Jessé Souza, advogado, sociólogo e escritor brasileiro, contou ao DN o que o motivou a escrever O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos, o último dos seus mais de 20 livros, na esteira dos sucessos A Ralé Brasileira, de 2009, ou A Elite do Atraso: da Escravidão a Bolsonaro, de 2017. O autor, nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, há 60 anos, lembra que 70% dos brancos pobres brasileiros votaram em Jair Bolsonaro nas presidenciais de 2018 e 2022 mas que negros evangélicos também foram seduzidos. Para o escritor, “eles não querem saber se têm saúde e educação e preocupam-se mesmo em que o filho não se torne homossexual na escola”. “Muita gente em pesquisas de opinião dizia que Bolsonaro era horrível em tudo mas que defendia a família e por isso votariam nele. O facto é que quando se está lidando com um povo de humilhados completamente desorientados eles podem ser manipulados a bel prazer”, completa. Defende que a extrema direita dos EUA já não combate o marxismo ou o comunismo, entretanto derrotados, mas sim as instituições e as conquistas sociais, humanas e culturais. De que forma essa extrema-direita dos EUA penetrou no Brasil? Sim, essa extrema-direita penetrou no Brasil e no mundo inteiro. Ela é uma resposta alternativa ao saque financeiro. Você rouba todo o mundo, dá para uma meia dúzia e as vítimas saqueadas ficam com raiva justa. Mas ninguém explica a essas vítimas, nem a imprensa, que é privada, quem o saqueou. Então elas acham, no caso brasileiro, que foi o nordestino que se beneficia do Bolsa Família, o negro da periferia, que é considerado bandido, etc. O que a extrema-direita busca é aumentar o número de supostos algozes, quando o grande algoz é quem está lá em cima a fazer o tal saque financeiro, e assim essas vítimas encontram bóias de salvação moral porque a extrema-direita, com a ajuda da pregação evangélica, lhe diz que os responsáveis pela situação dele são o tal nordestino, o tal bandido. Isso permite à vítima canalizar a raiva justa que sente para alguém ainda mais frágil. E isso sucede da mesma forma em todos os lugares. Em Portugal, o Chega, equivalente ao bolsonarismo, é hoje o mais votado em regiões do país que eram tradicionalmente de esquerda. É, portanto, nos seus antípodas que a extrema direita recruta adeptos?Não é novidade que o eleitorado de esquerda tenha rumado à extrema-direita. A esquerda antes votava contra o sistema explorador e agora quem tem essa bandeira é a extrema-direita - obviamente mentindo. Os pobres manipulados que não entendem quem os rouba, até porque o capital comprou a imprensa, num contexto de imbecilização, optam por quem se diz anti-sistema, pela extrema-direita. Defende que o segmento que mais vota Bolsonaro é o de brancos pobres. São eles, até por conviverem com negros pobres, os mais suscetíveis ao discurso da extrema-direita?Cerca de 70% dos brancos pobres, ou seja, quem ganha até cinco salários mínimos [cerca de 1200 euros], em São Paulo e no Sul, identifica-se com Bolsonaro, ele próprio originalmente um branco pobre dessa região que sente raiva dos brancos ricos das classes médias altas que tiveram mais acesso a escolas e sente-se injustiçado. E essa raiva que o Bolsonaro incorpora performaticamente é um elemento poderoso de ligação emocional que se viu, agora, representado na presidência e noutros cargos da política. Mas muita gente negra e mestiça também votou no Bolsonaro. E eu tentei perceber quem eram: são na sua maioria evangélicos, que não querem saber se têm saúde e educação e preocupam-se mesmo em que o filho não se torne homossexual na escola. Muita gente em pesquisas dizia que Bolsonaro era horrível em tudo mas que defendia a família e por isso votariam nele. O facto é que quando se está lidando com um povo de humilhados completamente desorientados eles podem ser manipulados a bel prazer. .O neopentecostalismo evangélico é chave no discurso da extrema-direita no Brasil. Os líderes do Chega falam muito em Deus mas usando a igreja católica. Não há conquista de votos dos mais pobres pela extrema-direita sem o recurso à religião?Se você não é informado, não tem acesso a conhecimento nem a uma esfera pública democrática, só a religião esclarece o mundo - isso sucede há milénios. É uma forma emotiva de ligar você a um pai supremo que retira possibilidade de reflexão e de crítica. A religião é, sem dúvida, o melhor meio para manipular. E o que a esquerda poderá fazer?O que a esquerda pode fazer, no caso da brasileira, é o que ela tem feito agora: explicar que os impostos sobre operações financeiras que o governo queria aplicar para tornar mais justa a tributação foram derrubados pelo Congresso comprado, pela imprensa venal e pelos multimilionários que mandam nisto tudo. E é essa constelação de poderes unidos que explica os humilhados e os pobres deste país que votam na extrema-direita. O governo, via memes, está finalmente a explicar isso e essa é a saída ou uma das saídas da esquerda.