Isabel II, a rainha acidental que continua a fazer história
Um capricho do destino colocou Isabel II no trono britânico, no qual acabou por ficar uns históricos 70 anos, tornando-se na monarca com o mais longo reinado, que se estendeu do pós-guerra ao pós-covid.
Ao longo de sete décadas, a rainha cruzou-se com muitas figuras que marcaram a História e a atualidade internacionais como o primeiro primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, o imperador japonês Hirohito, o líder anti-apartheid e ex-Presidente sul-africano Nelson Mandela ou o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama.
Já ao nível da política interna, desde que subiu ao trono, o Reino Unido teve 14 primeiros-ministros, tendo convivido com Winston Churchill, Margaret Thatcher, Tony Blair ou Boris Johnson.
Ao mesmo tempo, viu encolher o extenso império britânico da era vitoriana, no qual se dizia que o sol nunca se punha, devido à descolonização, à transferência de Hong Kong para a China em 1997 e ao fim de laços com a coroa britânica, como fez os Barbados recentemente.
Apesar das crescentes pressões, conseguiu proteger a família real dos ataques aos privilégios herdados e hoje é inquestionavelmente um pilar essencial de um país multiétnico cada vez mais fraturado por divisões políticas, sociais e até regionais.
O nascimento de Elizabeth Alexandra Mary Windsor em 21 de abril de 1926 na casa dos avós maternos, em Londres, foi um acontecimento relativamente menor pois "Lilibet", como era conhecida a menina de cabelos aos caracóis, não estava destinada ao trono.
Porém, a história mudou de rumo quando o tio sem filhos, Eduardo VIII, abdicou em 1936 para se casar com Wallis Simpson, uma norte-americana divorciada, pondo fim a uma calma vida familiar.
O irmão, e pai de Isabel, George VI, herdou o trono, abrindo o caminho da coroa à primogénita, que, no dia em que celebrou os 21 anos, prometeu dedicar a vida "seja longa ou curta" ao serviço do país.
Durante a Segunda Guerra Mundial, permaneceu sobretudo no Castelo de Windsor, evitando os bombardeamentos de Londres, mas mais tarde serviu como voluntária no Serviço Territorial do Exército como motorista e mecânica.
Em 20 de novembro de 1947, Isabel casou-se com Filipe, um primo afastado que renunciou aos títulos de príncipe da Grécia e da Dinamarca e à carreira na Marinha Real britânica para se consagrar ao papel de príncipe consorte.
A cerimónia foi relativamente discreta devido aos tempos de crise após a guerra, e a princesa teve que usar senhas de racionamento para pagar os tecidos do vestido.
O casal viveu em Malta entre 1949 e 1951, enquanto o príncipe Filipe cumpria uma comissão de serviço na Frota do Mediterrâneo.
Quando George VI morreu aos 56 anos, em 1952, Isabel tornou-se rainha com apenas 25 anos, então mãe de dois filhos, Carlos (nascido em 1948) e Ana (1950). Teve mais dois filhos já em funções, André (1960) e Eduardo (1964).
A cerimónia da coroação, na Abadia de Westminster em 2 de junho de 1953, foi transmitida pelo rádio em todo o mundo e, a pedido da rainha, pela primeira vez na televisão, atraindo uma audiência de milhões de pessoas.
No exterior, multidões de populares resistiram à forte chuva para assistir à passagem da rainha.
O papel da monarca britânica é essencialmente cerimonial e está acima das quezílias políticas, sabendo-se pouco do que pensa das decisões dos primeiros-ministros com quem conversa todas as semanas.
Antes de ter delegado ao príncipe Carlos a Abertura de Estado do parlamento em abril passado, leu sempre com uma voz indiferente e aguda o programa do Governo, um compromisso ao qual só faltou três vezes em 70 anos.
Além de chefe de Estado do Reino Unido, preside à Commonwealth, a organização de 54 países, incluindo 14 ex-colónias das quais continua a ser soberana, como Austrália, Canadá e Jamaica.
Os súbditos, empregados e até alguns familiares chamam-lhe "Ma'am", trato alternativo a "Sua Majestade".
Gosta de vestir-se com cores vivas, usa quase sempre de chapéu e nunca se separa da sua mala de mão.
Apesar do respeito consensual que hoje merece, o reinado teve também muitos altos e baixos.
O conto de fadas que foi o casamento em 1981 do príncipe herdeiro Carlos com Diana azedou rapidamente, apesar do nascimento dos dois filhos William e Harry.
Em 1992 declarou "annus horribilis" o período que ficou marcado pelo desmoronamento dos casamentos de três dos seus filhos, Carlos, Ana e André, e pelo devastador incêndio no Castelo de Windsor, uma das residências oficiais.
