Guterres critica impunidade "indefensável" e deixa alerta para "barril de pólvora que corre o risco de engolir o mundo"
O secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou esta terça-feira o nível de impunidade "politicamente indefensável e moralmente intolerável" praticado por "um número crescente de Governos" em todo o mundo, desde o "Médio Oriente" até ao "coração da Europa" ou no "Corno de África".
No seu discurso de abertura do Debate da 79.ª sessão da Assembleia Geral da ONU (UNGA79, na sigla em inglês), Guterres traçou um cenário sombrio do mundo atual, que está "num estado insustentável", onde "guerras acontecem sem nenhuma pista de como terminarão" e a "postura nuclear e novas armas lançam uma sombra escura" sobre o planeta.
"Estamos a caminhar em direção ao inimaginável --- um barril de pólvora que corre o risco de engolir o mundo", afirmou o líder das Nações Unidas (ONU), recordando que 2024 é o ano em que metade da humanidade vai às urnas e em que todos "serão afetados".
Avaliando que a impunidade, desigualdade e incerteza estão ligadas e em colisão, o ex-primeiro-ministro português focou-se na ausência de punição em algumas geografias, onde "um número crescente de Governos" e outros atores "se sentem no direito de ter 'um cartão de saída livre da prisão'", ou seja, de cometerem crimes impunemente.
"Eles podem atropelar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos a convenções internacionais de direitos humanos ou decisões de tribunais internacionais. Podem fazer pouco caso do direito internacional humanitário. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar completamente o bem-estar do seu próprio povo. E nada vai acontecer", criticou Guterres.
"Assistimos a essa era de impunidade em todos os lugares --- no Médio Oriente, no coração da Europa, no Corno de África e mais além", especificou.
O debate de alto nível da UNGA79 arrancou esta terça-feira, em Nova Iorque, com a presença de dezenas de chefes de Estado e de Governo de todo o mundo, e irá prolongar-se até ao próximo dia 30.
Sobre o conflito na Ucrânia, o líder da ONU repetiu que é hora de uma paz justa baseada na Carta da ONU, no direito internacional e nas resoluções aprovadas pelas Nações Unidas.
Gaza, afirmou, "é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele" e "basta olhar para o Líbano".
"Deveríamos todos ficar alarmados com a escalada. O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano -- o povo de Israel -- e o povo do mundo -- não se podem dar ao luxo de que o Líbano se torne outra Gaza", disse Guterres, suscitando aplausos da audiência.
O secretário-geral sublinhou que a velocidade e a escala da matança e destruição em Gaza, um conflito que já matou mais de 200 dos funcionários das Nações Unidas, são diferentes de tudo o que já viu ao longo dos seus dois mandatos como líder da ONU.
Guterres aproveitou a presença na Assembleia-Geral da ONU de dezenas de chefes de Estado e de Governo para prestar uma homenagem especial à Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinianos (UNRWA) - alvo constante de ataques de Israel - e a todos os trabalhadores humanitários em Gaza.
O líder da ONU apelou à comunidade internacional para que se mobilize em prol de um cessar-fogo imediato no enclave palestiniano, da libertação de todos os reféns e de um processo irreversível no sentido de uma solução de dois Estados.
Numa mensagem aparentemente dirigida a Israel, que tem promovido milhares de colonatos na Cisjordânia, Guterres questionou: "Para aqueles que continuam a minar esse objetivo com mais colonatos, mais apropriação de terras, mais incitação, eu pergunto: Qual é a alternativa? Como é que o mundo poderia aceitar um futuro de um Estado que inclui um número tão grande de palestinianos sem nenhuma liberdade, direitos ou dignidade?".
O ex-primeiro-ministro português abordou ainda o conflito no Sudão, onde uma luta brutal pelo poder desencadeou uma "violência horrível", incluindo violações e agressões sexuais generalizadas.
"Uma catástrofe humanitária está a desenrolar-se à medida que a fome se espalha. No entanto, potências externas continuam a interferir sem uma abordagem unificada para encontrar a paz", lamentou.
