Já não é “a Economia, estúpido”
Bill Clinton costuma dizer que o cargo de Presidente dos EUA é o emprego mais difícil de todos, porque o patrão – o povo americano – fica quase dois anos a avaliar o candidato ao lugar, que passa esse tempo insano a tentar convencer que é o mais indicado para a escolha.
As eleições presidenciais norte-americanas são a mais louca corrida do mundo. Ganhá-las implica muito mais do que o exercício geral de “ter mais votos que o adversário” (Al Gore e Hillary Clinton que o digam).
É preciso juntar uma vasta quantidade de qualidades e características: resistência física (dorme-se muito pouco), sangue de barata (a qualquer momento pode surgir um escândalo, um ataque, viragem dramática), uma equipa muito bem escolhida (despedir conselheiros e assessores a meio da campanha é um clássico), uma estratégia certeira (é preciso decidir em que estados se gasta mais dinheiro e se investe mais tempo no terreno).
A política americana é muito mais focada em personalidades do que em estruturas partidárias. O candidato é quase tudo e vale pelo carisma e pela capacidade que possa revelar em transmitir a mensagem. Mas para ganhar uma eleição presidencial é preciso ter competência em três áreas: na logística (como organizar comícios em três ou quatro estados diferentes num só dia?), no marketing e comunicação (como garantir que as melhores tiradas do candidato são devidamente valorizadas e potenciais “gaffes” passem despercebidas?) e nas finanças (como arrecadar dinheiro para manter a campanha robusta até à eleição?).
Iowa, aqui vamos nós
A eleição de 2024, na prática, já começou há muito. De tal modo que quase todos se atrevem a arriscar que o duelo final marcará uma repetição dos nomeados de 2020: Biden pelos democratas, Trump pelos republicanos. Basta fazer uma rápida consulta pela história das eleições presidenciais norte-americanas, porém, para percebermos que vale a pena colocar uma dose de prudência. É que podem sempre aparecer surpresas.
O arranque oficial das primárias ocorrerá no Iowa. Já na sexta-feira, dia 12, os democratas iniciarão o seu "caucus", com votação online e por correio, num processo que se prolongará até 5 de março. A votação presencial está marcada para 15 de janeiro. No mesmo dia acontecerá o "caucus" republicano do Iowa.
Será num dos mais pequenos estados norte-americanos (três milhões de habitantes), com distribuição demográfica muito menos diversa que a média nacional (90% de brancos, apenas 7% hispânicos e 4% negros) que a eleição EUA-2024 terá o seu tiro de partida.
Do lado democrata, o Iowa valerá 46 delegados (num total de 4532 da Convenção Democrata), no campo republicano estarão em disputa 40 (num total de 2469). Ou seja, apenas 1% dos delegados democratas e 1,6% dos republicanos sairão da primeira votação estadual. Não seria significativo estatisticamente. Mas pode ter uma grande importância na dinâmica que será criada para as corridas seguintes.
Haley ou DeSantis em segundo?
Se do lado democrata, Biden se prepara para uma vitória fácil no Iowa (sondagem Emerson College dá 69% a Joe Biden, 5% à autora de livros de autoajuda Marianne Williamson e 1% ao congressista Dean Phillips, do Minnesota), no campo republicano espera-se que Trump vença de forma confortável, mas será relevante saber quem ficará em segundo. O resto (Ramaswamy, Christie, Hutchinson) não tem relevância.
Se a ex-embaixadora dos EUA na ONU e antiga governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, ultrapassar o governador da Florida, Ron DeSantis, Nikki fica definitivamente lançada como a "challenger" do superfavorito à nomeação, Trump.
Há dois ou três meses, DeSantis aparecia muitos pontos à frente de Haley no Iowa. Mas as duas sondagens mais recentes para o estado de arranque revelam que estão empatados no na corrida ao segundo lugar: no estudo Emerson College, Nikki tem 17% e DeSantis 15%, com Trump nuns inatingíveis 50%; na pesquisa FOX Business DeSantis tem 18%, Nikki 16%, com Trump a “golear” nos seus 52%.
E depois o New Hampshire…
Ainda é possível que Trump perca a nomeação? É. Mas é altamente improvável. Descontando eventuais (prováveis) condenações judiciais nos próximos meses e focando-nos nas questões políticas, só uma Nikki a surpreender no próximo dia 15, com um segundo lugar destacado, poderá alavancá-la para possível vitória sobre Trump no New Hampshire.
Aí as coisas já são diferentes. Marcadas para 23 de janeiro, as primárias no New Hampshire apontam o único fator de risco para Trump. Sondagem American Research Group feita nos primeiros dias de 2024 mostra diferença curta entre Trump e Haley: 37% para Donald, 33% para Nikki. Ora, se no Iowa o resultado de Nikki for entusiasmante, Trump pode ter o primeiro grande teste na semana que medeia o estado de arranque e o New Hampshire para conseguir segurar a liderança curta nesse estado.
Numa eleição realizada toda ao mesmo tempo, o Iowa e o New Hampshire não teriam qualquer importância. Posicionados assim, os estados de arranque podem decidir grande parte da corrida. Tem sido regra: para obter uma nomeação presidencial, é preciso ganhar, ou pelo menos ficar em segundo, num desses dois estados.
Raríssima exceção: Joe Biden em 2020. Foi quarto no Iowa e quinto no New Hampshire. A sua campanha parecia acabada. Mas na Carolina do Sul arrasou com 30 pontos de vantagem sobre Bernie Sanders, o que levou a que Pete Buttigieg, Beto O’ Rourke e Amy Klobuchar a desistirem a favor de Biden como solução moderada e centrista, para evitar uma nomeação da ala esquerdista (Sanders ou Warren). Depois da Super Terça-Feira, a vantagem de Biden passou a ser tão esmagadora que até esses dois senadores esquerdistas se juntaram a Joe. Até nisso o Presidente Biden é um caso à parte.
Biden ainda pode ganhar – mas algo terá que mudar
Os dados são muito preocupantes para as perspetivas de reeleição de Biden. Dois terços dos democratas preferiam que o candidato fosse outro. Mesmo sem contar com oposição de outros possíveis candidatos credíveis no campo democrata (a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer; o secretário dos Transportes, Pete Buttigieg; o governador da Califórnia, Gavin Newsom, todos optaram por não avançar, preferindo esperar por 2028), o apoio a Biden já tremeu um pouco quando Robert Kennedy Jr. começou por concorrer no campo democrata. Como independente, Kennedy pode roubar entre 5 a 10 pontos ao nomeado democrata na eleição geral.
O Presidente tem taxa de aprovação baixíssima (entre os 35 e os 40%, no intervalo mais baixo do pior de Trump). Se olharmos para a Economia, isso não faz sentido. Os EUA cresceram a 5,2% no terceiro trimestre do ano (mais que a China, muito mais que UE e Rússia). A inflação, que passou os 10% no pós-pandemia e nos primeiros meses de invasão russa da Ucrânia, está controlada a ritmo mais rápido do que as melhores previsões anteciparam. As taxas de juro, que também se aproximaram dos 10% na pior fase, estão estabilizadas nos 5%. A taxa de desemprego mantém-se historicamente baixa.
Como explicar que só 33% dos americanos aprova a “Bidenomics”? Um mistério. James Carville, conselheiro da campanha Clinton-92, lançou “mantra” que valeu três décadas: “É a economia, estúpido!”. Olhando para o complexo cenário de 2024, isso já não nos revela quem irá ganhar.
*Germano Almeida é especialista em Política Internacional