Uma das manifestações contra o governo de Netanyahu e pela libertação dos reféns ainda nas mãos do Hamas.
Uma das manifestações contra o governo de Netanyahu e pela libertação dos reféns ainda nas mãos do Hamas. EPA/ABIR SULTAN

Israel: uma sociedade cada vez mais à direita que já não se contenta com a calma entre guerras

A professora Hermann faz o retrato político, o jornalista árabe-israelita Abu Toameh reflete sobre o ataque do Hamas e o coronel na reserva Ben-Shalom fala da nova estratégia em relação às ameaças.
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O ataque de 7 de outubro de 2023 apanhou o mundo de surpresa, mas não mudou o que é considerado o maior foco de tensão no interior de Israel: a divisão política entre direita e esquerda, segundo a cientista política Tamar Hermann. Aquilo que sim mudou, de acordo com Reuven Ben-Shalom, antigo militar das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês), foi a forma como o país encara as ameaças, reagindo de imediato com força para evitar que estas se tornem mais graves. O mundo foi surpreendido, mas para o jornalista árabe-israelita Khaled Abu Toameh, que há mais de 40 anos lida com as questões palestinianas, a surpresa não foi total.

A primeira coisa que a professora Hermann, diretora académica do Centro da Família Viterbi para a Opinião Pública e Investigação Política, diz que é preciso perceber da sociedade israelita é que nem todos os judeus são iguais. Há 44% que são seculares (que é preciso não confundir com ateístas, já que 92% acreditam em Deus, simplesmente dão mais ênfase ao lado democrático do Estado de Israel), enquanto 21% são “tradicionais não-religiosos” (diz o cliché que ao sábado de manhã vão à sinagoga e à tarde vão ao futebol). Há ainda 12% de “tradicionais religiosos”, outros 12% identificam-se como “religiosos nacionais” e 11% são ultra-ortodoxos. As diferentes taxas de natalidade - estes últimos têm em média seis a sete filhos, enquanto os seculares têm três - têm vindo a alterar este balanço de forças, refere a também investigadora sénior no Instituto de Democracia Israelita.

Independentemente do nível de religiosidade, a maior fatia ou a maioria em todos estes grupos considera-se de direita - de 40% entre os seculares (32% de centro e 25% de esquerda) a 86% entre os “religiosos nacionais” (normalmente associada aos movimentos de extrema-direita dos ministros Itamar Ben-Gvir ou Bezalel Smotrich). “Nos anos 1990, costumávamos dizer que a divisão na sociedade israelita era 50/50. Metade de esquerda, metade de direita. Isso já não é assim há muitos anos. Atualmente, só 14% dos cidadãos se declaram de esquerda, com 22,5% de centro e 59% de direita.”

Mas o que significa hoje ser de esquerda ou de direita em Israel? “No passado, dividiam-se pela perceção das pessoas das formas possíveis de resolver a questão israelo-palestiniana. Já não é esse o caso, porque ninguém sabe como resolver essa questão. Portanto, atualmente, é muito semelhante aos democratas e republicanos nos EUA”, disse Hermann.

Desde 2012 que as sondagens perguntam qual é considerado o maior foco de tensão em Israel. Nesse ano, a divisão entre esquerda e direita foi apontada por 9% dos inquiridos, com 48% a considerar que era a divisão entre judeus e árabes dentro da própria sociedade israelita (estes últimos representam cerca de 20% da população). Contudo, em 2024, 48% dos inquiridos consideravam que era a divisão entre esquerda e direita o principal foco de tensão. “Isto porque esquerda e direita não significa só esquerda e direita. Tem a ver com religiosos ou seculares. Votar em Israel tem a ver com questões culturais, mais do que com considerações políticas”, indicou a professora..