No Sahel, disse Guterres, a expansão dramática e rápida da ameaça terrorista requer uma abordagem conjunta, enraizada na solidariedade, sem que a cooperação regional e internacional funcione.
Também Myanmar, República Democrática do Congo, Haiti e Iémen registam níveis assustadores de violência e sofrimento humano, perante uma "falha crónica" em encontrar soluções, apesar de que "os desafios que enfrentamos são solucionáveis", assumiu o secretário-geral.
A Cimeira do Futuro, que decorreu nos últimos dois dias em Nova Iorque, "é um primeiro passo, de um longo caminho a percorrer", adiantou.
Guterres alerta para "ameaças existenciais" geradas pela crise climática e tecnologias
O secretário-geral da ONU alertou para as "ameaças existenciais" geradas pela crise climática e pelo rápido avanço da tecnologia, apelando a que as Nações Unidas se tornem palco central dos debates em torno da Inteligência Artificial.
António Guterres assegurou que o mundo está em "colapso climático", frisando que as temperaturas extremas, os incêndios violentos, as secas e as inundações em grande escala e com cada vez mais intensidade e frequência "não são desastres naturais".
"São desastres humanos, cada vez mais alimentados por combustíveis fósseis. Nenhum país é poupado. Mas os mais pobres e vulneráveis são os mais atingidos", lembrou.
De acordo com o líder da ONU, os riscos climáticos "estão a abrir um buraco" nos orçamentos de muitos países africanos, custando até 5% do Produto Interno Bruto (PIB) a cada ano.
"E isso é só o começo", alertou, frisando que o planeta está a caminho de ultrapassar o limite global de aumento de temperatura de 1,5 graus celsius.
O ex-primeiro-ministro português, que tem na agenda climática e ambiental uma das prioridades do seu mandato, defendeu a inversão das tendência atuais, em que os poluidores continuam a ser recompensados "para destruir o planeta".
A indústria de combustíveis fósseis continua a encaixar enormes lucros e subsídios, enquanto o cidadão comum arca com os custos da catástrofe climática, desde o aumento dos preços dos seguros à perda de meios de subsistência, observou o chefe das Nações Unidas.
"Peço aos países do G20 que transfiram dinheiro de subsídios e investimentos em combustíveis fósseis para uma transição energética justa; para que estabeleçam um preço efetivo para o carbono; e para que implementem novas e inovadoras fontes de financiamento --- incluindo taxas de solidariedade sobre a extração de combustíveis fósseis, através de mecanismos transparentes e juridicamente vinculativos. Tudo até ao próximo ano", instou.
"Aqueles que têm culpa devem pagar a conta. Os poluidores devem pagar", insistiu.
Numa nota de esperança, o secretário-geral da ONU salientou que, à medida que os problemas climáticos pioram, "as soluções estão a melhorar", destacando que os preços das energias renováveis estão a baixar, a sua implementação está a acelerar e "vidas estão a ser transformadas por energia limpa acessível e barata".
Após a crise climática, Guterres direcionou atenções para o rápido crescimento de novas tecnologias e para o "risco existencial imprevisível" que elas representam.
A Inteligência Artificial (IA) "mudará praticamente tudo o que conhecemos", desde o trabalho à educação e comunicação, até à cultura e política, salientou.
"Uma mão cheia de empresas e até mesmo indivíduos já acumularam enorme poder sobre o desenvolvimento da IA -- com pouca responsabilidade ou supervisão. Sem uma abordagem global para a sua gestão, a IA pode levar a divisões artificiais em todos os níveis -- uma Grande Fratura com duas internets, dois mercados, duas economias --, com cada país forçado a escolher um lado e enormes consequências para todos", anteviu.
As Nações Unidas são a plataforma universal para diálogo e consenso, defendeu, reiterando que a organização está numa posição única para promover a cooperação em torna da IA com base nos valores da Carta da ONU e do direito internacional.
"O debate global acontece aqui, ou não acontece. (...) Vamos avançar juntos para fazer da IA uma força para o bem", instou Guterres.
