“Golpista? Não se fala mais nisso no Brasil”, diz Temer
Cinco anos após sair do Palácio do Planalto - e oito depois de lá chegar -, a Michel Temer, como a outros ex-presidentes do Brasil, está reservado agora o papel de “reserva moral”. De São Paulo, onde mora, olha para o passado, para o presente e para o futuro do país que liderou de 2016 a 2019. E, em conversa com o DN, um bocadinho para Portugal, no outro lado do Atlântico.
Temer, 83 anos, foi procurador-geral de São Paulo e secretário de Segurança Pública estadual antes de, aos 47, chegar à Câmara dos Deputados, onde esteve, somando dois períodos, 21 anos como parlamentar. Pelo meio, presidiu a casa em duas ocasiões até, em 2010, ser candidato a vice-presidente de Dilma Rousseff pelo MDB, o partido em que milita desde 1981, que foi a oposição legal à ditadura militar e que em democracia se tornou uma amálgama conservadora de centro-direita.
Em 2016, na sequência de um controverso processo de impeachment que derrubou Dilma, passou da vice-presidência à presidência da República, como antes dele José Sarney, sucedendo ao falecido Tancredo Neves, e Itamar Franco, sucedendo ao deposto Collor de Mello. À direita, ganhou o epíteto de salvador, por estancar uma crise económica; à esquerda, o de traidor, por ter tramado a queda da presidente nos corredores de Brasília com parlamentares do seu e de outros partidos.
Na campanha presidencial de 2022, o hoje presidente Lula da Silva, mentor de Dilma, chamou-o de “golpista”, para êxtase dos eleitores do PT, mas a animosidade da esquerda contra o ex-vice de Dilma vem, progressivamente, sendo atenuada, em parte graças às suas posições ponderadas de centro, em parte graças ao advento da extrema-direita liderada por Jair Bolsonaro.
O próprio Temer, aliás, considera esse tema uma questão ultrapassada: “Golpista? Não se fala mais desse assunto no Brasil. Todos compreenderam que houve simples cumprimento da Constituição Federal”.
Na citada “reserva moral”, Michel Miguel Elias Temer Lulia, nascido na cidade de Tietê, menos de 40 mil habitantes, a cerca de 120 km de São Paulo, elogia, aliás, os seus sucessores: Bolsonaro, que chegou a pedir-lhe ajuda institucional em momentos de perturbação no seu governo, e Lula, com quem mantém relação mais ou menos neutra.
O presidente do Brasil de 2016 a 2019 acha, aliás, que Lula “está fazendo o possível”. “Resta, contudo, para o meu paladar político, tomar medidas pacificadoras voltadas ao país”, sublinha. “Qual a nossa relação? Mantemos relações formais”.
Sobre Bolsonaro, lembra que, “realmente, ajudei-o quando por ele consultado”. “Tenho com ele uma relação cerimoniosa e muito respeitosa“, afirma. “O seu governo deu sequência às medidas tomadas pelo meu governo. Daí ter sido muito positiva a sua administração”.
Temer vê o próprio governo “muito positivamente” por ter efetuado reformas, melhorado os indicadores económicos e respeitado sempre as regras democráticas. “Pontos a destacar: reforma trabalhista, a reforma do ensino médio, o teto constitucional para os gastos públicos, a aprovação da lei das estatais, que as recuperou financeira e administrativamente, a queda da inflação de dois dígitos para 2,75% e a queda dos juros e taxa Selic [taxa básica de juros] de 14,50% para 6,50%, além do respeito absoluto aos critérios democráticos do nosso país”, enumera Temer ao DN.
Temer, entretanto, foi criticado por não ter convidado nenhuma mulher nem nenhum afro-brasileiro para chefiar os seus 23 ministérios, e por uma gravação feita pelo empresário Joesley Batista onde, supostamente, o então presidente o autoriza a oferecer dinheiro pelo silêncio de Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados que conduziu o processo de impeachment de Dilma. Na gravação, Temer ainda indica o assessor Rodrigo Rocha Loures para a resolução de problemas com a J&F, a empresa de Joesley, o mesmo Loures que é filmado depois com uma mala com dinheiro enviada pelo empresário.
Em sua defesa, o presidente disse à época que “simplesmente ouviu” as reclamações do empresário, sem lhe conceder qualquer benefício estatal, e que não renunciaria à presidência. Primeiro presidente do Brasil a responder por um crime durante o mandato, Temer viu o Congresso Nacional rejeitar duas denúncias contra si.
Sobre o caso, Temer garante que “nada condicionou nem abalou o nosso governo”. “Fomos até ao fim e passámos a faixa presidencial”.
Uma das decisões do antigo presidente mais discutidas foi a nomeação de Alexandre de Moraes, o então seu ministro da Justiça, para o Supremo Tribunal Federal. Hoje, Moraes passou de contestado à esquerda a principal alvo do bolsonarismo por ter em mãos “o caso das milícias digitais”, que calou bolsonaristas autores de fake news, e “o caso dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro”, que mandou para a cadeias os vândalos que atacaram a Praça dos Três Poderes.
“Alexandre de Moraes, que foi ministro da Justiça do meu governo, é renomado constitucionalista, como tal, foi perfeita a sua escolha para juiz da Corte Suprema do país”, assinala Temer.
Filho mais novo de oito de Nakhoul Elias Temer Lulia e Marchi Barbar Lulia, emigrantes libaneses chegados ao Brasil na década de 20 do século passado, em Btaaboura, aldeia natal dos pais, uma das ruas chama-se “Rua Michel Tamer [com “a”], presidente do Brasil”.
Mas, além dos laços com o Líbano, o antigo presidente mantém relação próxima com Portugal. “Sou amigo e fã do professor Marcelo Rebelo de Sousa, a quem conheço das nossas lides no Direito Constitucional”, começa por sublinhar Temer. “E a minha relação com o país é a melhor possível, visito Portugal com muita frequência, antes, oficialmente; agora academicamente, a cultura local, a literatura e a gastronomia tocam-me profundamente, sou admirador e cultor de todas elas”.