Seis meses volvidos do fim da coligação tripartida - e falhada, segundo todos os analistas - sob a liderança do social-democrata Olaf Scholz, é a vez do advogado conservador Friedrich Merz se tornar no décimo chanceler da República Federal da Alemanha, depois de os deputados votarem nesta terça-feira a sua candidatura. Com 69 anos, é o mais velho a entrar em funções depois de na véspera se ter formalizado o acordo de coligação governamental entre democratas-cristãos (CDU-CSU) e sociais-democratas (SPD). O país, há muito considerado o “motor” da Europa, está mergulhado numa crise económica e numa encruzilhada quanto ao seu papel internacional, situações agravadas pelo colapso do executivo anterior. Consciente de que o novo governo não pode desperdiçar a legislatura em desentendimentos, como aconteceu entre sociais-democratas, verdes e liberais, Merz afirmou: “Vivemos tempos de mudanças e de ruturas profundas, tempos de incertezas enormes. O nosso dever histórico é que esta coligação seja bem-sucedida e juntos estamos decididos em consegui-lo.” Para alcançar esse objetivo, o líder conservador prometeu “um governo que está determinado em fazer avançar a Alemanha através de reformas e investimentos”, disse durante a cerimónia que deu letra de forma ao acordo entre partidos. A guiar o governo está o programa de 144 páginas “Responsabilidade para a Alemanha”, que resulta de negociações entre o SPD (centro-esquerda) e a CDU-CSU (centro-direita ).EconomiaÉ a prioridade das prioridades. E não é para menos. A maior economia da Europa e a terceira maior do mundo encontra-se num crescimento tão anémico que se considera que entrou em recessão pelo terceiro ano. A taxa de desemprego galgou os 6,3%, a pior marca desde 2020, e a inflação voltou a subir, agora em 2,9%. O setor automóvel é a face visível da crise, com a procura de veículos a combustão em queda e sem que os elétricos vendam o suficiente. Em tom de piada, há quem diga que a Volkswagen é agora uma empresa alimentar depois de em 2024 ter vendido mais salsichas (8 milhões) do que carros (5,2 milhões). Para agravar o cenário, a guerra comercial prometida pelo presidente dos Estados Unidos atinge em especial a Alemanha, cuja economia está virada sobretudo para as exportações. Antecipando-se ao novo quadro parlamentar, no qual a extrema-direita representada pela Alternativa pela Alemanha (AfD) e pela esquerda reciclada do comunismo de A Esquerda (Die Linke) passam a ter minoria de bloqueio, os partidos ao centro aprovaram um instrumento que disponibiliza um fundo de 500 mil milhões de euros para investir em infraestruturas e no meio ambiente. Ao mesmo tempo, apagou o travão à dívida previsto na Constituição no que respeita à despesa na Defesa. Merz, que na sua travessia no deserto na política fez fortuna como administrador da empresa de gestão de investimentos BlackRock, tem agora a oportunidade de ajudar a gerar riqueza aos concidadãos. “Sei que contraí um empréstimo muito grande, inclusive em termos da minha credibilidade pessoal”, disse Merz. Além da credibilidade, os alemães não têm grandes expectativas: apenas um terço acredita que irá fazer um bom trabalho. Na pasta da Economia, o chanceler conta com Katherina Reiche, de 51 anos, até agora administradora executiva da empresa de infraestruturas de energia Westenergie - é democrata-cristã e nasceu na República Democrática Alemã tal como Angela Merkel. Também espera resultados de Karsten Wildberger, outro gestor que deixa o setor privado. Este ministro está encarregado da Digitalização “num país conhecido por ainda se usarem máquinas de fax e transações em numerário”, nota a Reuters. ImigraçãoDepois do estado da economia, a imigração é o dossiê mais quente, como as sondagens indicam - e têm alimentado o crescimento do agora maior partido da oposição, AfD. A campanha eleitoral ficou marcada com o ataque mortal, à facada, de um afegão que tinha ordem de repatriamento. O programa de governo prevê um endurecimento das políticas, em especial em relação aos requerentes de asilo sem documentos. “Qualquer pessoa que tente entrar ilegalmente na Alemanha deve esperar que a fronteira alemã seja o fim do caminho a partir de 6 de maio”, disse o novo ministro da presidência, Thorsten Frei. O governo vai “alargar e intensificar os controlos de identidade nas fronteiras alemãs a partir do primeiro dia”, assegurou. Frei disse que o governo já estava a coordenar-se com os países vizinhos, tendo dado como exemplo a Áustria, França e Polónia. Além disso, Berlim vai deixar de receber refugiados de países como o Afeganistão ou a Síria. O programa de governo diz que o objetivo das políticas é “controlar e limitar” a imigração, embora se reconheça que o “direito fundamental de asilo é inviolável” e que o país necessita de imigrantes qualificados. Outra medida prevista é reverter o programa de obtenção de nacionalidade por parte dos imigrantes no período de três anos - serão necessários cinco anos de residência permanente no país para um imigrante se candidatar à nacionalidade alemã. Extrema-direitaAo designar a Alternativa para a Alemanha um “partido extremista de direita” a dias de Merz ser eleito chanceler, o serviço de informações Gabinete Federal para a