"Vamos mover o nosso mundo em direção a menos impunidade e mais responsabilidade, menos desigualdade e mais justiça, menos incerteza e mais oportunidade. As pessoas do mundo estão a olhar para nós -- e as gerações futuras olharão para nós. Deixe-os encontrar-nos (...) do lado certo da história", concluiu.
"Inaceitável" que menos de 10% de intervenções no Debate sejam de mulheres, diz Guterres
O secretário-geral da ONU considerou ainda "inaceitável" que menos de 10% dos intervenientes no Debate da Assembleia-Geral desta semana sejam mulheres, lamentando que a desigualdade de género esteja "em plena exibição" no principal auditório das Nações Unidas.
António Guterres falava sobre como a discriminação e abusos com base no género são a "desigualdade mais prevalecente em todas as sociedades", quando direcionou as atenções para a audiência amplamente masculina do próprio salão em que discursava.
"Todos os dias, parece que somos confrontados por casos ainda mais repugnantes de feminicídio, violência de género e violação em massa, tanto em tempos de paz, quanto como arma de guerra", afirmou.
Em alguns países, adiantou, as leis estão a ser usadas para ameaçar a saúde e os direitos reprodutivos, e, em Estados como o Afeganistão, as leis são usadas para opressão sistemática de mulheres e meninas.
"E lamento observar que, apesar de anos de conversa, a desigualdade de género está em plena exibição neste mesmo auditório. Menos de 10% dos intervenientes durante o Debate Geral desta semana são mulheres", assinalou.
Para Guterres, esse facto é "inaceitável", "especialmente quando sabemos que a igualdade de género proporciona paz, desenvolvimento sustentável, ação climática e muito mais".
O ex-primeiro-ministro português advogou que a ONU tem tomado medidas específicas para alcançar a paridade de género entre lideranças seniores da Organização e garantiu aos Estados-membros que é possível atingir esse objetivo.
"Apelo às instituições políticas e económicas dominadas por homens em todo o mundo para que o façam", instou.
Ainda sobre as crescentes desigualdades que se registam, desde a crise do custo de vida, passando pelos conflitos e pela questão climática, Guterres realçou que o mundo ainda não recuperou do impacto da pandemia de covid-19.
De acordo com o líder das Nações Unidas, dos 75 países mais pobres do mundo, um terço está pior hoje do que há cinco anos, e, durante o mesmo período, os cinco homens mais ricos do mundo mais do que duplicaram a sua riqueza.
"E os 1% mais ricos do mundo possuem 43% de todos os ativos financeiros globais", criticou.
Já a nível nacional, alguns Governos estão a aumentar as desigualdades ao distribuírem "enormes isenções fiscais para empresas e ultra-ricos, enquanto prejudicam investimentos em saúde, educação e proteção social", lamentou.
"Ninguém está a ser prejudicado mais do que as mulheres e meninas do mundo", assegurou o secretário-geral.
Contudo, as desigualdades são mais amplas e estão também refletidas nas próprias instituições globais, com Guterres a apelar a uma reforma de órgãos como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que foi criado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, quando a "maior parte da África ainda estava sob domínio colonial" - o que se reflete na falta de representação africana permanente "no conselho de paz mais importante do mundo".
"Isso deve mudar. Assim como a arquitetura financeira global, criada há 80 anos", instou.
Repetindo os apelos por uma reforma acelerada da arquitetura financeira internacional, o chefe da ONU centrou-se nos países mais pobres do mundo, cujos pagamentos de juros da dívida custam agora mais, em média, do que os investimentos em educação, saúde e infraestruturas combinados.
Guterres pediu reformas para aumentar substancialmente a capacidade de financiamento dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento e permitir que eles aumentem maciçamente o financiamento acessível de longo prazo para o clima e o desenvolvimento, e também uma reestruturação da dívida de longo prazo.
"Excelências, não tenho ilusões sobre os obstáculos à reforma do sistema multilateral. Os que têm poder político e económico (...) estão sempre relutantes em mudar. Mas o 'status quo' já está a drenar o poder deles. Sem reformas, a fragmentação é inevitável, e as instituições globais tornar-se-ão menos legítimas, menos confiáveis e menos eficazes", reforçou.