“Já perdi a conta às vezes em que disseram que um acordo para libertar reféns estaria para breve”
Daniel Miran, ou simplesmente Dani, tem 78 anos e deixou de fazer a barba a 7 de outubro. Duvida que o filho, Omri, de 46, que estará algures num túnel da Faixa de Gaza nas mãos do Hamas, tenha acesso a uma lâmina de barbear e quer ser solidário. E recebê-lo um dia de braços abertos com esse sinal de que não descansou enquanto ele não foi posto em liberdade. Mesmo se os restantes filhos estão preocupados e até chateados com o pai. “Todas as sextas-feiras costumávamos estar juntos, a refeição de sexta-feira é muito importante em Israel, e desde então não estivemos mais”, explicou ao DN, em Lisboa, onde esteve para tentar sensibilizar as autoridades portuguesas para a situação do filho, cuja mulher e filhas têm dupla nacionalidade.
Viúvo há 32 anos, Dani lamentou que a família esteja “quase partida”, falando do impacto não apenas físico, mas também emocional do rapto de Omri. “Todos os dias acordo com a expectativa de que ele vai voltar. E as horas passam, e os dias passam.” E já passaram 123. Dani trocou a sua casa no sul de Israel por Telavive, onde vive junto à praça dos reféns, falando e contando a história de Omri para quem quiser ouvir ou reunindo com políticos - mesmo dizendo ser um “simples agricultor e não um diplomata”, admitindo que para além de mais pressão e sanções contra o Hamas, não sabe o que pedir às autoridades portuguesas. Ou sabe: tudo o que for necessário para a libertação do filho e dos restantes 131 reféns.
Enquanto não volta a abraçar Omri, recorda as horas de dor em que pensou que o filho tinha morrido. Na manhã de 7 de outubro, Dani ligou a televisão por volta das 6h40 e viu o alerta vermelho nas comunidades perto da Faixa de Gaza, como Nahal Oz, onde Omri vivia com a mulher Lishai e as duas filhas, a cinco horas de distância. Ligou-lhe a perguntar o que se passava, se estava bem, e ele disse-lhe que sim, que estavam só a ser alvo dos rockets habituais.
Mas, através da televisão, Dani descobriu depois que o Hamas tinha entrado no kibbutz onde o filho vivia, que estava a matar todas as pessoas que via à frente, independentemente de serem velhos, mulheres ou crianças. Voltou a telefonar ao filho. “Estou perto da janela e vejo muitos terroristas no meu kibbutz”, contou-lhe Omri, dizendo que tinha levado Lishai e as filhas para o abrigo e que tinha ido buscar duas facas à cozinha para se sentir mais confiante. Pediu ainda ao pai para não voltar a ligar, com receio que os “terroristas” ouvissem o barulho. Mas continuaram a trocar mensagens até às 10h40. “A última dizia que estavam bem.”
Depois veio o silêncio e, para Dani, isso significava que todos tinham morrido. “Comecei a chorar. Tinha perdido o meu filho, a minha nora, as minhas duas netas...” E continuou a chorar até às 18h00, quando a mãe de Lishai lhe disse que o filho tinha sido raptado, mas que a nora e as filhas estavam bem. “Fiquei muito feliz. Foi uma facada no meu coração saber que ele tinha sido raptado, mas pelo menos estava vivo e elas também.”
Lishai contou-lhe mais tarde o que aconteceu durante aquele silêncio. Os militantes do Hamas tinham usado um jovem do kibbutz para ir, de porta em porta, pedir para entrar. Omri abriu-lhe a porta e todos foram levados para a casa do vizinho, cuja filha mais velha já tinha sido morta. Eventualmente, disseram aos dois homens que ou iam com eles ou as famílias morriam. “Amo-te, cuida de ti, não sejas um herói”, disse-lhe Lishai antes de ele se ir embora. E desde então não souberam mais nada sobre ele.