Para 94% dos que se identificam com a esquerda, a democracia está em perigo. Mas, à direita, só 38% o consideram. E enquanto para os primeiros a ameaça vem do chefe de governo, Benjamin Netanyahu [também conhecido como Bibi], para os segundos vem do Supremo Tribunal ou do poder judiciário - “a propaganda do governo está a fazer um trabalho incrível a arruinar a imagem do Supremo, com os juízes a serem identificados como sendo da esquerda liberal, apesar de haver neste tribunal mais personalidades conservadoras do que nunca”, desabafa a professora.

Antes do 7 de Outubro, os israelitas estavam na rua contra a reforma judicial de Netanyahu. Desde então protestam contra o governo, para exigir a libertação dos reféns ou, mais recentemente, contestam a demissão do líder da secreta, Ronen Bar. Na prática, são contudo as mesmas pessoas que estão na rua. “O protesto é do campo a que chamamos 'tudo menos Bibi', que é composto pelo centro e pela esquerda”, refere Hermann. “Se o movimento de protesto se conseguisse alargar e ter pessoas que pertencem à direita, isso iria mudar a questão. Mas, até agora, falhámos em alargar para lá dos suspeitos do costume”.

E o que se pode esperar das próximas eleições? “Enquanto o campo de ‘tudo menos Bibi' não irá votar no Likud em nenhuma circunstâncias, os eleitores do Likud estão a voltar a ‘casa’. Muitos eleitores do Likud sentem que pertencer ao partido é familiar. E não deixas a família, não voltas as costas ao teu pai, mesmo que ele tenha cometido algum erro ou feito coisas terríveis. É como uma mafia”, brincou Hermann. “A esquerda em Israel, mas acho que também noutros países, destaca-se na decapitação dos seus líderes quando as coisas não vão bem. Por outro lado, a direita desculpa os líderes por erros grandes porque, na família, não fechas a porta quando a atmosfera ou a comida não é boa”, resume.

Em relação à guerra na Faixa de Gaza, uma sondagem surpreendeu os especialistas. Em janeiro de 2025, quando questionados quem devia controlar o enclave depois do conflito, 29% dos árabes-israelitas responderam um Hamas enfraquecido. Foi a primeira vez que isso aconteceu. “Quanto mais a guerra dura, mais eles criticam as ações das IDF em Gaza”, explica a professora. “Estão numa situação complicada, não querem fazer nada que lance dúvidas sobre a sua lealdade a Israel, mas são sempre suspeitos de ser uma quinta coluna”, refere.

Meia-surpresa

“Muitos judeus acham que somos a quinta coluna, um inimigo desde dentro”, resume o jornalista Khaled Abu Toameh, filho de pai árabe-israelita e mãe palestiniana da Cisjordânia. Foi lá que nasceu, mas cresceu em Jerusalém Oriental, dentro de Israel.

Depois do 7 de Outubro e por causa da sua experiência de mais de 40 anos a lidar com os temas palestinianos, muitas pessoas perguntaram-lhe se tinha ficado surpreendido com o ataque do Hamas “A minha resposta foi e continua a ser ‘sim’ e ‘não’”, explicou. O momento do ataque e a escala dos crimes foi uma surpresa, assim como as falhas de Israel naquele dia, mas não que tenha havido um ataque que considera um resultado direto de uma campanha em massa para “demonizar” os judeus.

“O momento dos ataques foi uma surpresa não porque tivesse acontecido numa manhã de Shabat ou durante um feriado judaico, mas porque estávamos todos convencidos de que o Hamas estava dissuadido, que não estava interessado noutra ronda de combates”, explicou, lembrando que Israel estava a aliviar as restrições a Gaza de uma forma “sem precedentes” desde que o grupo terrorista chegou ao poder em 2007. A 6 de outubro de 2023, 18500 palestinanos tinham autorização para entrar e trabalhar em Israel. E o plano era que chegassem a 30 mil até ao final do ano. “Estávamos convencidos que o Hamas não ia lançar um ataque, porque os palestinianos tinham muito a perder.”

