coisas tão variadas como a defesa da Tapada das Necessidades, a vacinação covid da comunidade migrante, a protecção contra o Sars-Cov-2 entre os idosos nos lares de terceira idade ou a instituição do dia 25 de Setembro como Dia Nacional da Sustentabilidade. Por culpa própria ou alheia, tudo isso foi ignorado pelos media e pelos cidadãos, talvez porque a deputada preferisse falar de questões doutra natureza, mais polémica e simbólica, como a remoção de pinturas racistas do Salão Nobre de São Bento ou a trasladação das ossadas de Sousa Mendes para o Panteão Nacional.

As divergências com o partido agudizaram-se quando se absteve num voto de condenação à agressão israelita a Gaza, o que lhe mereceu uma reprimenda pública pela direcção do Livre, que a fez entrar “em reflexão”, segundo o seu assessor. Pouco depois, disse que, durante três dias, tentara contactar, sem sucesso, a direcção do partido sobre qual deveria ser o seu sentido de voto nessa sensível matéria, explicação que levou Rui Tavares a declarar-se “perplexo”. De facto, não parecia muito provável que Joacine Katar Moreira, tão ciosa da sua autonomia de candidata eleita em “primárias abertas”, fosse contactar a direcção do Livre para saber que posição tomar num voto sobre a Faixa de Gaza. Segundo disse depois, estava “muito mais à esquerda” do que o seu partido, o que torna ainda mais incompreensível aquela abstenção. 

Mais tarde, e na questão fulcral e decisiva da alteração da Lei da Nacionalidade, uma das grandes bandeiras do Livre, entregou o seu projecto fora de prazo, facto tanto mais estranho quanto Joacine afirmara repetidas vezes, em campanha, que aquele seria o primeiro projecto que iria apresentar em São Bento. Gerou-se um enorme imbróglio, pelos vistos existia um “acordo de cavalheiros” que a novel deputada ignorava, o projecto do Livre acabou sendo admitido “a título excepcional”, mas o pior é que, segundo vários juristas, ele padecia de inconstitucionalidades grosseiras, nomeadamente por criar um regime diferenciado e mais favorável para os cidadãos nascidos entre 1981 e 2006 (cf. Público, de 29/11/2019).

A gota de água terá sido o facto de Joacine não ter revelado como iria votar na generalidade o Orçamento do Estado para 2020, o que levou a direcção do Livre a retirar-lhe a confiança política. Em retaliação, o assessor Rafael gracejou, dizendo que retirava a confiança no partido, Joacine passou a não-inscrita e entrou em registo contra mundum. Acusou tudo e todos, desde a “pouca informação” que recebia da Assembleia, passando pela comunicação social e pelos comentadores que a criticavam (chegou a dizer que Daniel Oliveira fazia o jogo da extrema-direita…), até, naturalmente, o seu próprio partido, do qual chegou a insinuar que a atraiçoara por ela ser uma mulher negra (cf. Fernanda Câncio, Que pontapé, Joacine, Diário de Notícias, de 30/11/2019).

Ao som do Fado Bicha, Joacine Katar Moreira entrou no Parlamento com a promessa de que iria dar “um pontapé no estaminé”. Entre o pontapé e o tiro no pé, no final foi mau para todos. Foi mau para o Livre, que teve de renascer das cinzas e fazer tudo para que os portugueses se esquecessem daquela mulher-meteoro. Foi mau para Joacine, que disse que houve uma “campanha generalizada” contra a sua pessoa e que aqueles dois anos em São Bento tinham sido “muito violentos” para si e para a sua família (tem uma filha pequena, Anaís Leonor), adiantando, contudo, que voltaria a fazer a experiência, que teve convites de outros partidos para regressar a São Bento (diz que não foi o BE, o PCP ou o MAS: então, que partidos?) e, inclusive, que não desdenha a hipótese de, no futuro, constituir uma força política para defender as suas causas. O pior de tudo, contudo, e acima de tudo, foi para o país: a gritaria entre Joacine e o Livre caiu que nem mel para os seus inimigos da direita extrema (não por acaso, o Chega subiu de um para 12 deputados nas eleições de 2022) e contribuiu, e muito, para adiar um debate sério, cada dia mais urgente, sobre o racismo em Portugal, que muitos teimam em negar, mas que a realidade impõe aos olhos de todos. Não é o racismo do passado, caro aos intelectuais doutorados, mas o actual e bem vivo, presente na gente real, de carne e osso, que vemos nas paragens dos autocarros, a caminho dos bairros das periferias, ou nas obras da construção civil, nos jovens negros atrás dos balcões de fast food, nas mulheres das limpezas dos escritórios. Gente como as irmãs de Joacine do lado materno, que, por terem crescido no bairro social do Vale da Amoreira, na Margem Sul, não passaram do 12.º ano, ao contrário dela e dos seus irmãos de Alverca, do lado paterno, que conseguiram chegar à universidade. 

Joacine regressou à academia, tem dado algumas entrevistas e, parece, mantém-se muito activa nas redes sociais. Ainda há pouco, voltou a incendiar os ânimos ao ter escrito no Twitter que “há uma forma portuguesa de estar no mundo. É a desfaçatez.” Com isso, radicalizam-se as atitudes e as opiniões, conquistam uns e outros o palco e a fama que tanto desejam, concentram-se os debates em questões assaz simbólicas, mas laterais (brasões, pinturas de salões nobres, ossadas em panteões), enquanto o essencial do racismo, esse, permanece por discutir e resolver. No Portugal do século XXI, ainda há quem sofra na pele o drama de ter nascido com a pele errada. A questão, porém, pouco interessa aos activistas narcisistas, mais apostados no fulgor das suas pessoas do que na sorte dos que deveras sofrem. E assim vamos vivendo.



*Prova de vida (29) faz parte de uma série de perfis 

Historiador

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