Proteção da Constituição (BfV) abre a porta para uma discussão sobre a ilegalização do partido que apareceu numa sondagem recente como a principal escolha. Outra sondagem indica, porém, que metade dos alemães deseja que o partido liderado por Alice Weidel e Tino Chrupalla seja banido. Uma dor de cabeça para a coligação: o processo de proibição poderá polarizar ainda mais a sociedade e granjear apoios à AfD - à imagem de cada processo que Donald Trump colecionou -, mas ignorar um relatório realizado ao longo de três anos e que conclui que o partido extremista é “incompatível com a ordem básica democrática e livre”. O ministro Frei, como outros políticos, dizem preferir combater a AfD no campo político ao responder às preocupações dos cidadãos. Merz ainda não se pronunciou sobre o tema, mas o desde hoje vice-chanceler, o social-democrata Lars Klingbeil, disse que a coligação deve agir de forma célere sobre o assunto. DefesaUm dos políticos mais populares entre os alemães, Boris Pistorius prossegue como ministro da Defesa. Vai beneficiar da isenção ao endividamento “em circunstâncias determinadas sobretudo pela guerra de agressão de Putin contra a Europa”, como disse Merz. Pistorius é a face da viragem da Alemanha para um investimento e reindustrialização na área da Defesa, não só para consumo interno, ao afirmar que quer umas forças armadas “preparadas para a guerra”, mas também na assistência a Kiev. Quer o ministro da Defesa quer Klingbeil estarão mais perto de Merz do que de Scholz no que respeita às opções nesta pasta. Embora não se saiba ainda se há abertura para que soldados alemães venham a fazer parte da propalada força dissuasora a enviar para a Ucrânia num cenário de pós-guerra, Merz há muito que defende a transferência de mísseis de longo alcance Taurus para que as forças ucranianas possam “sair da defensiva” e, por exemplo, destruírem a ligação entre a Rússia e a Crimeia, a península anexada por Moscovo onde se acumula parte significativa dos abastecimentos militares russos.Liderança europeiaO papel da Alemanha na cena europeia e global depende da forma como cada um dos temas anteriores forem resolvidos. Além disso, pela primeira vez em quase seis décadas, o ministro dos Negócios Estrangeiros é um democrata-cristão - Johann Wadephul -, o que significa que a política externa estará alinhada com a chancelaria, ao contrário do que aconteceu entre Scholz e Annalena Baerbock, “quando parecia frequentemente que a Alemanha tinha duas políticas externas concorrentes”, como nota Jana Puglierin, diretora do escritório de Berlim do think tank Conselho Europeu para as Relações Externas. Merz prometeu na segunda-feira que a voz de Berlim “será ouvida na Europa e no mundo”, enquanto Klingbeil defendeu que a coligação deve ajudar a moldar a nova ordem mundial ou arriscar-se a ser “moldado por ela”. Oito mulheres e sete sociais-democratas entre os 17 ministros .Uma semana depois de os ministros dos partidos conservadores terem sido revelados, foi a vez de se saber quem são os sociais-democratas que fazem parte do governo de coligação preto e vermelho (as cores dos partidos), apenas na véspera de assumirem funções. Como esperado, Boris Pistorius mantém-se como ministro da Defesa - o único a permanecer no cargo - e o co-líder do SPD Lars Klingbeil fica como vice-chanceler e ministro das Finanças. Em relação à coligação agora finda entre sociais-democratas e verdes (os liberais já a tinham abandonado), a equipa chefiada por Friedrich Merz vai ter mais um ministro: sete da CDU, três da CSU, o partido irmão da Baviera, e sete do SPD. Tendo em conta que os sociais-democratas alcançaram o pior resultado da história nas últimas eleições, o facto de terem conseguido ficar com sete ministérios - além das Finanças e Defesa, Justiça, Trabalho, Ambiente, Habitação e Cooperação Económica e Desenvolvimento - foi visto como uma vitória do principal negociador, Klingbeil. Este, ao acumular a liderança da bancada parlamentar do SPD, a vice-liderança do governo e o Ministério das Finanças, tornou-se aos 47 anos no líder de facto do seu partido, deixando na sombra a co-líder Saskia Esken. Ao contrário da CDU-CSU, a maioria dos ministros do SPD é mulher. Entre estas, destaque para a até agora presidente do Bundestag Bärbel Bas, a partir de hoje ministra do Trabalho e Assuntos Sociais. Prova da diversidade do governo, sentam-se agora na mesma mesa uma filha de um opositor de Saddam Hussein nascida e criada em Moscovo e o autor do livro Das Konservative Manifest (O Manifesto Conservador). A filha de iraquianos é Reem Alabali-Radovan, que emigrou com a família para a Alemanha aos seis anos e é casada com um pugilista de ascendência romena, cujos pais fugiram do regime de Ceausescu. A até agora comissária federal para as Migrações, Refugiados e Integração é agora promovida a ministra da Cooperação Económica e Desenvolvimento. O autor conservador é Wolfram Weimer, empresário de comunicação social, ex-diretor do diário Die Welt, e que causou críticas no seu próprio campo ao lamentar no referido livro o fim da época colonial e ao mostrar-se apreensivo com a “perpetuação do próprio sangue” ao abordar o tema da demografia europeia. Weimer é o novo ministro da Cultura.