Em relação à violência do ataque, Khaled explica que o Hamas nunca foi um movimento pacífico. “Mas eu já fiz a cobertura de muita violência e o que vimos no 7 de Outubro foi diferente. Não foi o habitual bombista suicida ou ataque à faca num autocarro”, afirmou. Além disso, há a escala. Não só milhares de terroristas do Hamas entraram em Israel, como “palestinianos ordeiros” participaram no ataque. “Pessoalmente, estou muito desiludido. Não vi uma pessoa, nas transmissões ao vivo do ataque, a dizer ‘isto é errado’.”

Outra coisa que o surpreendeu foi a resposta de Israel naquele dia. “Foi um falhanço a todos os níveis”, explicou, indicando por exemplo que os serviços de informação israelitas viram o Hamas construir o seu arsenal e os seus túneis e não fizeram nada. “Um mês antes do ataque, o Hamas e a Jihad Islâmica fizeram um exercício militar junto à fronteira com Israel, simulando uma invasão. Como é que sabemos? Eles revelaram nas redes sociais”, referiu. “Acho que as pessoas em Israel se tornaram um pouco arrogantes e demasiado confiantes. Achavam que eles não iriam ousar fazer nada, que era só conversa.”

O que não surpreendeu o jornalista, que entrevistou no passado vários líderes do Hamas, foi que tenha havido um ataque. “O Hamas fez o que sempre disse que ia fazer. Que era uma jihad, uma guerra santa contra Israel. O objetivo é muito claro. O objetivo é eliminar Israel e substituí-lo por um Estado islâmico. Desde que foi criado em 1988, desde a primeira conferência de imprensa em Gaza onde eu estava, que o Hamas tem sido muito claro e muito consistente na sua mensagem. Dou-lhes crédito por isso.”

Khaled alega ainda que está a decorrer “nas mesquitas, nos media, nas ruas…” uma “campanha massiva para demonizar os judeus”. Algo que não é novo. “Se a mensagem que os líderes palestinianos estão constantemente a passar é a de que os judeus são maus, que roubam a terra, que violam as mulheres, que envenenam a água… então não admira que os jovens palestinianos queiram matar o primeiro judeu que lhes aparecer à frente.” E lamenta que não haja uma “educação para a paz com Israel, mas o contrário. Os corações e as mentes das pessoas estão a ser envenenados diariamente”.

Então o que se pode fazer? Khaled defende que não há futuro enquanto o Hamas estiver na Faixa de Gaza. “Se não tirarmos o Hamas do poder, esqueçam. Vamos continuar a andar às voltas neste círculo vicioso. Se esta guerra acabar e o Hamas ainda estiver ali, é só uma questão de tempo até haver mais 7 de Outubro”, insistiu, falando de uma cultura de “honra, orgulho, dignidade e desafio” que considera melhor morrer à fome do que ceder.

Na opinião do jornalista, só há uma forma de destruir o Hamas: reocupar Gaza - algo que parece estar a querer fazer agora, com um novo chefe de Estado-maior das IDF no controlo. Para Khaled era isso que devia ter acontecido logo desde o início. Israel devia ter entrado, restabelecido um governo militar e anunciado “agora somos nós o governo”, criando uma alternativa ao Hamas.

“Não digo que a reocupação seria permanente e que devíamos reconstruir os colonatos em Gaza. Digo que devíamos criar um governo militar e dizer ao mundo que íamos sair de Gaza, que não íamos gerir escolas ou hospitais. Mas que antes de sair queremos garantias e saber quem vai ficar a mandar.” Num cenário em que Israel tivesse feito isso, acredita que os palestinianos teriam colaborado com as autoridades em apontar onde estavam os reféns. “Porque sabiam que não estávamos lá só por cinco ou seis dias.”

