Amit Shem Tov, irmão do Omer Shem Tov, Michael Levy, irmão de Or Levy, e Daniel Miran, pai de Omri Miran, estiveram em Lisboa para chamar a atenção das autoridades portuguesas para a situação dos seus familiares,
Amit Shem Tov, irmão do Omer Shem Tov, Michael Levy, irmão de Or Levy, e Daniel Miran, pai de Omri Miran, estiveram em Lisboa para chamar a atenção das autoridades portuguesas para a situação dos seus familiares,Rita Chantre / Global Imagens

“Já perdi a conta às vezes em que disseram que um acordo para libertar reféns estaria para breve”

Faz amanhã quatro meses que Daniel Miran ficou sem notícias do filho Omri, que Michael Levy prometeu aos pais que traria o irmão Or de volta a casa e que Amit Shem Tov reconheceu num vídeo do Hamas o irmão Omer. Os três têm ligação a Portugal e estão entre as 130 pessoas que continuam nas mãos do grupo terrorista.
Publicado a
Atualizado a

Daniel Miran, ou simplesmente Dani, tem 78 anos e deixou de fazer a barba a 7 de outubro. Duvida que o filho, Omri, de 46, que estará algures num túnel da Faixa de Gaza nas mãos do Hamas, tenha acesso a uma lâmina de barbear e quer ser solidário. E recebê-lo um dia de braços abertos com esse sinal de que não descansou enquanto ele não foi posto em liberdade. Mesmo se os restantes filhos estão preocupados e até chateados com o pai. “Todas as sextas-feiras costumávamos estar juntos, a refeição de sexta-feira é muito importante em Israel, e desde então não estivemos mais”, explicou ao DN, em Lisboa, onde esteve para tentar sensibilizar as autoridades portuguesas para a situação do filho, cuja mulher e filhas têm dupla nacionalidade. 

Viúvo há 32 anos, Dani lamentou que a família esteja “quase partida”, falando do impacto não apenas físico, mas também emocional do rapto de Omri. “Todos os dias acordo com a expectativa de que ele vai voltar. E as horas passam, e os dias passam.” E já passaram 123. Dani trocou a sua casa no sul de Israel por Telavive, onde vive junto à praça dos reféns, falando e contando a história de Omri para quem quiser ouvir ou reunindo com políticos - mesmo dizendo ser um “simples agricultor e não um diplomata”, admitindo que para além de mais pressão e sanções contra o Hamas, não sabe o que pedir às autoridades portuguesas. Ou sabe: tudo o que for necessário para a libertação do filho e dos restantes 131 reféns.

Enquanto não volta a abraçar Omri, recorda as horas de dor em que pensou que o filho tinha morrido. Na manhã de 7 de outubro, Dani ligou a televisão por volta das 6h40 e viu o alerta vermelho nas comunidades perto da Faixa de Gaza, como Nahal Oz, onde Omri vivia com a mulher Lishai e as duas filhas, a cinco horas de distância. Ligou-lhe a perguntar o que se passava, se estava bem, e ele disse-lhe que sim, que estavam só a ser alvo dos rockets habituais. 

Mas, através da televisão, Dani descobriu depois que o Hamas tinha entrado no kibbutz onde o filho vivia, que estava a matar todas as pessoas que via à frente, independentemente de serem velhos, mulheres ou crianças. Voltou a telefonar ao filho. “Estou perto da janela e vejo muitos terroristas no meu kibbutz”, contou-lhe Omri, dizendo que tinha levado Lishai e as filhas para o abrigo e que tinha ido buscar duas facas à cozinha para se sentir mais confiante. Pediu ainda ao pai para não voltar a ligar, com receio que os “terroristas” ouvissem o barulho. Mas continuaram a trocar mensagens até às 10h40. “A última dizia que estavam bem.” 

Depois veio o silêncio e, para Dani, isso significava que todos tinham morrido. “Comecei a chorar. Tinha perdido o meu filho, a minha nora, as minhas duas netas...” E continuou a chorar até às 18h00, quando a mãe de Lishai lhe disse que o filho tinha sido raptado, mas que a nora e as filhas estavam bem. “Fiquei muito feliz. Foi uma facada no meu coração saber que ele tinha sido raptado, mas pelo menos estava vivo e elas também.” 