Em 1997, a rainha foi acusada de não estar em sintonia com a população que chorou a morte de Diana num acidente de viação em Paris, ao ter permanecido na propriedade rural na Escócia durante dias antes de regressar a Londres e agradecer pelas inúmeras flores e mensagens deixadas à porta do Palácio de Buckingham.
Nas duas décadas seguintes, porém, conduziu uma reviravolta notável para a monarquia, ajudada por uma poderosa máquina de comunicação ativa não só nos tabloides, mas também nas redes sociais.
A rainha cortou o orçamento do Palácio, e o casamento de William com a plebeia Kate (Catherine) Middleton ajudou a projetar a imagem de uma monarquia mais moderna.
Durante os confinamentos da pandemia de covid-19, interveio com comunicações públicas cujo tom conciliou a gravidade da situação com uma mensagem de esperança.
O sentido de abnegação ficou espelhado nas imagens das cerimónias fúnebres do marido, que morreu em abril de 2021 aos 99 anos, às quais assistiu afastada da família por causa das restrições em vigor.
A reputação que construiu nos últimos anos de devoção sóbria permitiu também distanciar-se das polémicas causadas pelo príncipe Harry e a mulher Meghan Markle e pelos escândalos protagonizados pelo príncipe André.
Apesar da especulação mais recente sobre a possibilidade de abdicar a favor do filho Carlos, de 73 anos, por causa das dificuldades de mobilidade que tem sentido, continua a cumprir estoicamente os deveres, seja por videoconferência ou em pessoa.
Em meados deste mês, fez uma visita surpresa à nova linha do metro londrino, batizada Elizabeth em honra da rainha, apesar dos "problemas de mobilidade" invocados nos últimos meses para faltar a várias cerimónias.
Mesmo assim, é evidente o esforço do Palácio em reduzir a carga de trabalho da monarca nonagenária, com o príncipe Carlos e outros membros da família real a representá-la em visitas ao estrangeiro e outros compromissos públicos.
Para trás ficam os tempos em que montava a cavalo e passeava os adorados cães de raça Corgi nas propriedades reais.
Em 9 de setembro de 2015, a rainha tornou-se a monarca há mais tempo em funções, superando a trisavó Vitória.
Isabel II visitou 132 países, percorreu mais de um milhão de quilómetros e fez milhares de discursos, mas nunca deu uma entrevista e a vida privada permanece em grande parte um mistério.
Indiscrições raras de membros do Palácio revelaram que gosta de saber as intrigas de Westminster, ler as dicas de corrida de cavalos do jornal "Racing Post", beber o 'cocktail' favorito Dubonnet com gin antes do almoço e fazer as palavras cruzadas.
Além dos quatro filhos, tem oito netos e 12 bisnetos e a apenas a pandemia interrompeu a tradição de reunir a família no Natal.
No prefácio de uma biografia escrita pelo antigo ministro Douglas Hurd, o neto William resumiu a personalidade da soberana como uma pessoa "bondosa e com sentido de humor, um sentido inato de calma e visão e amor pela família".
O primeiro compromisso público de Isabel II, ainda como princesa, foi no dia em que assinalou os seus 16 anos, em 1942, quando passou revista à guarda no Castelo de Windsor.
Alguns factos e curiosidades que marcam a vida e o reinado de Isabel II:
- A rainha cumpriu mais de 21.000 compromissos públicos ao longo do reinado, desde visitas, condecorações ou inaugurações.
- Visitou mais de 100 países, incluindo 22 vezes o Canadá, mais do que qualquer outro país do mundo, e França 13 vezes, o mais visitado na Europa. Dentro da Commonwealth (organização que congrega Estados e territórios que integraram no passado o império colonial britânico) fez mais de 150 visitas.
- A mais longa viagem a estrangeiro começou nas Bermudas em novembro de 1953 e terminou em Gibraltar em maio de 1954, cobrindo 13 países em 168 dias. O recorde de países numa só visita foi de 14, durante uma viagem às Caraíbas, em 1966.
- Em 1986, a rainha tornou-se a primeira chefe de Estado britânica a visitar a China. Em 1991, foi a primeira monarca britânica a discursar no Congresso dos Estados Unidos.
- A rainha recebeu 112 visitas de Estado ao Reino Unido, incluindo o imperador Haile Selassie da Etiópia (1954), o imperador Hirohito do Japão (1971), o Presidente Lech Walesa da Polónia (1991) e o Presidente Barack Obama dos Estados Unidos (2011).
- Em 2016 recebeu o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em visita oficial. Antes, já tinha recebido Jorge Sampaio, em 2002, Mário Soares (1993), Ramalho Eanes (1978) e Craveiro Lopes (1955).
- Visitou Portugal duas vezes, em 1957 e 1985, a bordo do Iate Real Britannia, inaugurado em 1953. Até sair de serviço, em 1997, esta embarcação viajou mais de um 1,6 milhões de quilómetros em missões reais e oficiais, transportando a rainha em mais de 700 visitas.
