Israel implementou um vasto programa de reconhecimento facial em Gaza
Poucos minutos depois de passar por um posto de controlo militar israelita ao longo da autoestrada central da Faixa de Gaza, a 19 de novembro, o poeta palestiniano Mosab Abu Toha foi convidado a sair do meio da multidão. Pôs no chão o filho de três anos, que trazia ao colo, e sentou-se em frente a um jipe militar.
Meia hora mais tarde, Abu Toha ouviu chamarem o seu nome. Depois, vendaram-lhe os olhos e levaram-no para ser interrogado.
“Não fazia ideia do que estava a acontecer ou de como puderam de repente saber o meu nome completo”, disse o homem de 31 anos, que acrescentou não ter ligações ao grupo militante Hamas e que estava a tentar sair de Gaza para o Egito.
Afinal, Abu Toha tinha entrado no raio de ação das câmaras equipadas com tecnologia de reconhecimento facial, segundo três funcionários dos serviços secretos israelitas que falaram sob condição de anonimato. Depois de o seu rosto ter sido digitalizado e identificado, um programa de inteligência artificial descobriu que o poeta constava de uma lista israelita de pessoas procuradas, disseram.
Abu Toha é uma das centenas de palestinianos que foram selecionados por um programa israelita de reconhecimento facial, que até agora não tinha sido divulgado, e que teve início em Gaza no final do ano passado.
O esforço expansivo e experimental está a ser utilizado para efetuar vigilância em massa, recolhendo e catalogando os rostos dos palestinianos sem o seu conhecimento ou consentimento, de acordo com oficiais dos serviços secretos israelitas, oficiais militares e soldados.
A tecnologia foi inicialmente utilizada em Gaza para procurar israelitas que tinham sido feitos reféns pelo Hamas durante os ataques transfronteiriços de 7 de outubro, disseram os funcionários dos serviços secretos. Depois de Israel ter iniciado uma ofensiva terrestre em Gaza, passou a recorrer cada vez mais a este programa para procurar pessoas com ligações ao Hamas ou a outros grupos militantes. Por algumas vezes, a tecnologia assinalou erradamente civis como sendo membros procurados do Hamas, disse um oficial.
O programa de reconhecimento facial, que é gerido pela unidade de inteligência militar de Israel, incluindo a divisão de ciberinteligência Unidade 8200, baseia-se na tecnologia da Corsight, uma empresa privada israelita, disseram quatro oficiais dos serviços secretos. Também utiliza o Google Fotos, afirmaram. Combinadas, estas tecnologias permitem a Israel identificar rostos no meio de multidões e de imagens granuladas provenientes de drones.
Três das pessoas com conhecimento do programa afirmaram que estavam a falar por recearem que se tratasse de uma má utilização de tempo e recursos por parte de Israel.
Um porta-voz do exército israelita recusou-se a comentar a atividade em Gaza, mas disse que os militares “levam a cabo as operações de segurança e de informação necessárias, ao mesmo tempo que fazem esforços significativos para minimizar os danos à população não envolvida”. E acrescentou: “Naturalmente, não nos podemos referir a capacidades operacionais e de informação neste contexto”.
A tecnologia de reconhecimento facial espalhou-se por todo o mundo nos últimos anos, impulsionada por sistemas de Inteligência Artificial (IA) cada vez mais sofisticados. Enquanto alguns países utilizam esta tecnologia para facilitar viagens aéreas, a China e a Rússia utilizaram-na contra grupos minoritários e para reprimir a dissidência. A utilização do reconhecimento facial por Israel em Gaza destaca-se como uma aplicação da tecnologia em contexto de guerra.
Matt Mahmoudi, investigador que acompanha a Amnistia Internacional, afirmou que a utilização do reconhecimento facial por parte de Israel é preocupante porque pode conduzir a “uma desumanização total dos palestinianos”, que deixam de ser vistos como indivíduos. Acrescentou ainda que é pouco provável que os soldados israelitas questionem a tecnologia quando esta identifica uma pessoa como fazendo parte de um grupo militante, apesar de a tecnologia cometer erros.
Israel já utilizou o reconhecimento facial na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, de acordo com um relatório da Amnistia do ano passado, mas o esforço em Gaza vai mais longe.
Na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, os israelitas dispõem de um sistema de reconhecimento facial desenvolvido internamente, denominado Blue Wolf, de acordo com o relatório da Amnistia. Nos postos de controlo em cidades da Cisjordânia, como Hebron, os palestinianos são examinados por câmaras de alta resolução antes de serem autorizados a passar. Os soldados também usam aplicações de smartphones para digitalizar os rostos dos palestinianos e adicioná-los a uma base de dados, segundo consta do relatório.
Em Gaza, de onde Israel se retirou em 2005, não existia qualquer tecnologia de reconhecimento facial. Em vez disso, a vigilância do Hamas em Gaza fez-se através de escutas telefónicas, interrogatórios de prisioneiros palestinianos, recolha de imagens de drones, acesso a contas privadas de redes sociais e ataques informáticos em sistemas de telecomunicações, de acordo com oficiais dos serviços secretos israelitas.