O urso de peluche de Almog
É preciso olhar mais do que uma vez para perceber que o rosto sorridente que se vê na T-shirt de Michael Levy não é o seu, tal as parecenças que tem com o irmão Or Levy, oito anos mais novo. A história do que aconteceu a 7 de outubro é contada numa cadência de quem já repetiu os pormenores da tragédia dezenas de vezes nos últimos 123 dias, apesar de a emoção ser a de quem está a fazer o relato pela primeira vez.
“O meu irmão e a mulher queriam fazer uma pausa na rotina louca, ambos são muito bem sucedidos nos seus empregos, e foram ao festival Supernova naquela mesma manhã”, contou ao DN, explicando que deixaram o filho de dois anos com os avós. “Chegaram lá e tiveram que correr imediatamente para um abrigo, não muito longe do local do festival, por causa do ataque com mísseis. Esconderam-se por alguns minutos e pensavam que estava tudo bem. Mas minutos depois, um grupo de terroristas chegou e começou a atirar granadas e a pulverizar o abrigo com balas.” O irmão foi raptado, mas a mulher, Eynav, foi morta ali. “O pior é que o Or teve que ver a mulher ser assassinada à frente dos seus olhos. Ela era a sua alma gémea. Só consigo imaginar o que sentiu.” Nesse dia morreram cerca de 1200 pessoas, segundo Israel.
Não foi só a vida de Or que mudou, a de Michael também. “Naquela manhã, soube que a minha missão na vida era trazê-lo de volta. Prometi aos meus pais, não sei como tive a coragem de o fazer, mas prometi que o traria de volta. E deixei tudo para trás”, lamentou, dizendo que tem três filhas que raramente vê. “Parte-me o coração ver as gémeas de seis anos sempre a falar disto. A minha filha não quer ir à escola, não quer estar com os amigos. Fica em casa a questionar se vamos voltar vivos ou quem vai ficar com o pequeno Almog”, o primo.
Apesar de só ter dois anos, Almog também percebe o que se passa. “Não podemos dizer a palavra mãe ou pai ao pé dele, porque ele começa imediatamente a chorar”, explicou Michael, que traz consigo um urso de peluche do sobrinho. “Trago-o sempre comigo para me lembrar que tenho que continuar. Nem sempre é fácil levantar-me de manhã, num lugar qualquer do mundo, e continuar a falar disto.” Esta é a sétima viagem que Michael faz para falar do caso do irmão, a segunda a Portugal, país para o qual tanto ele como Or pensaram mudar-se antes de tudo acontecer. “Quem sabe possamos voltar a pensar nesse plano.”
Michael disse, em inglês, que sente muito a falta do irmão, não sabendo que em português existe a palavra “saudade” que vai para lá da ideia de ausência e que traduz melhor os seus sentimentos. E que imagina “50 vezes por dia” como será o momento em que, finalmente, vai reencontrar Or, brincando que, como irmão mais velho, lhe vai bater por causa de tudo o que fez a família passar. E contou que é nos pequenos momentos que a ausência do irmão é mais sentida. “Costumávamos ir ver jogos de basquetebol juntos e sinto falta disso e de estarmos felizes quando a nossa equipa ganhava”, disse, admitindo contudo que a equipa pela qual ambos torcem é tão má que até tem vergonha de dizer qual é.
A camisola n.º 9 de Ronaldo
O pai de Amit e Omer Shem Tov tem nacionalidade portuguesa, mas foi a camisola do brasileiro Ronaldo, com o número 9, que permitiu à família descobrir que Omer tinha sido raptado e levado pelo Hamas a 7 de outubro. Amit mostra no telemóvel o vídeo que foi publicado pelo grupo terrorista, onde o irmão de 21 anos (feitos já em cativeiro) surge com o rosto desfocado e as mãos atadas atrás das costas, nas traseiras de uma carrinha. A camisola e as tatuagens ajudaram a identificá-lo.
Amit conta que a história de dia 7 começa na véspera, quando a família se reuniu para o jantar do Shabbat. “O Omer gosta muito destes jantares, mas desta vez teve que sair mais cedo, para ir para o festival. Disse-lhe adeus, diverte-te, até amanhã.” No sábado, a família acordou ao som das bombas e dos alarmes - “infelizmente é algo a que estamos habituados em Israel” - e telefonou a Omer para lhe dizer que voltasse para casa. “Ele disse que estava a caminho do carro, que ia sair.”
