O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho.Leonardo Negrão / Global Imagens

Gomes Cravinho alerta para a "desordem internacional"

Ministro discursou no Seminário Diplomático, que decorre esta quarta e quinta-feira no Museu do Oriente, em Lisboa. Chefe da diplomacia europeu, Josep Borrell, é o convidado especial neste primeiro dia.
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O ministro dos Negócios Estrangeiros português defendeu, esta quarta-feira, que a “ordem internacional na qual nos movemos está em transformação” admitindo ser hoje “mais realista falar em desordem internacional”. João Gomes Cravinho discursava no Seminário Diplomático, em Lisboa, descrevendo 2023 como um “ano difícil”.

Num discurso dedicado às ameaças à ordem mundial, o ministro questionou se “os elementos ordenadores que sustentam a estabilidade e, em última instância, a paz e o progresso estão hoje mais débeis”.

“A noção de ordem internacional foi sempre uma força de expressão para atribuir sentido simplificado àquilo que na prática é heterogéneo e complexo”, lembrou o ministro, “mas sabemos historicamente que em qualquer ordem internacional há sempre manifestações de desordem”.

“A história do século XXI é a história de uma ordem que se foi desfazendo”, insistiu, falando dos ataques do 11 de Setembro, dos problemas para o multilateralismo, até às invasões russas - primeiro da Geórgia em 2008, “lamentada e criticada de forma superficial”, depois da Crimeia em 2014 e finalmente da Ucrânia em 2022 - ou  queda de Kadhafi na Líbia, ainda em 2011, e o crescimento da China, não só a nivel económico, como militar.

“Tivémos uma primeira década deste século em que a ordem internacional perdeu força e perdeu credibilidade moral, essencialmente por erros próprios, por avaliações erróneas, por falta de sensibilidade. E tivémos uma segunda década em que crescem os sinais, não só de enfraquecimento da ordem, mas de oposição sistemática e organizada à ordem vigente", resumiu o ministro, falando da ameaça clara da Rússia e, de forma mais ambígua, da China.

"No espírito de [Vladimir] Putin e de algumas outras lideranças internacionais, a ordem internacional era algo que devia ser abatido", referiu, falando de um "erro profundo" da parte do presidente russo. "A Rússia é um país estrututalmente decadente, que a prazo está condenado a ser um ator secundário na atual ordem ou em qualquer outra", disse o ministro, reiterando que a Rússia representa hoje "a principal ameaça à segurança global".

"O momento em que nos encontramos agora, já entrados na terceira década deste século, é um momento de dúvida face à continuidade da existência da ordem internacional baseada num conjunto de princípios estabelecidos depois da II Guerra Mundial", insistiu Gomes Cravinho, expicando que os atuais conflitos se inserem nesse quadro de dúvidas.

"Nenhuma ordem internacional dura para sempre, como bem sabemos, mas pode ser que a atual ordem ainda tenha alguns anos de vida pela frente. Ou pode ser que aquilo que nos espera em 2024 e nos próximos anos seja bem pior", disse.

Guerra na Ucrânia

Em relação à guerra na Ucrânia, o chefe da diplomacia destacou a "extraordinária resiliência" dos ucranianos, lembrando contudo que "há limites para aquilo que conseguem fazer face a um inimigo com recursos humanos quase infindáveis, cuja estratégia passa por atirar os seus soldados para uma autência trituradora humana". 

O ministro lamentou os "jogos político-partidários" que têm existido em torno do apoio ocidental à Ucrânia, que considerou "essencial", referindo as eleições norte-americanas de novembro. "Uma vitória russa representaria um prego no caixão da ordem internacional e a abertura da porta para um período de desordem, antes do estabelecimento de uma nova ordem que dificilmente será benévola para os países europeus e para a Aliança Transatlântica".

Cravinho lembrou que 2023 foi um “ano difícil”, em que “as tensões internacionais e a conflitualidade aberta se aprofundaram e agravaram, tornando mais sombrias as perspetivas para os caminhos da paz”. O ministro falou da “iteração disruptiva” do conflito no Médio Oriente, “que nos acompanha há mais de sete décadas”.

Guerra no Médio Oriente

Em relação a esta guerra, referiu também o "impacto desmedido" que pode ter na estabilidade internacional. E referiu que só o facto de este problema continuar a existir, após tantos anos, "representa uma das maiores falhas da ordem internacional vigente e das suas diversas encarnações desde 1945. A população palestiniana continua sem autodeterminação e sem um Estado próprio". E lembrou que isso é "fonte de ressentimento profundo" entre as populações árabes.

Gomes Cravinho chamou também atenção para as acusações de dois pesos e duas medidas, na comparação entre os dois conflitos, e para o papel que o Irão desempenha no conflito no Médio Oriente. Ambos fatores de erosão da ordem internacional. 

Ainda sobre a guerra em Gaza, o ministro diz que "nada na abordagem israelita sugere disponibilidade para a procura de paz", havendo mesmo uma "recusa de falar do dia seguinte". E se o ataque israelita contra o enclave está a enfraquecer militarmente o Hamas, está a "reforçá-lo tremendamente do ponto de vista político".

Caderno de encargos

Gomes Cravinho falou num "panorama internacional carregado de núvens negras", deixando claro qual é o "caderno de encargos para a política externa portuguesa": "trabalhar intensamente nos vários palcos para a criação de pontes e o estabelecimento de entendimentos com países mais próximos e mais remotos".

E deixou claro quais os cinco palcos onde considera que a "voz portuguesa" pode ser relevante em 2024: a NATO, chamando a atenção para a liderança de Portugal no trabalho sobre o relacionamento com o Sul; a União Europeia, com o vital processo de alargamento e a necessidade de mudar as regras do jogo diante de "países que se habituaram a paralisar os consensos europeus para obterem ganhos individuais"; a CPLP, com o seu relacionamento de fraternidade e partilha; o G20, no qual Portugal foi convidado a participar a convite da presidência brasileira; e por último a candidatura a um lugar de membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. 

"Portugal é cada vez mais um país relevante neste contexto de desagregação internacional. E os diversos palcos onde podemos mostrar esta relevância reforçam a nossa capacidade de projetar e de defender os nossos interesses e valores, contribuindo para que a ordem internacional não seja substituída por desordem, encontrando formas de mitigar o alastramento dos elementos de desordem que já se encontram muito visíveis no nosso horizonte", concluiu o ministro, convocando todos os embaixadores presentes para esse trabalho.

Este seminário, organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, reúne, anualmente, o corpo diplomático português e outras entidades em Lisboa. O encontro decorre esta quarta e quinta-feira no auditório do Museu do Oriente, tendo como convidado no primeiro dia o chefe da diplomacia europeu, Josep Borrell, e no segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros de Singapura, Vivian Balakrishnan.

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