Mas não foi isso que aconteceu. “Israel entrava e saía e voltava a entrar. Enviou a mensagem de que Israel não tinha uma estratégia. Lutava aqui e ali, depois recuava, depois voltava a entrar. Não era claro”, lamenta. Khaled diz que queria ter visto os oficiais das IDF no quartel-general do Hamas, em Gaza, a dizer: eu sou o governo. “Isso teria sido uma mensagem forte. Muitas vidas palestinianas e israelitas teriam sido poupadas. Sendo governo, terias o controlo da ajuda humanitária, que agora é controlada pelo Hamas. E isso dá-te muita influência e poder.”

O jornalista aponta parte da culpa à Administração de Joe Biden. “Cada vez que Israel queria avançar, ouvia ‘não, tens que parar’. Mas também é culpa de Israel”, defende, criticando a falta de estratégia e plano. Agora o cenário é diferente, com Donald Trump na Casa Branca, que parece ter dado carta branca a Netanyahu para fazer o que quiser.

Uma das manifestações contra o governo de Netanyahu e pela libertação dos reféns ainda nas mãos do Hamas.
Uma das manifestações contra o governo de Netanyahu e pela libertação dos reféns ainda nas mãos do Hamas. EPA/MOHAMMED SABER

Um novo conceito

O coronel Reuven Ben-Shalom, já retirado, serviu durante 25 anos como piloto de helicópteros das IDF e foi um dos responsáveis pela cooperação militar entre Israel e os EUA. Quando falou com um grupo de jornalistas internacionais em Telavive, o cessar-fogo na Faixa de Gaza ainda se mantinha. Mas estava prestes a acabar.

“Em Israel, durante muitos anos, tínhamos esta estratégia ou conceito, alguém dirá equívoco, de que precisávamos destas rondas de violência seguidas de períodos de calma. O nosso objetivo, de certa forma, era alcançar esses períodos de calma e tê-los durante o maior tempo possível”, disse o associado do Instituto Internacional de Contraterrorismo. O ataque de 7 de Outubro, no qual cerca de 1200 pessoas morreram e 240 foram levadas pelo Hamas para a Faixa de Gaza (59 ainda lá estão), mudou tudo.

“Isto não está em nenhum documento oficial israelita, mas na minha opinião, a estratégia de segurança nacional mudou completamente. O nosso objetivo já não é a calma. O nosso objetivo é uma nova realidade estratégica no Médio Oriente onde estas ameaças não se estão a formar, não estão prontas a emergir ou a ser lançadas contra nós”, referiu. “E isso vai refletir-se na nossa mentalidade, na nossa cultura, no futuro. Já não vamos ficar sentados a ver o Hezbollah aproximar-se da fronteira a dizer que vamos esperar porque queremos calma. Vamos atacá-lo e vamos eliminá-lo onde quer que seja.”

Segundo Ben-Shalom Israel vai usar as suas capacidades estratégicas para manter a posição e garantir que nenhuma ameaça pode ser lançada diretamente contra Israel. “É uma guarda de frente, é uma zona de segurança, é ir lá fora e garantir que estas ameaças não podem ser lançadas contra nós. É para evitar um 7 de Outubro. É isso que está a acontecer.” E a partir de todas as frentes. Durante anos, Israel pensou que teria que lutar numa ou duas, mas está em sete - o Hamas na Faixa de Gaza, o Hezbollah no Líbano, a tensão na Cisjordânia, os Houthis no Iémen, os grupos na Síria e os no Iraque e, por detrás de tudo, o Irão

Para Ben-Shalom, a “máscara” dos iranianos caiu nesta guerra. “O Irão mostrou-nos o seu verdadeiro rosto. Sabemos o que estamos a enfrentar. Eles operaram diretamente contra Israel, disparando centenas de mísseis contra nós por duas vezes, além de drones e mísseis de cruzeiro, e operaram e lançaram todos os seus ‘representantes’ pela região. Está tudo exposto.” Segundo o especialista, diz que o “eixo iraniano sofreu um duro golpe” nesta guerra, mas ainda não foi derrotado e a grande aposta de Israel é garantir que não tem acesso à bomba nuclear.

A jornalista viajou a convite da EIPA (Associação de Imprensa Europa Israel)

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