Quando voltaram a ligar, mais tarde, a situação era mais complicada. “O meu irmão dizia que ouvia tiros e gritos em árabe e que, junto com dois amigos, tinham chegado ao carro, mas não conseguiam sair, porque havia um engarrafamento.” Decidiram então tentar fugir a pé, tendo ligado a outro amigo, que já tinha saído do festival, para que os viesse buscar. “Ele disse que o amigo o tinha ido buscar e enviou-nos a localização dele ao vivo, para seguirmos. Foi a última vez que falámos com ele. Entretanto, vimos que o carro estava a ir em direção a Gaza.”
Durante todo o dia o pai de Amit e Omer procurou pelo filho nos hospitais, em qualquer canto que pudesse estar. Até que alguém partilhou com a família o vídeo em que se via Omer a ser levado. “Quando o reconheci, fui-me abaixo, não sabia o que dizer ou fazer. Mostrei o vídeo à minha mãe, que continuava em negação, não queria acreditar”, explicou Amit. A mãe acreditava que ele pudesse ter ficado sem bateria no telemóvel, que estivesse nalgum abrigo sem rede ou escondido algures, à espera que os militares o fossem buscar. “A minha mãe começou a chorar como nunca a vi. Não desejo a nenhuma mãe do mundo a dor que a minha mãe sentiu naquele dia. A nenhuma outra família.”
Os amigos que foram sequestrados junto com Omer foram libertados no final de novembro, durante uma pausa nos combates que permitiu a libertação de uma centena de reféns - a maioria mulheres, crianças e idosos. “Foi um misto de felicidade e de inveja. Estávamos felizes porque eles se reuniram com as famílias, mas ao mesmo tempo queríamos que tivéssemos sido nós”, admitiu Amit. Ainda assim, foi o momento em que tiveram finalmente notícias dele.
“Os amigos deram força uns aos outros, Omer ajudou a ligar outro que ficou ferido. Contaram que havia momentos de silêncio e de tristeza, mas também de riso. Sabíamos que ele era forte, mas não sabíamos que era tão forte”, explicou Amit, dizendo que o irmão tem asma e não tinha consigo o inalador e tem também doença celíaca. “Ele não pode comer nada com glúten, porque fica com problemas de estômago, mas a maior parte da comida que lhe dão é pão pita e ele come, porque quer resistir, apesar de depois sofrer de dores. Também por isso tem que ser libertado, para ter acesso a medicamentos.”
Libertação?
Apesar de estar confiante de que Omri será libertado, Dani não acredita na atual negociação entre o governo israelita e o Hamas, com a mediação do Qatar, do Egito, dos EUA e de outros, possa chegar a bom porto. “Podem falar o que quiserem, mas até Yahya Sinwar estar envolvido, nada vai acontecer”, explicou, referindo-se ao líder do grupo terrorista na Faixa de Gaza, inimigo público número um de Israel. “Um acordo ainda está muito distante, porque existem dois Hamas. Existe o Hamas interno, de Sinwar, e o Hamas externo, que é tudo o resto e que é com quem todos estão a falar. E esses, que estão sentados no Qatar, na Turquia, onde quer que seja, não podem tomar a decisão. Porque é Sinwar que tem o controlo da Faixa de Gaza e de todos os terroristas”, explicou.
As notícias sobre supostas negociações para a libertação dos reféns são seguidas de perto por Michael, mas sempre com muita desconfiança. “Na realidade tento não lidar com esses rumores o tempo todo, porque oiço-os praticamente desde o primeiro dia. Já perdi a conta às vezes em que disseram que um acordo para libertar reféns estaria para em breve. E depois fiquei desapontado. Por isso prefiro não pensar nisso como estando prestes a acontecer .” Entretanto, continua a contar a história do irmão a quem a quer ouvir, tal como as famílias de todos os reféns que estão há quase quatro meses na Faixa de Gaza.
susana.f.salvador@dn.pt