- Recebeu as credenciais diplomáticas de 17 embaixadores de Portugal, mas o mais recente, Nuno Brito, foi por videoconferência, modalidade introduzida durante a pandemia da doença covid-19.
- Conheceu todos os 14 Presidentes dos Estados Unidos que exerceram durante o reinado, com exceção de Lyndon Johnson (1963-1969)
- Trabalhou com 14 primeiros-ministros do Reino Unido, o primeiro dos quais foi Winston Churchill, que tinha sido deputado no reinado da trisavó, a rainha Vitória, e promulgou cerca de 4.000 leis.
- Conheceu quatro Papas que visitaram oficialmente o Reino Unido: Papa João XXIII (1961), Papa João Paulo II (1980, 1982 e 2000), Papa Bento XVI (2010) e Papa Francisco I (2014).
- Durante o reinado, recebeu muitos presentes, incluindo animais vivos, como onças e preguiças do Brasil, um elefante dos Camarões e dois castores pretos do Canadá, tendo todos sido entregues aos cuidados de jardins zoológicos.
- É benemérita de mais de 500 organizações, incluindo mais de 70 organizações de educação e formação; mais de 60 organizações desportivas e recreativas; mais de 30 organizações religiosas; e mais de 40 organizações artísticas e culturais.
- Recebeu mais de 1,5 milhões de pessoas nas 180 festas realizadas no jardim no Palácio de Buckingham desde 1952.
- Enviou mais de 300.000 postais de aniversário a pessoas que comemoram os 100 anos de vida e mais de 900.000 mensagens a casais que celebram as bodas de diamante pelos 60 anos de casamento.
- Pelo menos 35 países emitiram moedas com a imagem da rainha, que não precisa de passaporte ou carta de condução porque estes documentos são emitidos em seu nome pessoal.
- É designada 'Defensora da Fé e Governadora Suprema da Igreja da Inglaterra', título que data do reinado do rei Henrique VIII, que inicialmente recebeu o título de 'Defensor da Fé' em 1521, pelo Papa Leão X.
- Casou em 20 de novembro com Filipe em 1947 na Abadia de Westminster. Em 2017 comemoraram os 70 anos de casamento, a primeira vez que um monarca britânico atingiu o marco.
- Desde 1993 que a rainha paga impostos voluntariamente. À parte, recebe uma subvenção estatal, que em 2020/2021 foi de 85,9 milhões de libras (101 milhões de euros), equivalente a 1,29 libras (1,52 euros) por pessoa no Reino Unido, para pagar viagens oficiais, manutenção de propriedades e custos operacionais da família real.
- Estima-se que a coleção de arte real tenha mais de um milhão de peças, incluindo mais de 8.000 pinturas, 160.000 aguarelas, gravuras e desenhos, 200.000 fotografias, 300.000 peças de arte decorativa e 200.000 livros e manuscritos.
- Desde Susan, que recebeu como presente aos 18 anos, já teve 30 cães de raça Corgi e Dorgi
- Viajou no metro de Londres pela primeira vez em maio de 1939. A linha Jubilee recebeu a cor cinzenta no mapa para comemorar o Jubileu de Prata da rainha. Em 24 de maio deste ano foi inaugurada a linha Elizabeth, que atravessa a cidade de Londres de oeste a este.
- Ingressou no Serviço Territorial Auxiliar, o ramo feminino do Exército britânico durante a Segunda Guerra Mundial em 1945, tornando-se a primeira mulher membro da família real a juntar-se às Forças Armadas a tempo inteiro como membro ativo. Fez voluntariado como motorista e mecânica.
- Enviou o primeiro 'email' em 26 de março de 1976, durante uma visita ao Royal Radar Establishment para o Departamento de Defesa norte-americano para abrir formalmente a colaboração Reino Unido/Estados Unidos em programação militar. Em 1997, a rainha lançou a página oficial de Internet do Palácio de Buckingham, em 2014 estreou-se na rede social Twitter e em 2019 publicou pela primeira vez no Instagram.
- Em 2012 bateu o recorde de maior desfile náutico no rio Tamisa, quando 670 embarcações participaram nas celebrações do Jubileu de Diamante pelos 60 anos de reinado.
- Em 2013 tornou-se a primeira monarca a receber um prémio BAFTA Honorário em reconhecimento ao apoio ao cinema e à televisão britânicos. A cerimónia da sua coroação em 1953 foi a primeira a ser transmitida pela televisão, o que fez com que as pessoas comprassem aparelhos, contribuindo para uma audiência de 27 milhões de pessoas só no Reino Unido.
- Aos 19 anos saiu incógnita do Palácio de Buckingham com a irmã, a princesa Margarida, então com 14 anos, para celebrar nas ruas o Dia da Vitória, em 08 de maio de 1945, que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial.
- Em 2012 participou num vídeo com o agente secreto James Bond em que simulou um salto de pára-quedas durante a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres 2012.