Daniel mostra uma medalha onde se lê "Bring Omri Home", tragam o Omri para casa. FOTO: Rita Chantre/Global Imagens

Lishai contou-lhe mais tarde o que aconteceu durante aquele silêncio. Os militantes do Hamas tinham usado um jovem do kibbutz para ir, de porta em porta, pedir para entrar. Omri abriu-lhe a porta e todos foram levados para a casa do vizinho, cuja filha mais velha já tinha sido morta. Eventualmente, disseram aos dois homens que ou iam com eles ou as famílias morriam. “Amo-te, cuida de ti, não sejas um herói”, disse-lhe Lishai antes de ele se ir embora. E desde então não souberam mais nada sobre ele. 

O urso de peluche de Almog

É preciso olhar mais do que uma vez para perceber que o rosto sorridente que se vê na T-shirt de Michael Levy não é o seu, tal as parecenças que tem com o irmão Or Levy, oito anos mais novo. A história do que aconteceu a 7 de outubro é contada numa cadência de quem já repetiu os pormenores da tragédia dezenas de vezes nos últimos 123 dias, apesar de a emoção ser a de quem está a fazer o relato pela primeira vez.

“O meu irmão e a mulher queriam fazer uma pausa na rotina louca, ambos são muito bem sucedidos nos seus empregos, e foram ao festival Supernova naquela mesma manhã”, contou ao DN, explicando que deixaram o filho de dois anos com os avós. “Chegaram lá e tiveram que correr imediatamente para um abrigo, não muito longe do local do festival, por causa do ataque com mísseis. Esconderam-se por alguns minutos e pensavam que estava tudo bem. Mas minutos depois, um grupo de terroristas chegou e começou a atirar granadas e a pulverizar o abrigo com balas.” O irmão foi raptado, mas a mulher, Eynav, foi morta ali. “O pior é que o Or teve que ver a mulher ser assassinada à frente dos seus olhos. Ela era a sua alma gémea. Só consigo imaginar o que sentiu.” Nesse dia morreram cerca de 1200 pessoas, segundo Israel.

Não foi só a vida de Or que mudou, a de Michael também. “Naquela manhã, soube que a minha missão na vida era trazê-lo de volta. Prometi aos meus pais, não sei como tive a coragem de o fazer, mas prometi que o traria de volta. E deixei tudo para trás”, lamentou, dizendo que tem três filhas que raramente vê. “Parte-me o coração ver as gémeas de seis anos sempre a falar disto. A minha filha não quer ir à escola, não quer estar com os amigos. Fica em casa a questionar se vamos voltar vivos ou quem vai ficar com o pequeno Almog”, o primo. 

Apesar de só ter dois anos, Almog também percebe o que se passa. “Não podemos dizer a palavra mãe ou pai ao pé dele, porque ele começa imediatamente a chorar”, explicou Michael, que traz consigo um urso de peluche do sobrinho. “Trago-o sempre comigo para me lembrar que tenho que continuar. Nem sempre é fácil levantar-me de manhã, num lugar qualquer do mundo, e continuar a falar disto.” Esta é a sétima viagem que Michael faz para falar do caso do irmão, a segunda a Portugal, país para o qual tanto ele como Or pensaram mudar-se antes de tudo acontecer. “Quem sabe possamos voltar a pensar nesse plano.”

Michael Levy, irmão de Or, com o urso de peluche do sobrinho de dois anos, Almog. FOTO: Rita Chantre/Global Imagens

Michael disse, em inglês, que sente muito a falta do irmão, não sabendo que em português existe a palavra “saudade” que vai para lá da ideia de ausência e que traduz melhor os seus sentimentos. E que imagina “50 vezes por dia” como será o momento em que, finalmente, vai reencontrar Or, brincando que, como irmão mais velho, lhe vai bater por causa de tudo o que fez a família passar. E contou que é nos pequenos momentos que a ausência do irmão é mais sentida. “Costumávamos ir ver jogos de basquetebol juntos e sinto falta disso e de estarmos felizes quando a nossa equipa ganhava”, disse, admitindo contudo que a equipa pela qual ambos torcem é tão má que até tem vergonha de dizer qual é.

A camisola n.º 9 de Ronaldo

O pai de Amit e Omer Shem Tov tem nacionalidade portuguesa, mas foi a camisola do brasileiro Ronaldo, com o número 9, que permitiu à família descobrir que Omer tinha sido raptado e levado pelo Hamas a 7 de outubro. Amit mostra no telemóvel o vídeo que foi publicado pelo grupo terrorista, onde o irmão de 21 anos (feitos já em cativeiro) surge com o rosto desfocado e as mãos atadas atrás das costas, nas traseiras de uma carrinha. A camisola e as tatuagens ajudaram a identificá-lo. 