Depois de 7 de outubro, os agentes dos serviços secretos israelitas da Unidade 8200 recorreram a essa vigilância para obter informações sobre os militantes do Hamas que violaram as fronteiras de Israel. A unidade também passou a pente fino as imagens dos ataques feitas pelas câmaras de segurança, bem como os vídeos carregados pelo Hamas nas redes sociais, disse um oficial. Segundo o mesmo, a unidade foi instruída a criar uma “lista de alvos” dos membros do Hamas que participaram do ataque.
A Corsight foi então contratada para criar um programa de reconhecimento facial em Gaza, disseram três oficiais dos serviços secretos israelitas.
A empresa com sede em Telavive afirma no seu site que a sua tecnologia exige que menos de 50% de um rosto seja visível para obter um reconhecimento preciso. Robert Watts, presidente da Corsight, publicou este mês no LinkedIn que a tecnologia de reconhecimento facial poderia funcionar mesmo com “ângulos extremos, (até de drones,) escuridão ou má qualidade”.
A Corsight recusou-se a comentar.
O pessoal da Unidade 8200 depressa descobriu que a tecnologia da Corsight tinha dificuldades quando as imagens eram granuladas e os rostos estavam ocultos, disse um oficial. Quando os militares tentaram identificar os corpos dos israelitas mortos a 7 de outubro, a tecnologia nem sempre funcionou com pessoas cujos rostos tinham sido feridos. Houve também falsos positivos ou casos em que pessoas foram erradamente identificadas como estando ligadas ao Hamas, explicou o oficial.
Para complementar a tecnologia da Corsight, os agentes israelitas utilizaram o Google Fotos, o serviço gratuito de partilha e armazenamento de fotografias da Google, disseram três agentes dos serviços secretos. Ao carregarem uma base de dados de pessoas conhecidas no Google Fotos, os agentes israelitas podiam utilizar a função de pesquisa de fotografias do serviço para identificar pessoas.
A capacidade da Google de fazer corresponder rostos e identificar pessoas mesmo com apenas uma pequena parte do rosto visível era superior a outras tecnologias, disse um oficial. Os militares continuaram a usar a tecnologia da Corsight porque era personalizável, afirmaram.
Um porta-voz da Google afirmou que o Google Fotos é um produto de consumo gratuito que “não fornece identidades de pessoas desconhecidas nas fotografias”.
O programa de reconhecimento facial em Gaza cresceu à medida que Israel expandia a sua ofensiva militar no território. Os soldados israelitas que entravam em Gaza recebiam câmaras equipadas com esta tecnologia. Os soldados também montaram postos de controlo ao longo das principais estradas que os palestinianos utilizavam para fugir das zonas de combates intensos, utilizando câmaras que faziam a leitura dos rostos.
O objetivo do programa era procurar reféns israelitas, bem como combatentes do Hamas que pudessem ser detidos para interrogatório, disseram os oficiais dos serviços secretos israelitas.
As diretrizes sobre quem deter eram intencionalmente amplas, disse um deles. Pedia-se aos prisioneiros palestinianos que indicassem nomes de pessoas das suas comunidades que acreditassem fazer parte do Hamas. Israel procurava essas pessoas na esperança de que elas fornecessem mais informações.
Abu Toha, o poeta palestiniano, foi apontado como agente do Hamas por alguém na cidade de Beit Lahia, no norte de Gaza, onde vivia com a sua família, afirmaram os oficiais dos serviços secretos israelitas. Os mesmos disseram que não havia nenhuma informação específica anexada ao seu ficheiro que explicasse uma ligação ao Hamas.
Numa entrevista, Abu Toha, autor de Coisas que pode encontrar escondidas na minha orelha: Poemas de Gaza, disse que não tem nenhuma ligação ao Hamas.
Quando ele e a sua família foram detidos no posto de controlo militar a 19 de novembro, quando tentavam partir para o Egipto, disse que não tinha mostrado qualquer identificação quando lhe pediram para sair do meio da multidão.
Depois de ter sido algemado e levado para se sentar debaixo de uma tenda com várias dezenas de homens, ouviu alguém dizer que o exército israelita tinha utilizado uma “nova tecnologia” na multidão. Passados 30 minutos, os soldados israelitas chamaram-no pelo seu nome legal completo.
Abu Toha disse que foi espancado e interrogado num centro de detenção israelita durante dois dias antes de ser devolvido a Gaza sem qualquer explicação. Escreveu sobre a sua experiência no The New Yorker, revista com que colabora. Atribuiu a sua libertação a uma campanha liderada por jornalistas da The New Yorker e de outras publicações.
Após a sua libertação, os soldados israelitas disseram-lhe que o seu interrogatório tinha sido um “erro”, disse ele.
Em comunicado, os militares israelitas afirmaram que Abu Toha tinha sido levado para interrogatório devido a “informações que indicavam uma série de interações entre vários civis e organizações terroristas na Faixa de Gaza”.
Abu Toha, que se encontra atualmente no Cairo com a sua família, disse que não tinha conhecimento de qualquer programa de reconhecimento facial em Gaza.
“Não sabia que Israel estava a captar ou a gravar o meu rosto”, disse. Mas Israel “há anos que nos observa do céu com os seus drones. Têm-nos observado a jardinar, a ir à escola e a beijar as nossas mulheres. Sinto que estou a ser observado há muito tempo”.
c.2024 The New York Times Company