"Independência de Timor foi o maior dos sucessos dos capacetes azuis"

Com base na experiência pessoal, tanto no terreno como na sede da ONU em Nova Iorque, o major-general Carlos Branco, também investigador do IPRI-Nova, aproveita o Dia Internacional dos Capacetes Azuis para analisar o contributo desta força para a paz.
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Esteve no terreno como capacete azul. Como foram essas experiências em cenários tão diversos como a antiga Jugoslávia ou a República Centro Africana?
Foram de facto experiências consideravelmente diferentes. No primeiro caso, como observador militar, no segundo, como consultor. Existem, contudo, denominadores comuns que as unem e que não se alteraram com o tempo e o lugar. A ONU continua a fazer o que é possível, aquilo que ninguém quer fazer; embora o nível de desenvolvimento daquelas duas sociedades seja significativamente diferente, a destruição e a miséria são omnipresentes. Independentemente do caso, mesmo quando isso não implica combater, a possibilidade de matar ou de morrer, somos permanentemente testados. Ficamos a conhecer-nos melhor, sabemos até onde somos capazes de ir. São exercícios de maturidade. Regressamos mais adultos.

Também exerceu funções de comando de operações de manutenção da paz a partir da sede, em Nova Iorque. Qual o nível de complexidade? A experiência prévia como capacete azul foi essencial?
Fui desk officer das missões da ONU no Médio Oriente, na Divisão Militar do antigo Departamento para as Operações de paz, do Secretariado, a instância onde se aconselhava a direção e o comando político e estratégico das operações. Essa função foi decisiva para perceber o que é e como funciona a ONU. Foi em Nova Iorque que percebi porque é que as operações de paz da ONU, antes de serem militares, são missões políticas. Assim como a dificuldade da sua gestão, e o alcance da sua intervenção, uma vez que os Estados mais poderosos nunca abdicarão da gestão da violência e nunca cederão esse poder a uma organização cujo processo decisional lhes escapa ao controlo, e que em última análise até pode concorrer com os seus interesses. Quando estamos no terreno vivemos problemas diferentes, de natureza tática. Mas não será por acaso que o exercício no terreno é uma condição necessária para o desempenho de funções ao nível estratégico. É perigoso achar que se pode pensar estrategicamente de forma adequada, sem ter a experiência tática.

Há estudos que demonstram que na maioria dos casos, e vamos já em sete décadas de operações de paz, os resultados foram positivos, no mínimo minimizaram-se vítimas civis e militares. Porque se fala então tanto de incapacidade de ação das Nações Unidas na hora de resolver conflitos?
A ONU é uma organização intergovernamental. Depende da vontade dos Estados. Não é uma entidade supranacional com vontade própria. É aquilo que os Estados-membros, com os mais poderosos à cabeça, querem e estão dispostos a que seja. Por isso, o sonho da segurança coletiva não passou de uma quimera, de uma miragem. O Conselho de Segurança nunca autorizou, e as propostas não foram poucas, que a ONU tivesse uma força militar própria. Para constituir forças para uma operação, a ONU está dependente da contribuição dos países. Nem sempre é fácil gerar uma força de paz. Para além das questões financeiras, os países contribuintes com tropas não arriscam mandar nacionais para missões de maior atrição, com elevada probabilidade de mortos. A ONU é frequentemente utilizada como o bode expiatório a que se recorre para esconder o comportamento irresponsável das grandes potências em matéria de segurança internacional.

Casos de falhanço como o contingente holandês em Srebrenica, na Bósnia, em 1995, deveu-se sobretudo a falta de mandato ou de armamento?
Antes de falarmos do falhanço do contingente holandês, se é que houve, temos de falar do falhanço internacional. No dia 16 de abril de 1993, o Conselho de Segurança da ONU considerou Srebrenica uma área protegida, que por definição deveria ser uma área neutra e livre de armamento e qualquer atividade dos beligerantes. Admito que as consciências no Conselho de Segurança ficassem aliviadas quanto tomavam este tipo de decisões. Mas aliviar a consciência era insuficiente. Para impor o cumprimento do acordo, a ONU estimou a necessidade de 34 mil soldados. Não sendo possível, optou-se por uma solução alternativa de 7.600, mas em julho de 1995 encontram-se apenas 450 soldados no enclave, aos quais até o apoio aéreo próximo para a sua defesa foi negado. Alguém terá de explicar o que poderiam os soldados holandeses ter feito melhor. Detalho estes eventos no meu livro A Guerra nos Balcãs.

Nacionais de países da Ásia do Sul, africanos também muitos. Ser capacete azul é sobretudo visto como uma oportunidade de ganhar dinheiro para militares de muitos países pobres? Provavelmente estamos a levantar poeira para escamotear quem foram os verdadeiros responsáveis.
Podem adicionar-se à lista outros países pobres da Ásia. Excetuando a China em nono e o Uruguai em décimo sétimo, os países no top 20 são países pobres ou muito pobres. A Itália é o primeiro país desenvolvido da lista e surge em 23.º lugar. Ao não enviarem soldados para essas operações, os países ricos criaram um espaço que foi preenchido pelos países pobres. Estas missões não são de risco zero. Algumas delas bem longe disso. Além das baixas serem inaceitáveis na grande maioria das sociedades evoluídas, em teatros de operações onde o seu interesse nacional não está em causa, estes países têm por hábito escrutinarem regularmente os seus dirigentes através de eleições.

Qual a motivação dos capacetes azuis portugueses? Atualmente temos muitos militares em operações de paz?
É difícil fazer essa avaliação. Podem ser muitas as motivações, desde a económica, aventura, cosmopolita e até mesmo ideológica. É possível elencar outras. No final do mês de março de 2021, Portugal participava com 201 soldados e polícias em operações de paz da ONU. Portugal é o 53.º contribuinte, e nono da União Europeia.

A China tornou-se um dos principais contribuintes para o orçamento das operações de paz. Isso faz parte da estratégia chinesa se ganhar mais influência na ONU?
Dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, a China é o que mais contribui com tropas e polícias para as operações de paz da ONU. A China é o segundo contribuinte para o orçamento das operações de paz com cerca de 15 %. É o segundo maior contribuinte para o orçamento da ONU com cerca de 12%. Perante isto, é normal e natural que a China aumente a sua influência na ONU. Seria anormal não o fazer. Quem paga mais tem maior quota na decisão. Este princípio aplica-se a qualquer organização internacional. A influência depende sempre da contribuição.

Com António Guterres secretário-geral assistiu-se a alguma alteração do papel dos capacetes azuis? A experiência como alto-comissário para os refugiados não leva o português a apostar na proteção das populações?
É preciso ser realista em matéria de expectativas, tanto quanto ao alcance da ação da ONU como dos seus secretários-gerais. Como em qualquer outra organização internacional, têm o seu campo de atuação comprometido pelos interesses das grandes potências. Não só na sua eleição, como nos seus programas que gostariam de implementar. Temos ainda presente o caso de Boutros-Boutros Ghali que teve a ousadia de desafiar os EUA. Podemos dizer que com Guterres se iniciou uma nova geração de mandatos, que consideram a proteção de civis como a tarefa mais importante. Esta abordagem incorpora algumas recomendações do "relatório Santos Cruz" e as prescrições da "ação para a iniciativa de paz". Em termos práticos, significa uma postura e resposta mais robusta a situações de insegurança emergentes. Este novo tipo de operações exige contingentes dotados de maior letalidade, capacidade cinética e vontade para utilizar a força. E claro está, Estados com capacidade para explicar aos seus cidadãos porque existem nacionais a morrer onde o seu interesse nacional não está em causa. Esta abordagem choca com a mesma realidade de sempre: a falta de recursos humanos, materiais e financeiros. Enquanto este problema não for solucionado temos muitas dúvidas que esta fórmula, apesar de intelectualmente bem concebida, possa ter sucesso. Se alguém tiver dúvidas, pode começar pela República Centro Africana, onde se encontram as forças nacionais, onde os helicópteros ao dispor da missão não voam de noite.

Para si, qual a mais bem-sucedida missão dos capacetes azuis?
Estou tentado a considerar o conjunto de sucessivas missões em Timor-Leste que conduziram com sucesso o país à independência. O nível de ambição foi extremamente elevado. Foi um trabalho hercúleo criar de raiz um Estado que não existia, administrá-lo e em simultâneo preparar os quadros que iriam integrar as instituições criadas. Foi uma ideia romântica em que a ONU apostou o seu prestígio e ganhou. O saldo foi extremamente positivo. Temos, no entanto, de ter presente que não se transforma uma sociedade atrasada numa sociedade desenvolvida do dia para a noite. A realidade não é aquela que queremos, é a que é. A ONU pode ajudar, mas em última análise serão os timorenses e as suas elites os grandes atores da mudança social e a decidirem o seu futuro. Não será a ONU.

Quer destacar algum capacete azul que tenha conhecido por esse mundo fora, um exemplo do que são estes homens e mulheres ao serviço da paz?
É sempre difícil fazer esse tipo de escolhas. O risco de cometer injustiças é elevado. Conheci por esse mundo fora pessoas tremendamente dedicadas. Talvez os grandes heróis tenham sido aqueles que comemoramos neste dia 29 de maio, os anónimos que pereceram pela paz.

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