Amit conta que a história de dia 7 começa na véspera, quando a família se reuniu para o jantar do Shabbat. “O Omer gosta muito destes jantares, mas desta vez teve que sair mais cedo, para ir para o festival. Disse-lhe adeus, diverte-te, até amanhã.” No sábado, a família acordou ao som das bombas e dos alarmes - “infelizmente é algo a que estamos habituados em Israel” - e telefonou a Omer para lhe dizer que voltasse para casa. “Ele disse que estava a caminho do carro, que ia sair.” 

Quando voltaram a ligar, mais tarde, a situação era mais complicada. “O meu irmão dizia que ouvia tiros e gritos em árabe e que, junto com dois amigos, tinham chegado ao carro, mas não conseguiam sair, porque havia um engarrafamento.” Decidiram então tentar fugir a pé, tendo ligado a outro amigo, que já tinha saído do festival, para que os viesse buscar. “Ele disse que o amigo o tinha ido buscar e enviou-nos a localização dele ao vivo, para seguirmos. Foi a última vez que falámos com ele. Entretanto, vimos que o carro estava a ir em direção a Gaza.”

Durante todo o dia o pai de Amit e Omer procurou pelo filho nos hospitais, em qualquer canto que pudesse estar. Até que alguém partilhou com a família o vídeo em que se via Omer a ser levado. “Quando o reconheci, fui-me abaixo, não sabia o que dizer ou fazer. Mostrei o vídeo à minha mãe, que continuava em negação, não queria acreditar”, explicou Amit. A mãe acreditava que ele pudesse ter ficado sem bateria no telemóvel, que estivesse nalgum abrigo sem rede ou escondido algures, à espera que os militares o fossem buscar. “A minha mãe começou a chorar como nunca a vi. Não desejo a nenhuma mãe do mundo a dor que a minha mãe sentiu naquele dia. A nenhuma outra família.”

Amit Shem Tov, irmão do Omer Shem Tov. FOTO: Rita Chantre/Global Imagens

Os amigos que foram sequestrados junto com Omer foram libertados no final de novembro, durante uma pausa nos combates que permitiu a libertação de uma centena de reféns - a maioria mulheres, crianças e idosos. “Foi um misto de felicidade e de inveja. Estávamos felizes porque eles se reuniram com as famílias, mas ao mesmo tempo queríamos que tivéssemos sido nós”, admitiu Amit. Ainda assim, foi o momento em que tiveram finalmente notícias dele. 

“Os amigos deram força uns aos outros, Omer ajudou a ligar outro que ficou ferido. Contaram que havia momentos de silêncio e de tristeza, mas também de riso. Sabíamos que ele era forte, mas não sabíamos que era tão forte”, explicou Amit, dizendo que o irmão tem asma e não tinha consigo o inalador e tem também doença celíaca. “Ele não pode comer nada com glúten, porque fica com problemas de estômago, mas a maior parte da comida que lhe dão é pão pita e ele come, porque quer resistir, apesar de depois sofrer de dores. Também por isso tem que ser libertado, para ter acesso a medicamentos.”

Libertação?

Apesar de estar confiante de que Omri será libertado, Dani não acredita na atual negociação entre o governo israelita e o Hamas, com a mediação do Qatar, do Egito, dos EUA e de outros, possa chegar a bom porto. “Podem falar o que quiserem, mas até Yahya Sinwar estar envolvido, nada vai acontecer”, explicou, referindo-se ao líder do grupo terrorista na Faixa de Gaza, inimigo público número um de Israel. “Um acordo ainda está muito distante, porque existem dois Hamas. Existe o Hamas interno, de Sinwar, e o Hamas externo, que é tudo o resto e que é com quem todos estão a falar. E esses, que estão sentados no Qatar, na Turquia, onde quer que seja, não podem tomar a decisão. Porque é Sinwar que tem o controlo da Faixa de Gaza e de todos os terroristas”, explicou.

As notícias sobre supostas negociações para a libertação dos reféns são seguidas de perto por Michael, mas sempre com muita desconfiança. “Na realidade tento não lidar com esses rumores o tempo todo, porque oiço-os praticamente desde o primeiro dia. Já perdi a conta às vezes em que disseram que um acordo para libertar reféns estaria para em breve. E depois fiquei desapontado. Por isso prefiro não pensar nisso como estando prestes a acontecer .” Entretanto, continua a contar a história do irmão a quem a quer ouvir, tal como as famílias de todos os reféns que estão há quase quatro meses na Faixa de Gaza.

susana.f.salvador@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt