Há um novo Kennedy a bater à porta da Casa Branca, mas a família de JFK apoia Biden
No momento em que apareceu por detrás de um palco adornado com azul, vermelho e branco na antiga bilheteira da histórica Union Station, em Los Angeles, Robert F. Kennedy Jr. foi recebido com cânticos emocionados dos seus apoiantes. “Bobby! Bobby! Bobby!”, ecoavam as vozes em uníssono no espaço histórico transformado em evento de campanha. No lado direito, um cenário portentoso mostrava fotos a preto e branco da sua vida como parte de uma das mais importantes famílias políticas nos Estados Unidos. E nos olhos azuis, contrastando com o tom bronzeado da pele, uma semelhança indiscutível com o pai e com o tio: o senador Robert F. Kennedy e o presidente John F. Kennedy, figuras que marcaram a política americana para sempre e foram assassinados nos anos sessenta.
“O meu pai foi baleado aqui em Los Angeles”, disse RFK Jr., que no ano passado abandonou o partido democrata para se candidatar às presidenciais como independente. Nos vários eventos de campanha que tem feito, esse é um tema recorrente. Conta histórias do pai, lembra políticas do tio e nunca deixa a audiência esquecer que ele é, também, um Kennedy. Sessenta anos depois do assassinato que mudou a América, quando o presidente JFK foi morto a tiro em Dallas, RFK Jr. aposta que o fascínio dos americanos com esta dinastia política tão influente quanto trágica lhe abrirá as portas da Casa Branca.
O fascínio perdura até hoje “porque o mito dos Kennedy ficou incompleto”, explicou ao DN o académico Thomas Whalen, autor do livro JFK e os seus inimigos: um retrato de poder e professor de Ciências Sociais na Universidade de Boston. “O mito terminou de forma dramática com a morte de dois ícones políticos”, continuou, referindo que eles representaram o ponto final na coligação New Deal que dominou a política americana no século XX.
“Não são só as suas vidas mas também o que eles representaram que continua a ser caro a tanta gente até hoje.”
Muitas das pessoas que apareceram na Union Station para apoiar a candidatura de RFK Jr. eram claramente da mesma geração que ele, nascido em 1954 como filho mais velho de “Bobby” Kennedy. Whalen sublinhou que é nos grupos de eleitores acima dos 50 anos que o nome ainda ressoa.
“Ele está a vender a política da nostalgia”, disse o professor, apontando que isso não é muito diferente da estratégia de Donald Trump. “A retórica de Trump é levar-nos de volta para os anos cinquenta, em que tudo era fantástico, estávamos no topo do mundo e ninguém se atrevia a desafiar a nossa posição”, frisou. “Nesse sentido, Kennedy Jr. e Trump estão a ir buscar água ao mesmo poço político.”
Os contornos de um mito
A força que a figura de JFK e da sua família política ainda exercem nas hostes democráticas é, segundo Thomas Whalen, baseada numa idealização que não corresponde exatamente à verdade.
“O que os liberais celebram hoje em John F. Kennedy são posições a que ele só chegou nos últimos meses de presidência”, salientou o professor. “Só abraçou os direitos civis no final. Demorou muito tempo a acabar com a segregação racial na habitação federal”, lembrou.
JFK, eleito em 1960 por uma margem minúscula (0,17%), era um político cauteloso e pragmático, que se apresentou contra o republicano Richard Nixon como um campeão da Guerra Fria.
“No que toca a direitos das mulheres é risível. Hoje eles seriam escorraçados às gargalhadas”, notou Whalen. “A visão de John Kennedy sobre as mulheres era Cro-Magnon.”
Quando foi assassinado, o seu irmão Robert F. Kennedy “deixou de estar perto do trono” e a sua estratégia, para voltar ao poder, foi assumir posições fora do consenso do partido - entretanto liderado pelo presidente Lyndon Johnson.
É assim que Whalen explica que RFK se tenha tornado anti-guerra no Vietname, apesar de ter estado envolvido no seu planeamento. “Muitos liberais na altura eram críticos de Robert Kennedy”, frisou. “Ou seja, é mais uma questão de imagem agora. Eles não eram os liberais envergando a capa das coisas a que hoje atribuímos liberalismo.”
Por outro lado, o professor salientou que mesmo a ligação a esse mito não ressoa entre as gerações mais jovens. “Vemos muito descontentamento na geração Z e nos Millennials, porque nenhum dos partidos fala por eles nem pelos problemas do século XXI”, analisou. “Para eles, os Kennedy representam algo que veem a preto e branco num documentário”, disse. “E quando se lembram deles, é o julgamento do William Kennedy Smith [absolvido de violação em 1991] ou o Ted Kennedy a ser gozado pelo abuso de drogas no Saturday Night Live.” O mito pode persistir, mas não equivale necessariamente a uma vitória política.
“Esta é, provavelmente, uma das gerações mais cínicas da história americana”, disse Whalen. “Não vai cair nessa venda de nostalgia.”
AFP |
O lote estragado
Robert F. Kennedy Jr. não tem caminho viável para vencer as eleições, mas pode estragar as contas da noite eleitoral. Com o candidato a aparecer nas sondagens com 9% a10%, às vezes com 12% ou 14%, o partido democrata está preocupado.
“Não penso que a maioria dos apoiantes democratas tenham muito interesse em Robert Kennedy”, ressalvou o cientista político Thomas Holyoke, professor na Universidade Estadual da Califórnia em Fresno. “Não com o seu histórico de ser anti-vacinas.”
Dado a conspirações, desde a origem da covid-19 à ligação entre vacinas e autismo, RFK Jr. tem tido outras posições polémicas. Quer repensar a NATO, é dúbio quando ao direito ao aborto e traçou ligações entre antidepressivos e tiroteios em massa.
Holyoke considera que, por isso, RFK Jr. tem potencial para ir buscar votos aos dois candidatos, não necessariamente só a Joe Biden. “Talvez haja eleitores à direita que desconfiam de Trump ou que estão genuinamente preocupados com o seu estado mental. Podem ver Kennedy como alguém que se alinha com os seus valores muito libertários.”
O próprio RFK Jr. abraçou este posicionamento como spoiler que vai estragar o lote e disse que o fará para os dois candidatos, entre quem não considera haver muita diferença ao nível de eficácia política. “Estamos a ir buscar votos tanto a democratas como republicanos, segundo as sondagens”, disse o candidato no evento em Los Angeles.
As pesquisas mostram, ainda assim, que RFK Jr. poderá prejudicar mais Biden que Trump, estando por determinar em que estados conseguirá assinaturas válidas suficientes para aparecer nos boletins de voto. Até agora, garantiu presença no Idaho, Havai, Carolina do Norte, New Hampshire, Nevada e Utah.
O politólogo Everett A. Vieira III, que se mostra preocupado com o efeito que uma candidatura destas pode ter na eleição geral, sublinha que é difícil prever alguma coisa a esta altura. “Qualquer pessoa que diga que sabe qual o efeito que isto vai ter em novembro está fora de pé.”
A revolta da família
Twitter de Kerry Kennedy
Não querendo esperar para ver, a família Kennedy está revoltada com a candidatura e a posicionar-se ativamente contra ela. Em outubro passado, logo após o lançamento oficial da campanha como independente, três irmãs e um irmão de Kennedy Jr. mostraram a sua oposição numa declaração conjunta.
“A decisão do nosso irmão Bobby de correr como candidato alternativo contra Joe Biden é perigosa para o nosso país”, afirmaram. “O Bobby pode partilhar o mesmo nome do nosso pai, mas não partilha dos mesmos valores, visão ou discernimento”, continuaram. “O anúncio de hoje é profundamente entristecedor para nós. Denunciamos a sua candidatura e acreditamos que é perigosa para o nosso país.”
Assinado por Rory Kennedy, Kerry Kennedy, Joseph P. Kennedy II e Kathleen Kennedy Townsend, o comunicado pontuou meses de distanciamento entre a família e o candidato, que inicialmente tentou candidatar-se nas primárias democratas.
A hostilidade atingiu máxima temperatura em fevereiro, quando o comité de ação política (PAC) que apoia Kennedy, American Values 2024, transmitiu um anúncio de 30 segundos no intervalo do Super Bowl.
O anúncio usou as imagens e o jingle do famoso vídeo de campanha “Kennedy for Me” que ajudou a eleger John F. Kennedy em 1960, sobrepondo a cara de RFK Jr. em cima da cara do ex-presidente assassinado.
“Foi plágio”, resumiu Thomas Whalen. “Foi, batida por batida, o anúncio de 1960 de John F. Kennedy”, disse o professor, indicando que a utilização dessas imagens e sons fez eco da mensagem saudosista que o candidato - tal como Trump - está a fazer passar.
“É algo como, temos de puxar o relógio atrás para esses anos maravilhosos, antes do Civil Rights Act, quando as mulheres estavam na cozinha descalças e grávidas. É o lembrete subtil que temos aqui.”
A família recebeu o anúncio como um ultraje. O primo Bobby Shriver, filho de Eunice Kennedy Shriver, reagiu na sua conta de Twitter/X: “O anúncio do meu primo no Super Bowl usou as caras do nosso tio e da minha mãe. Ela ficaria horrorizada com as suas opiniões fatais sobre saúde”, escreveu Bobby Shriver. “Respeito pela ciência, vacinas e igualdade nos cuidados de saúde estavam no seu ADN”, continuou. “Ela apoiava fortemente o meu trabalho na área da saúde para a OneCampaign e RED, a que ele se opõe.”
O seu irmão Mark, também primo de RFK Jr., ecoou o sentimento e partilhou a mensagem, comentando “Concordo com o meu irmão. Tão simples quanto isto.”
Em simultâneo, vários elementos da família Kennedy expressaram publicamente o seu apoio à candidatura do incumbente democrata Joe Biden, incluindo Caroline Kennedy, Joe Kennedy III, Victoria Anne Kennedy, Patrick J. Kennedy, Rory Kennedy e Jack Schlossberg. Em março, por ocasião do dia de São Patrício (patrono da Irlanda), dezenas de membros da família Kennedy visitaram Joe Biden na Casa Branca, celebrando a herança étnica e religiosa em comum: ambas as famílias são católicas de origem irlandesa.
“Não é suficiente desejar que o mundo seja melhor, temos de fazer o mundo melhor. Presidente Biden, você torna o mundo melhor”, escreveu Kerry Kennedy, irmã mais nova de RFK, numa publicação em que partilhou uma foto da família com Biden na Casa Branca.
Kerry Kennedy - a sétima de onze filhos de Robert e Ethel Kennedy - tem sido a principal organizadora do trabalho político contra a corrida presidencial de RFK Jr.
De acordo com fontes próximas da família, citadas pela NBC News, alguns membros vão juntar-se a Biden em eventos de campanha depois do verão, em especial nos estados onde RFK Jr. conseguir acesso aos boletins de voto. Outros darão entrevistas e vão apoiar iniciativas para combater a campanha do candidato com quem partilham o sobrenome.
“Eles percebem os danos que ele pode causar”, analisou Thomas Whalen. “Mesmo que consiga só 1%, essa pode ser a diferença crítica num estado como o Michigan e dar a eleição a Trump.”
O receio é fundado e tem precedente: em 1968, o desafio de RFK ajudou a partir o eleitorado democrata e levou Richard Nixon à vitória. Em 1980, Ted Kennedy dividiu o partido e abriu caminho para que Ronald Reagan ganhasse.
“Nesse sentido, Robert Kennedy Jr. está a seguir um padrão tradicional da família. Ambos os casos atingiram seriamente o liberalismo pós-guerra.”
A maldição dos Kennedy
Assassinatos, mortes na guerra, acidentes de barco, quedas de aviões. O clã Kennedy tem sido marcado por acontecimentos trágicos e mortes prematuras, o que levou à evocação de uma “maldição” que persegue a família. Thomas Whalen refere que isso faz parte do mito.
“Na realidade, a família Kennedy sempre assumiu grandes riscos, dir-se-á riscos tolos”, salientou. Joseph Kennedy voluntariou-se para uma missão suicida na II Guerra Mundial e morreu. Kathleen Kennedy decidiu meter-se num avião durante uma tempestade e o avião caiu. “Quando se tomam grandes riscos, as coisas podem não correr bem.”
Whalen salientou que parte do ethos de ser um Kennedy é que eles não esperam na fila. Não fazem o percurso político normal, de começar por cargos estaduais e subir até posições mais importantes. Não esperam que tempestades passem. Isso pode explicar o falhanço de vários Kennedy que têm tentado carreiras políticas. Kathleen Kennedy Townsend tentou ser governadora do Maryland e falhou; Caroline Kennedy não conseguiu o Senado por Nova Iorque; Joseph Kennedy III atirou-se a um lugar no Senado pelo Massachusetts e foi chumbado nas primárias de 2020, embora Whalen considere que ele continua a ter potencial na política.
“Os Kennedy sempre foram para a frente da fila. São os clássicos fura-filas. E John F. Kennedy exemplificou isso”, sublinhou Whalen. Agora é a vez de RFK Jr. tentar navegar para o topo em cima da força do nome. Mas mesmo que não seja bem sucedido, Whalen tem a certeza de uma coisa: “Vamos lembrar-nos dos Kennedy durante muito tempo.”